resenha por Leonardo Tissot
Nos anos 70, a escritora Helen Nicoll e o ilustrador Jan Pienkowski começaram a publicar uma série de livros infantis contando as aventuras da bruxinha Meg e de seu gatinho Mog. Embora os feitiços de Meg não costumassem funcionar como ela gostaria, é difícil imaginar que Nicoll e Pienkowski pudessem cogitar que as coisas iriam degringolar tanto para suas personagens.
Quase meio século depois, suas criações inspiraram uma espécie de sequência — ainda que de maneira torta — das histórias originais. É o que se vê na HQ “Mau Caminho” (Fantagraphics, 2019), escrita e desenhada pelo cartunista Simon Hanselmann e lançada em agosto deste ano no Brasil pela editora Veneta, com tradução de Diego Gerlach. A obra é a primeira do artista australiano a chegar ao mercado nacional, embora se trate de uma continuação das desventuras subversivas de um nada singelo casal: uma bruxa adolescente e um gato chamados… Megg e Mogg. Sutil, não?
Em “Mau Caminho”, a história prossegue após uma série de tiras veiculadas em diversas publicações (como a Vice), e outras graphic novels com as mesmas personagens (como as best-sellers do New York Times “Megahex”, “One More Year” e “Megg and Mogg in Amsterdam and Other Stories”), ainda inéditas no Brasil. Isso não impede os leitores de entenderem o universo habitado por Megg, Mogg e seus amigos Lobisomem Jones, Coruja e Meleca, para citar apenas algumas das personagens que saíram da mente de Hanselmann para as páginas da HQ. O próprio artista disse isso em entrevista ao blog da editora: “tem um resumo das três outras coletâneas no começo, nem se preocupe em ler as 700 páginas anteriores…”
Se a tríade “sexo, drogas e rock n’ roll” está fora de moda, esqueceram de avisar o autor nascido na Tasmânia e que atualmente vive em Seattle (EUA). O mundo imaginado por Hanselmann é completamente doentio (ou realista, se preferir…), tomado por figuras que se entregam ao hedonismo sem fazer muita força para viver de forma convencional. Surubas, cenas de abuso de substâncias e relacionamentos disfuncionais dominam as 176 páginas do livro.
Os anos 90 também são uma marca forte no trabalho do cartunista de 39 anos: é como se Beavis and Butt-Head tivessem procriado com personagens do filme “Kids”, de Harmony Korine, e abandonado as crias à própria sorte. Pôsteres de bandas como Placebo, Radiohead e Hole no quarto de Megg também ajudam a compor o cenário do quadrinho.
Apesar das referências, é difícil imaginar o cinema e a TV produzindo algo no nível de escatologia que “Mau Caminho” apresenta nos dias de hoje. Talvez apenas as HQs ainda tenham o potencial de entregar uma obra artística que entretém ao mesmo tempo em que provoca e faz refletir sobre que diabo de mundo é esse em que vivemos — como faz Robert Crumb, uma das influências mais perceptíveis no trabalho do quadrinista, embora o inconformismo aqui seja substituído, em grande parte, pela indiferença.
Ao tentar vender um par de patins antigos, Megg reflete:
— Me sinto estranha vendendo… Minha mãe deu duro por eles… Acho que, tipo, ela ficou sem se drogar pra comprar isso pra mim.
— É uma linda história, Megg — responde o Lobisomem Jones. Mas precisamos da grana pra comprar drogas.
Outra característica marcante do trabalho de Hanselmann é perceber, em meio a personagens perdidas, desiludidas e desinteressadas em relação à própria vida, fios de humanidade que parecem surgir diante de relações fraturadas, laços rompidos e da confiança abalada entre elas. Enquanto Megg enrola burocratas do governo para continuar recebendo o seguro-desemprego, Mogg sofre sinceramente ao procurar trabalho, quando tudo o que quer é ficar em casa se drogando, para ficar em apenas um exemplo.
— Sinto muito que tudo tenha virado uma merda — diz o gato Mogg ao se despedir da namorada, em outra cena na qual ela precisa viajar para a cidade da mãe. É praticamente o “eu te amo, porra”, de Paulo César Pereio, revisitado.
Ao mesmo tempo em que faz rir, “Mau Caminho” é uma triste comédia sobre o quão difícil é amadurecer em um mundo que parece não ter um destino melhor a oferecer. Os quadrinhos de Megg, Mogg & Owl já foram indicados a prêmios como o Eisner e o Ignatz, e venceram como melhor série no Festival Internacional de Quadrinhos Angoulême, em 2018.
Durante a pandemia, Hanselmann passou a dar continuidade às histórias da turma no seu perfil no Instagram — agora, substituindo sua peculiar técnica de pintura (que inclui corantes alimentícios) pelo bom e velho lápis de cor. Confira aqui.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo