entrevista por Leonardo Vinhas
Um disco de canções novas, totalmente acústicas, misturando a formação pop com a memória afetiva de chacareras e milongas. Dito assim, não parece a premissa de um disco indie ou moderno, e tudo bem, porque sua autora não tinha qualquer intenção de fazê-lo dessa forma. O que a cantora e compositora gaúcha Lara Rossato queria era fazer um disco autêntico, com canções que fossem honestas e coerentes com sua história e sua sensibilidade, e que conseguissem entregar essa honestidade e coerência com apuro cancioneiro. Conseguiu.
“Solidez” é o terceiro álbum de Lara Rossato. O primeiro, “Doce” (2010), é praticamente caseiro, percebido pela própria como uma aventura adolescente. O segundo, “Mesa para Dois” (2014), é uma pérola preciosa (ainda que pouquíssimo valorizada) do pop de guitarra nacional. Entre eles, alguns singles que tateavam um caminho bastante indefinido, uma busca no qual a vontade de entregar uma música relevante e pessoal se chocava contra a necessidade de sobreviver da música e o questionamento sobre a validade da própria carreira.
Na primeira vez que falou com o Scream & Yell, Lara Rossato tinha a segurança ingênua que só é possível aos 20 e poucos anos. Cinco anos e meio depois, e já tendo dobrado a casa dos 30, Lara mostra nessa nova conversa uma lucidez e uma coragem que antes não apareciam. Mais impressionante, as 11 canções de “Solidez” refletem essa transformação pessoal, configurando um álbum sensível e cativante.
O que Lara Rossato consegue com esse álbum é resgatar uma canção popular que faz sentido em sua vida e torná-la vigente para si e para o ouvinte nesse 2020 de dor, mudança e imprevisibilidade. Não é pouco – e cada nova audição sugere que essa vigência não encontrará data de vencimento. É, talvez, o primeiro disco de música gaúcha feita por uma mulher, com apelo pop, e sem se apegar a um idílio rural que não existe mais. Na conversa a seguir, Lara conta como chegou a isso, em um caminho em que a mudança de carreira se mistura, se confunde e se complementa com a pessoal.
Hoje vivemos um mundo “líquido”, naquela definição do Zygmunt Bauman, no que diz respeito às nossas relações e sentimentos. “Solidez” é uma resposta a isso? Uma busca de reagir a tanta fluidez, tentar represar algo?
Sim e não, acho que tem que haver um equilibrio. Já deixei de fazer muitas coisas na vida por estar inserida inconscientemente nesse contexto de “modernidade líquida”. Sempre fui bastante imediatista e convencida de que deveria aproveitar as “ondas” do momento, mas com o passar dos anos e boas doses de psicanálise, percebi que deixei de construir coisas sólidas por pensar dessa maneira, e também acredito que se tu segue todas as tendências, tu perde tua identidade artística ou fica sem nenhuma. Quando esse conceito do Bauman começou a ficar conhecido, encontrei nessa teoria o “nome bonito” pra explicar aquilo que eu já tinha percebido em mim e ao meu redor e que fez todo o sentido, além de tornar mais consciente minhas escolhas e padrões de comportamento. O fato é que a tendência do momento não é de lançamento de álbuns, e eu lancei o “Solidez” e estou tendo um feedback incrível! Quis fazer um álbum acústico em um momento que existe muita música eletrônica e urbana tocando por aí. Foi meio que provando pra mim mesma que é possível fazer o que eu quero, sem seguir tendências. Consciente disso, também trabalho com o conceito de fluidez. O álbum tem um prazo de validade e eu preciso lançar outros singles, outros clipes, até porque vou ter outros momentos pra registrar e eu evoluo através da música.
Muitas das canções dizem respeito a encontrar a si mesma – e manter-se fiel depois desse “encontro”. Esse processo teve algo a ver com tua saída de Porto Alegre?
Sim! Eu precisava fazer as pazes com meu diferencial artístico que todos já conheciam, mas eu não queria aceitar porque queria me enturmar, queria fazer parte da cena da capital pra ter meu espaço. Meus colegas faziam bossa nova, samba e eu me sentia um peixe fora d’água nesse mar “brasileiro e tropical”. Sem falar na galera mais alternativa, com músicas mais “cabeça”, cheia de metáforas que só eles entendem. E eu gostava dos tangos, das chacareras, dos violões flamencos, daquele dramalhão todo. Um dia me peguei tentando compor algo mais alternativo e ficou horrível. Não sabia mais que música queria fazer, fiquei sem lançar nada por um tempo. Além disso, estava cansada da capital, queria viver com mais segurança, mais propósito, ficar mais perto das pessoas que eu amo. Depois de um período bem turbulento, decidi que iria fazer um som mais regional ou pelo menos com mais latinidade. Não quis mais me enturmar e nem fazer parte de cena alguma. Eu não me encaixei e não faço mais nenhuma questão.
Você estava vindo numa exploração de um pop mais contemporâneo, flertando com o eletrônico e o dançante em singles como “Suspeitos”, “Não Tem Freio” e a primeira versão de “hum hum hum”. E agora você vem com um álbum eminentemente acústico, destacando sua origem gaúcha. O que causou essa mudança?
Uma das minhas metas sempre foi ter um álbum mais dançante e usar elementos regionais. Eu já vinha tentando fazer isso desde o meu primeiro álbum caseiro em 2009, quando usei acordeom em algumas músicas. Infelizmente, “Suspeitos” e a primeira versão de “hum hum hum” tiveram produções sobre as quais não tive controle algum. Na verdade, eu fiz essa música para uma marca nacional de sapatos, com uma letra em inglês como foi pedido, só que não foi aprovada pela marca. Então, como já estava com o arranjo gravado, decidimos lançar pelo selo com o qual eu trabalhava na época (Loop Discos), eu estava sedenta por lançamentos e aceitando o que viesse, minha carreira estava parada. Também me disseram que gravaríamos mais outras. O fato foi que não gravamos porque não havia tempo disponível no estúdio. A primeira versão de “hum hum hum” foi uma loucura total! Ela já estava bem encaminhada, mais acústica, com um arranjo do Pedro Petracco (músico e compositor, ex-integrante da banda Cartolas). Então comecei a trabalhar com um produtor que me propôs levar a faixa para outro estúdio para mixar e masterizar. Ele acabou chamando outro produtor para modificar as baterias e deixar mais pop, a intenção era tentar rodar nas rádios mesmo. No total foram mais de 20 horas de mixagem, um super desgaste emocional e um enorme gasto financeiro. Fui aceitando a versão porque estava realmente cansada e pressionada para lançar logo. Ela foi a primeira música que me fez receber mensagens de fãs me pedindo muito por ela! Logo depois rompi com esse produtor por problemas no nosso relacionamento de trabalho. Estava já com dia marcado para fazer um videoclipe e cancelei tudo.
E a “Não Tem Freio”?
Ela foi meu laboratório disso que eu sonhava fazer, misturar música de raiz com pop. Ela é uma música eletrônica com trap e chacarera. Eu ganhei a produção dessa faixa em um concurso de compositores do mentor de carreiras Rulio Salinas em parceria com os produtores do [estúdio] 48k e fui a São Paulo gravar. A experiência foi maravilhosa, mas não teve continuidade porque o projeto era somente para um lançamento e esse nível de produção deles exigiria um enorme investimento em gravação, caso eu quisesse gravar mais. Dito tudo isso, eu respondo tua pergunta anterior (risos). Eu tinha um orçamento “X” para gravar um disco e impulsionar ele nas redes sociais. Acho tão importante o investimento em impulsionamento e propaganda, tanto quanto em gravação. Um disco acústico, mais simples, viabilizaria esse lançamento + impulsionamento. Com pegada mais “gaúcha” eu enriqueceria muito os arranjos, porque nossa música tem muitas possibilidades, é linda, eu amo e tá enraizada em mim.
Você estava conversando com o Carlos Eduardo Miranda pouco antes dele morrer, e ele tinha levantado a ideia de você trabalhar suas raízes gaúchas, mas numa proposta mais indie, que é um universo no qual você não tem interesse. Ainda assim, esse papo com ele teve alguma influência? Como foi tua relação com ele?
Conhecer o Miranda foi algo muito especial, e com o pouco contato que tivemos pude ver o quão humano ele era. A Bell Hammes (que era esposa dele) e eu, estávamos com uma proposta de criar um show em que revisitaríamos os clássicos gaúchos, numa linguagem mais clássica, para teatro. Lembro de um dia que estávamos ouvindo alguns clássicos e ele chorou muito por lembrar de um adorado tio dele, que havia falecido, e que gostava muito da canção que estávamos ouvindo. Ele era um cara sensível, eu conheci somente esse lado dele. Nas nossas conversas, ele me falava que eu tinha tudo pra usar minhas raízes, porém com arranjos super alternativos e me enviava exemplos, e eu concordava com o uso das raízes, mas com os arranjos alternativos… não gostava de nada! (risos) Vez ou outra ele chamava no inbox e dizia “ouve isso aqui, te imagino fazendo”, eram coisas como Calexico e Los Lobos. Eu só respondia que achava legal, mas que a gente deveria se conhecer mais, pra ele entender melhor minha proposta. Infelizmente não deu tempo de acontecer. Acredito que ele não teve influência, mas com certeza tinha razão sobre as raízes. Acho que ele iria odiar o “Solidez”, iria implicar com ele! (risos) Ele era demais!
O primeiro disco dos Engenheiros do Hawaii foi batizado “Longe Demais das Capitais” porque, mesmo sendo de PoA, a banda se via deslocada do eixo musical da época. Vivendo hoje no campo, em Dom Pedrito, e investindo num álbum inteiro regional (ainda que pop), você está ainda mais longe das capitais. O quanto disso é escolha e o quanto é causado pela força das circunstâncias?
É 100% escolha. Eu atribuo todos os meus fracassos e sucessos às minhas escolhas. Estar aqui, gravando esse disco, foi a melhor escolha que eu fiz nos últimos anos, está sendo um processo maravilhoso. Acredito que me ajudaria estar em um centro maior sim, mas estou num momento de construir essa base sólida. Aqui, na zona rural, longe de tudo, eu produzi mais que em sete anos na capital. Algo aí está muito certo. E mesmo na capital, sempre carreguei muito o interior no meu sotaque, na minha visão de mundo, sem dizer que as capitais estão cheias de pessoas do interior. Mesmo quem é super urbano teve uma infância ou um parente que tinha uma casa no interior. O público adora, e é ele que importa.
Ainda nesse tópico, como você vai “mover” o disco? Você usa bastante as redes para falar com seu público, mas está num lugar tão remoto que nem mesmo videoconferência pudemos fazer para essa entrevista.
Estou movendo o disco com os impulsionamentos nas redes sociais, que sempre me trouxeram pessoas incríveis, e é onde o meu público está. A internet que chega aqui só não permite videoconferências, mas de resto, funciona muito bem! Estou alimentando as redes todos os dias e me relacionando normalmente com meu público. Nos anos que passei em Pelotas e Porto Alegre conheci muita gente da imprensa tradicional. Me comunico com eles via e-mail e WhatsApp. É super tranquilo.
Suas canções sempre são bem pessoais, mas “Solidez” traz algumas que tratam de questões espinhosas. “Talento”, por exemplo, toca em um assunto que sempre rola no meio musical, mas pouquíssimas vozes falam dele, que é o assédio moral e sexual que as artistas sofrem com triste regularidade. O que te levou a falar sobre isso?
Poucas vozes falam porque têm medo de perder oportunidades ou de “se queimar” no meio, porque a mulher é constantemente privada de credibilidade. A verdade foi que, conversando com amigas artistas que passaram pelas mesmas situações, eu tive o desejo de comunicar isso da maneira que eu sei. Na “Talento”, eu falo sobre assédio moral, que é aquele que acontece no ambiente de trabalho e expõe alguém a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas. É disso que a letra trata: descrevi o passo a passo em que isso acontece, para que outras mulheres possam identificar esse abuso moral e tomarem providências com antecedência. O protocolo é esse: geralmente o produtor chega falando que somos um diamante bruto – olha que clichê! – e que precisa ser lapidada. Então depois ele diz que é a única pessoa no mundo que percebeu esse talento em você, e que vai te ajudar nesse processo. Logo depois ele atribui somente a ele todas as conquistas conjuntas e que você não é nada demais e ele “fez você ter talento”. Sobre assédio sexual, já passei por situações desconfortáveis sim, acho que toda a mulher sabe bem o que é isso, em qualquer meio. O que mais me incomoda em ser mulher no meio musical é que nunca sei a real intenção de algum homem que me oferece uma oportunidade, se é pelo “talento” ou se por interesse em sexo. Não acho errado quem troca sexo por oportunidades ou dinheiro, não julgo mesmo, acredito que cada um é livre pra usar seu corpo da forma que quiser – desde que a coisa seja consensual, claro. Agora, quando a gente tá falando de assédio mesmo, de intimidar, ameaçar, da troca por sexo ser “o único caminho possível”, isso é crime, e tem que ser denunciado.
Falar em público sobre algo dessa natureza nessa era de julgamentos online e invasão de privacidade não te amedronta?
Não muito. Eu demorei, mas entendi que não vou agradar a todos e está tudo bem. Aprendi a dar valor a cada minuto da minha vida e penso que poderia estar lendo algo construtivo ao invés de perder aquele momento tão precioso respondendo “hater”.
Por outro lado, o disco traz uma canção de despedida extremamente sensível, que é “Dorme, Amor”. Imagino que seja reflexo de despedidas que você teve que enfrentar. Você pode contar um pouco sobre essa canção?
Essa canção “nasceu” de uma morte. Passei por uma experiência bem ruim que foi acompanhar os últimos dias de uma mulher que me embalou pra dormir. Ela era uma pessoa que tinha medo de morrer, dizia que não queria parar em um lugar escuro e frio, por isso escrevi na música que ela está dentro de mim, onde há luz e calor. Quis fazer uma canção de ninar como se ela estivesse cantando pra mim quando bebê, e ao mesmo tempo, eu cantando pra ela no leito da UIT, pedindo para que dormisse logo, porque não tinha mais saída e não aguentava mais ver tanto sofrimento. O incrível é que muitas mamães estão usando a música para cantar para seus bebês e postam “stories” com eles. Daí eu percebo os ciclos e como a música é algo mágico.
Para encerrar: sem querer cair em clichês, mas se tem algo que a pandemia ensinou foi que a vida não aceita planos. Diante de tanta imprevisibilidade, o que te parece um plano razoável para teu futuro?
Um plano razoável é seguir usando a internet para construir meu público, lançando músicas, gravando videoclipes e evoluindo como ser humano e profissional através disso, sem criar expectativas, desfrutando do caminho. É um processo dolorido e delicioso de enfrentamento de muitos medos, rejeições, decepções… te deixa incrivelmente forte e maduro.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.