entrevista por Leonardo Vinhas
Os Almeida são a trilha sonora do apagamento dos raios fúlgidos, da flacidez do braço forte, da perturbação das margens plácidas do Ipiranga. Também podem ser definidos como um projeto musical lo-fi com muita coragem, poucos limites e total aversão àquilo que os anos recentes consagraram como um comportamento de gente “de bem”.
Daniel Ferraz (voz) e André Pagnossim (voz e todos os instrumentos) são amigos há muitos anos. Uma parte desses anos foi usada registrando canções em um gravador Tascam de fita cassete quatro pistas. Como nem sempre estavam morando na mesma cidade, esses nômades paulistas aproveitavam algumas madrugadas de reencontro para fazer canções de baixíssima fidelidade. O primeiro lançamento, um EP de cinco faixas, foi parar no finado site Trama Virtual e tinha canções tolinhas sobre amigos e bobagens. Depois foram se arriscando por mares mais barulhentos e experimentais e, nas voltas que o mundo dá, entraram até nas recomendações do quadrinista e escritor Warren Ellis (nenhuma relação com o parceiro musical de Nick Cave a não ser o comprimento da barba).
Mas nem sempre a vida permite a simples fluidez. Às vezes, algum miliciano vai parar no maior cargo executivo de um país, personificando a truculência, a soberba e o orgulho de ser violento de uma população. Em casos assim, alguma reação acontece. Ferraz e Pagnossim tiveram lá sua cota de reações, e uma delas foi a de mudar o tom da banda para algo bem mais político e contemporâneo.
“Os Almeida Ficam em Casa” é o primeiro álbum depois de muitos EPs. Foi feito durante os primeiros meses da interminável pandemia do coronavírus, com cada músico gravando as partes de suas respectivas casas e usando um microfone de R$ 30 ligado diretamente no computador. Musicalmente, cada faixa saiu em um estilo (o teaser abaixo funciona como uma bula, digamos) e, liricamente, não se economizou na acidez para comentar a truculência que grassa nessa terra em que se devastando tudo dá.
“Vamos botar fogo na floresta / Enquanto o povo tropeça / Nos corpos de suas famílias / Juntos a traçar uma estratégia / Para matar de outra moléstia / Quem sobrar da pandemia”. Em duas estrofes do power folk “Passa Boi”, Os Almeida já dão conta de falar do Ministro do Desmat…. ops, do Meio Ambiente Ricardo Salles e do desgoverno genocida durante a pandemia do coronavírus. Mas essa é só a faixa de abertura, porque logo vem “A Marcha do Chocolate”, em que, festivos como poucas vezes foram, cantam: “A polícia tá ganhando bem demais / Abaixa o salário da polícia! / Se um PM tem 21 mil reais / Pra comprar chocolate da milícia”.
E nesse tom segue o disco, com alvos muito claros, ainda que não nomeados diretamente, com direito a hard rock, samba, “Gabinete do Trance” (com a impagável letra tirada dos lisérgicos tweets do amigo mais íntimo de Leo Índio), hip hop inspirado pela escola de Chicago (aquela de economistas mesmo), um épico sertanejo sobre a história de um jovem com “boca de disquete” que vira paladino da justiça num país que desconhece coletivamente o conceito de “justo”… enfim, uma festa em cima das cinzas que sobraram do lança-chamas reacionário que incendeia o país. O ataque guarda semelhança com a Turba Violenta, banda punk de Campinas da qual Ferraz é vocalista. Pagnossim tem outros projetos, como a chip music do Pulselooper e o folk lo-fi do Palace Hotel.
Certa noite de dezembro, sem bons velhinhos passeando pelo céu, André Pagnossim e Daniel Ferraz receberam o Scream & Yell em suas casas – por WhatsApp mesmo, pois ninguém aguentava mais live e teleconferência, porque o papo ia render e daria um baita trabalho ao repórter (eu) decupar, e também porque aplicativo de mensagem não serve só para disparar fake news sobre mamadeira de piroca e vacina causando autismo. Então venha, pegue sua cerveja de litrão comprada em posto de gasolina (para harmonizar com esse Brasil varonil que está aí), acesse o Bandcamp dos caras e refresque-se com Os Almeida enquanto o país arde.
Esse foi um disco de grandes mudanças para Os Almeida. A primeira delas foi a revelação de quem vocês são. Por que Daniel Ferraz e André Pagnossim saíram de trás das personas de Richard e Moisés Almeida?
André Pagnossim: Bom, a gente sempre brincou com essa ideia de que éramos dois irmãos idosos, que tocavam violão e cantavam e gravavam em fita cassete porque não sabiam usar um computador. Mas depois de tantos anos, a “piada” cansou, e o Daniel me disse: “é hora de contar ao mundo a verdade”.
Daniel Ferraz: Hahahaha, jamais! Na real acho que foi meio orgânico. Eu saí do armário antes porque as letras ficaram mais políticas e eu compartilhei nas redes da Turba [Violenta].
André Pagnossim: Fiquei incomodado no começo, mas agora estou mais de boa, acho.
Daniel Ferraz: O André queria manter os pseudônimos, mas com o tempo foi relaxando.
Acho que esse é um outro ponto que pega em duas questões. As letras ficaram mais políticas, como nunca tinham sido. Mesmo o ensandecido EP “Os Almeida Vão à Jamaica” é um tanto mais político. Um disco de transição, por assim dizer. Mas nesse teve dois momentos de mudança. Ficar 100% político, praticamente um álbum conceitual sobre o Brasil moderno. O que levou Os Almeida a não querer nem passar perto de fazer canções como “Beber Pinga É Legal” e ir pra “Temporada em Atibaia“?
André Pagnossim: Era bem mais fácil beber pinga com 25 anos, acho.
Daniel Ferraz: Aí cê pegou outro extremo, [esse tipo de música] era coisa de moleque. Mas cê tem razão.
André Pagnossim: Acho que foi um processo natural porque minhas conversas com o Daniel ficaram muito mais politizadas. Não que a gente não conversasse sobre política, mas acabou virando quase monotemático. Não só entre a gente, mas entre nossos amigos em comum também. Então, com a ideia de gravar um disco pela primeira vez à distância, em plena pandemia, as ideias pras letras foram surgindo mais facilmente de acordo com o noticiário que a gente acabava sempre comentando um com o outro. É importante também dizer que o Daniel é o letrista principal.
Daniel Ferraz: Na real, os discos anteriores eram todos conceituais também. Cada um tinha um tema: músicas sobre filmes, sobre videogames, covers, esse da música da pinga o tema era o teclado que o André usou em todas as músicas – as letras eram o de menos. Então, por um lado, dá pra dizer que a gente não mudou tanto, só escolheu outro tema. E aí entra isso que o André está falando.
André Pagnossim: Verdade. Sempre teve essa pegada PROGGER de disco conceitual.
E tinha uma dose de raiva e sentimento de impotência também, imagino eu. O desgoverno e o descaso com a vida foram tão duros que a gente não quer nem lembrar, mas acho que bateu uma raiva enorme, não? Tipo, essa raiva é quase uma medida de sanidade. Quem não a sentiu, era mal informado ou pessimamente intencionado.
André Pagnossim: Honestamente, eu não conseguiria gravar um disco de canções sobre o atual desgoverno se não fosse com Os Almeida. Sem humor, ironia. O Daniel fica com a raiva concentrada pras músicas da Turba Violenta, eu acho que não teria estômago. Mesmo com esse crossover entre as letras (nota: “Marcha do Chocolate” e “Samba do Fiador” empresta versos da outra banda de Daniel Ferraz), pelo menos tinha as risadas das tentativas de explorar estilos diferentes e tal.
Daniel Ferraz: Isso é massa de escrever com o André. Na Turba, eu coloco umas piadas também, mas é tudo mais pesado, nos Almeida sai mais leve por causa da parceria.
André Pagnossim: Sai mais leve porque você grita menos também.
Daniel Ferraz: Realmente
André Pagnossim: Mas eu acho muito foda esse lance de ter versos duma banda em outra, muito.
Aliás, Daniel, o quanto o seu lance com o Turba influenciou esse disco d’Os Almeida?
Daniel Ferraz: Pra mim, muito, nossa. Os caras podem até ficar putos, mas pra mim esse disco é tipo uma extensão. Tematicamente, pelo menos, é a mesma coisa. Com a diferença que o André leva o negócio pra um lado mais absurdo às vezes.
André Pagnossim: Por que eles ficariam putos?
Daniel Ferraz: Hahahaha é modo de falar. Você poderia ficar também, sei lá. É que é um negócio pessoal. Deixa eu dar o exemplo: tipo na “Grasnando Escusas”. A gente já estava com o disco quase pronto, aí mandei um áudio pro André falando que achava que faltava uma música sobre o [Sérgio] Moro, porque ele saiu do governo, mas exatamente por isso a gente devia registrar a participação dele. Aí o André me responde topando na hora e sugerindo falar sobre os filmes do Supercine que ele assistia se achando herói. Já levou o negócio pra um lado muito mais divertido.
Inevitável perguntar: vocês abrem os nomes reais justo num disco que debocha de um certo tipo de brasileiro conhecido por ser tão agressivo quanto sem humor. Não dá um certo cagaço?
André Pagnossim: Dá. Eu fiquei meio paranoico. Tomando bastante cuidado pra não explicitar nada nas letras. Acho que tivemos um certo sucesso nisso.
Bom, pode não ser nada muito explícito, mas para bom entendedor, os “alvos” das músicas são inequívocos.
André Pagnossim: Isso me fez lembrar de uma preocupação que tivemos durante a produção: o quão datadas as músicas vão soar depois de lançarmos? Até que foi um disco que saiu rápido, contando a forma como foi feito, mas era sempre um absurdo novo a cada dia, que a letra que a gente tinha escrito no dia anterior já soava datada.
E como você resolveu o lance da paranoia?
André Pagnossim: Claro que pensando racionalmente, a questão é: quais as chances de alguém ouvir o disco e caguetar pro Zero Dois? Quase zero. Mas a paranoia estava ali, ainda mais vendo tanto caso de perseguição. Quem imaginava que o Moro ia perseguir um cartaz de festival de banda punk? (nota: André se refere ao cartaz do Facada Fest, de Belém, Pará, que levou o então Ministro da Justiça e “boca de disquete” a autorizar a abertura de um inquérito apurando suposta “prática de crimes à honra” do cidadão que ocupa o cargo de presidente).
Daniel Ferraz: É, o André deu meio uma noiada, mas acho que a gente é muito pequeno pra se preocupar. Aí a gente fica nessa aí e eu respeito e boa.
André Pagnossim: Sim, mas no final ainda bem que venci esse incômodo e o disco saiu. Até porque é mais facil falar do ET e ser processado pelo Spielberg, talvez.
Daniel Ferraz: Isso aí!
Os Almeida ficam em casa… mas para onde vai o Brasil que ainda tem mais dois anos de Bolsonaro pela frente?
Daniel Ferraz: Pelo andar das coisas, vai pra casa do caralho.
Sei que vocês dois ouviram muitas bandas que pegavam pesado detonando terraplanistas, rednecks e protofascistas nos EUA. De Dead Kennedys a Bad Religion, sempre ouvimos essas coisas. E não sei vocês, mas eu pensava, quando adolescente: “caralho, mas será que tem tanta gente assim mesmo nos EUA”? E, bom, nós vimos que não só têm, como grasnam por aqui. Então, a pergunta é: nos anos 90 e 00, éramos um país de reaças enrustidos?
Daniel Ferraz: Putz!
André Pagnossim: Interessante, porque na minha cidade, durante a adolescência, as únicas coisas de punk que se conhecia eram Ramones e Bad Religion. E umas bandas da região que a demo era tão mal gravada que não dava pra entender as letras (risos). Mas realmente, ouvindo Bad Religion, especialmente o “Recipe for Hate” que a molecada pirava na época, fazia os EUA parecerem o pior lugar do mundo.
E em muitos aspectos, se você “lê” esse disco, parece o Brasil de hoje
André Pagnossim: Mas isso faz tempo né? 93, 94. (nota: o citado disco do Bad Religion é de 1993).
Daniel Ferraz: Não sei se éramos reaças enrustidos, mas tem hora que parece o Brasil sempre foi isso aí mesmo e os anos 90 e 2000 é que foram o ponto fora da curva. Pra mim, que cresci nessa época, é muito difícil pensar que o Brasil democrático que era o normal que eu conhecia é que foi a exceção.
André Pagnossim: Eu acho que ninguém no mundo estava preparado pra essa onda de extrema direita. É fácil escrever e falar sobre como a história é cíclica, mas é profundamente perturbador estar vivendo o momento.
Tenho o mesmo sentimento. Que é piorado quando vejo gente que conheço se deliciando com a licença para o ódio.
André Pagnossim: Isso talvez seja o mais triste de tudo.
E como surgiu o lance de cada música ser de um estilo? Vocês, aliás, já viam pelos temas: “hm, vou falar disso, melhor se for um folk, nessa aqui só pode ser hard rock” etc?
André Pagnossim: Em algumas músicas, o Daniel escrevia a letra, ou adaptava alguma meio pronta, em cima de alguma melodia. Mas, na maioria delas, decidíamos antes de gravar qual seria o estilo. Tendo a ver com o sujeito em questão na letra. Ou na ideia pra letra.
Daniel Ferraz: Tem um negócio que eu sempre me lembro: no impeachment da Dilma, o Gilmar Mendes dando uma entrevista em que ele dizia que entraríamos em um “intervalo democrático” pra tirar a presidente, fazer um ‘semiparlamentarismo” por um tempo e depois voltar ao que era. Aí fiquei com essa ideia de intervalo democrático na cabeça, mas essa ideia pessimista de que o intervalo democrático na verdade foram os anos FHC, Lula e Dilma e agora acabou, voltamos à programação normal.
Bom, e aí, justo à distância, vocês fazem um disco com uma grande variação de arranjos, trazendo um estilo musical por faixa, até coros gravados à distância. Bem diferente de juntar dois amigos e gravar na hora. Por que decidiram dar essa elaborada nos arranjos?
André Pagnossim: Nos discos anteriores, a gente batizou de “o modo Almeida de gravação” o processo de escrever as letras na hora e ir compondo e gravando tudo em fita cassete em seguida. O que acho que fica nítido nos discos velhos, por não serem apenas lo-fi, mas rudimentares em todos os sentidos. Dessa vez, como teríamos que usar um software pra poder trocar as tracks entre a gente, pensamos que seria legal ir por esse outro caminho, de pensar em arranjos, instrumentos diferentes do violão e do tecladinho podre de sempre.
E mesmo com toda a trabalheira, vocês não se arrependeram?
Daniel Ferraz: Eu não me arrependi porque o André que faz tudo, hahaha. Ele que toca todos os instrumentos, produz, mixa, masteriza.
André Pagnossim: Peraí, isso não é totalmente correto. Eu gravo os instrumentos, mas a mixagem e masterização tem MUITOS pitacos do Daniel. Mas eu nem acho que deu tanto trabalho assim. E foi muito divertido. Não foi cansativo, traumático como outros discos dos quais participei, porque, pelo menos pra mim, o processo de composição e gravação foram as partes mais divertidas. Depois que lançamos, eu já estava com saudade das trocas de mensagem no Telegram com o Daniel, cantarolando partes novas das letras.
Daniel Ferraz: Nossa, a gente ficou num vai e vem desumano com essas músicas, mexendo na mixagem delas tudo que não teve em 15 anos nas outras. E vale falar que, na pira de Richard e Moisés Almeida, a gente inventou o Tony Almeyda, produtor desse disco, e o Tony é o André também (risos).
André Pagnossim: Tony vem de Tony Visconti, só pra constar.
E vocês só acreditam no Bandcamp? Spotify e outras plataformas são coisas do Satã capitalista, ou não subiram porque ia dar muito trabalho mesmo?
André Pagnossim: Não, foi por causa dos samples mesmo, tem vários. Iam barrar de cara, então pra que se dar ao trabalho?
Daniel Ferraz: Além de ter muitos samples descarados, tem a questão não poder deixar em copyleft, que o André lança os outros trampos dele todos nesse esquema. Mas além do Bandcamp, o disco vai sair em formato físico, logo mais. O selo Abbey Roça, de Socorro, interior de São Paulo, vai lançar em CD.
Sério?
André Pagnossim: Sim, nós ainda gostamos de compact disc.
Daniel Ferraz: Vai rolar. Vinil voltou, fita voltou, está na hora de voltar o CD. Já era pra ter saído, na real, mas me enrolei aqui com arte, preciso terminar. E depois daquele teaser parodiando as coletâneas pique Lovy Metal dos anos 90, tinha que rolar um cdzinho. É meio que obrigação fazer.
Passado o fastio natural que dá quando termina o trabalho, fica mais fácil olhar pra trás e ver o que foi feito. Vocês acham que fizeram um disco mais sólido, capaz de sobreviver ao momento político em que foi lançado e se segurar pela própria música?
André Pagnossim: O que mais me agrada no disco é que não é um EP, um single, uma playlist, é um álbum com mais de 1 hora. Isso é uma experiência inédita pra mim, até por isso que vai ser legal sair em CD, mesmo que só você vai ter onde ouvir. Mas eu não acho que daqui a alguns anos muita gente vai se lembrar de quem foi Ricardo Salles, nem que o dono da Smart Fit [Edgard Coron] é bolsonarista.
E, inevitável perguntar: em qual das faixas vocês acham que acertaram em cheio?
André Pagnossim: Minha faixa preferida é “The Fresh Prince of Brasilia”, porque tudo nela é absurdo. E talvez ela envelheça bem, porque tudo na letra dela é sanha privatista.
E como entrou a homenagem ao Daniel Johnston no meio disso tudo?
Daniel Ferraz: O André deu a ideia de fazer um cover do Daniel Johnston e me falou pra escolher qual música, sugeri “The Beatles” (faixa de 1983 de Johnston), que em situações normais seria uma baita escolha ruim, hahaha. Mas com a letra homenageando o Danny acho que ficou legal.
André Pagnossim: A ideia de trocar os Beatles da letra pelo próprio Daniel foi do Daniel (ficou estranha essa frase).
Daniel Ferraz: Por princípio a versão em português seria uma ideia ruim e a escolha dessa música também, mas acho que deu bem certo.
André Pagnossim: Eu sempre achei que a melodia vocal da música do Danny lembrava “I Want You Back” dos Jackson 5, ele tinha essa coisa de puxar umas melodias da memória e chupar pras próprias músicas, [Bruce] Springsteen e tal, daí a gente tentou fazer uma coisa meio Funk Brothers, mas claro que toscamente. (nota: Pagnossim foi um dos músicos recrutados para acompanhar Johnston em seus shows brasileiros em 2013).
E de quem foi a decisão de assumir o Daniel como MUSO MÁSCULO na capa do single “Temporada em Atibaia”?
Daniel Ferraz: Hahahahahaha. Pior que fui eu que fiz aquela capa, de livre e espontânea vontade. É uma piada né? A gente tem que saber rir de si mesmo pra poder rir dos outros.
André Pagnossim: Foi o jeito dele me convencer a sair do armário. Tipo, “você aí noiado com nome, segura essa”.
Última pergunta: o [Fabricio] Queiroz é o personagem mais recorrente nas letras – na pior das hipóteses, está no Top 3 de menções. Com tanta atenção dada a ele, me digam: onde vocês acham que o homem vai estar daqui a um ano? Alimentando minhoca?
Daniel Ferraz: Acho que não vai precisar. Está tudo dominado.
André Pagnossim: Talvez ele volte a pescar com o capitão. Eles devem estar sentindo falta, são muitos anos de bromance ali.
Faixa a faixa: “Os Almeida Ficam em Casa”, por Daniel Ferraz
01. PASSA BOI
Countryzão das antigas com direito a berrante e solo pique Ennio Morricone. Além de abrir o disco, foi a primeira que a gente decidiu lançar como single, com o gado de verde e amarelo na capa. Essa acho que foi a que saiu mais rápido, em termos de composição. O André sugeriu fazermos uma sobre o Ricardo Salles, que tinha acabado de soltar aquela declaração escrota na reunião ministerial de 22 de abril, que em qualquer outro governo seria um sincericídio, mas nesse é justamente o tipo de coisa que segura o filho da puta no cargo, sobre aproveitar a pandemia pra passar a boiada. Aí a letra praticamente se escreveu sozinha: tacar fogo na floresta enquanto o povo tropeça nos corpos de suas famílias.
02. MARCHA DO CHOCOLATE
No carnaval do ano passado, fiz uma marchinha com a Turba sobre o laranjal do PSL, e estava com a ideia de fazer uma marcha de carnaval todo ano. A de 2020 era pra ser essa. Lá pra janeiro fiz o refrão e mandei pro André, porque ele tinha curtido a Marcha do Laranjal, ele animou na hora e fez o resto da letra. A gente nem estava pensando em gravar nada d’Os Almeida, era pra ser da Turba. No fim das contas, passou o carnaval e a Turba não gravou, então resolvemos usar. Convidamos o Papa (guitarrista da Turba) pra gravar o violão do que seria aquela versão e o André pirou em cima, transformou nessa doideira meio axé meio tecnobrega, com guitarrada baiana e um sample que é tão óbvio quanto inesperado.
03. REGINA
Pra mim essa é uma das mais engraçadas, talvez só perca pra “Grasnando Escusas”. O Daniel de 20 anos atrás ficaria putaço da vida de ver o Daniel de 2020 cantando um synthpop com autotune, mas acho que mesmo ele iria pirar nessa linha de baixo. E na quantidade de trocadilhos com cheirar pó, também.
04. TEMPORADA EM ATIBAIA
O André tinha uma banda de alt country em São Carlos chamada McQuade lá por 2002, eu era muito fã, ia em todos os shows. Meu sonho era cantar no McQuade, mas faltava habilidade. “Temporada em Atibaia” sou eu realizando esse sonho. Rock rural com paredes de guitarra e umas harmonias bonitas de voz, é praticamente uma música do McQuade. Só a letra que vai pra outro lado, tirando sarro do período de “cativeiro” do Queiroz na casa do advogado do presidente.
05. THE FRESH PRINCE OF BRASÍLIA (FT. CHICAGO BOYZ II MEN)
Essa foi foda. O André queria fazer um hip-hop desde o começo, insistiu um monte, e eu só tentando fugir e enrolando, me sentindo o Woody Harrelson de boné pra trás no “Homens Brancos Não Sabem Enterrar”. De tanto ele me cobrar uma letra, sugeri usarmos a fala do Guedes na reunião de 22 de abril na esperança de escapar, mas não tive como. Aí o André fez o vocal principal e eu fiquei de Flavor Flav meia boca do 3º mundo. E acabou que ela é uma das minhas preferidas, também.
06. GRASNANDO ESCUSAS
Pra quem não gosta de sertanejo, a boa notícia é que essa música na verdade é uma guarânia paraguaia. A galera curte a parte que a gente chama o Moro de boca de disquete, mas “não me importa que ela pareça o Glenn de peruca, o que me machuca é que pro meu gosto as mãozinhas dela têm dedos demais” é a piada que eu mais gosto no disco todo. Adoro o reco-reco, também.
07. IGREJA DO AMOR
O R&B de motel foi complicado pra gravar, porque era o começo da pandemia, época em que as pessoas ainda respeitavam a quarentena, estava sempre um baita silêncio, dava pro bairro inteiro me ouvir cantando. Fiquei constrangido de meter um “meu viagra é Deus” com a intensidade que precisaria com meu enteado adolescente no quarto ao lado, então o André ficou com a voz principal nessa também. E o pior é que não adiantou nada, porque sempre que eu estava ouvindo a música na caixa de som pra pensar na mixagem, meu enteado aparecia como quem não quer nada e ficava rondando, geralmente na parte do “anal solução pentecostal”.
08. SAMBA DO FIADOR
Essa também era da Turba e ficou pros Almeida, virou um samba canção do fim do mundo. E tem outra música da Turba que divide alguns versos com essa, chama “Quem Pariu Jair que o Embale”. A primeira estrofe das duas músicas é quase igual, mas o refrão da Turba é um pouco mais pesado: “Esse país acabou / Não tem como conciliar / Ódio e nojo a todo o gado / Quem pariu Jair que o embale”.
09. GABINETE DO TRANCE
A letra dessa é um tuíte do Carluxo, daqueles que parecem não ter pé nem cabeça mas na real têm todo o jeito de serem listas de alvos pro gabinete do ódio, compostas por apelidos. É o tipo de coisa que o cara não precisaria fazer às claras, em público, mas faz por escárnio e certeza de impunidade. Ou talvez por ser meio burro. O André programou a música toda no celular.
10. DANIEL
“Daniel” é uma versão em português de “The Beatles”, do Daniel Johnston, mas trocando os Beatles pelo próprio Daniel. Uma curiosidade legal sobre essa música é que o André tocou na banda de apoio do Daniel Johnston quando ele veio pro Brasil, e o Danny pediu a guitarra dele emprestada e usou no show. Então a nossa homenagem ao Daniel Johnston foi gravada na mesma guitarra que ele tocou no show de São Paulo. Em dois mil e bolinha, o McQuade gravou uma versão bem boa de “Speeding Motorcycle”, também. Sugiro a quem curte ir atrás.
11. MEU GURU
Um belo dia acordei com uma mensagem do André me pedindo pra fazer uma letra sobre o Olavo em 5 minutos, pra gravar sussurrando e mandar por áudio de celular mesmo. Virou essa canção new age escatológica com percussão japonesa e samples de Enya e Chico Buarque.
12. CAIXÃO FECHADO
O único rock pauleira do disco. Farofada com baixão distorcido sobre um marombado que não se priva de ir à academia (cujo dono tem corona até no nome) durante a pandemia, morre e se lamenta por não poder exibir o corpo sarado no velório de caixão fechado. Essa é da época em que o Paulo Cintura ressurgiu do ostracismo fazendo manifestação a favor do Bolsonaro na rampa do planalto. A versão do disco está bem melhor que a do lado B do single de “Passa Boi”.
13. NA ESTRADA
Outra versão em português que, por princípio, seria uma ideia ruim, mas acabou dando certo. A original é “On The Road Again”, do Willie Nelson, mas a gente pegou só o refrão e atualizou pra esse momento da pandemia, pra fechar o disco martelando uma mensagem otimista, de esperança: vai passar. Chamamos nossas famílias e alguns amigos pra participarem cantando o coro (quem não estava em isolamento com a gente mandou áudios de zap) e até meu cachorro canta junto, latindo o solo. Detalhe que o nome dele é Willie Nelson, então na prática temos um cover do Willie Nelson em que o Willie Nelson participa. Vai passar e a gente vai cair na estrada outra vez.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
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