por Adolfo Gomes
Em uma arte de superfícies como o cinema, os espelhos são atalhos traiçoeiros. Podem dobrar a imagem – ou seria mais apropriado dizer “dublá-la”? Também são capazes de projetá-la wellesianamente pelos estilhaços do simulacro e até deformá-la. Sob qualquer regime de representação, esse “reflexo” é, muitas vezes, uma fonte criativa, sobretudo para um cineasta de estirpe lacunar, caso do chileno Raúl Ruiz.
Animado pelo mesmo espírito de curiosidade e aventura que a mítica Alice, o realizador põe em funcionamento sua característica matrioska narrativa em obra de 1967. É um filme póstumo, “O Tango do Viúvo e o Espelho Deformador”, e, ao mesmo tempo, o primeiro longa-metragem de Ruiz. Era considerado perdido até que alguns rolos sem a pista de som foram encontrados em um cinema de Santiago.
Coube a Valeria Sarmiento, por sua vez viúva do chileno, montadora e cineasta, trazer à tona tal extraordinária fantasmagoria – digna do gênio irônico e fantasioso de Ruiz (a ponto de imaginarmos se não foi o próprio a conceber esse sinuoso percurso, para além da diegese fílmica, como parte de sua poética e mitologia pessoais).
No filme, o personagem central é assombrado pela presença da mulher morta. A trama avança e retrocede de maneira lúdica. É uma obra perpassada pela consciência moderna da fluidez da imagem (não acredite no que vê), mas também conserva algo de inocente, do engenho à la Méliès (outra superfície, a Lua como astro de comédia-pastelão, por exemplo). Tal natureza, da prestidigitação, remonta o cinema ancestral.
Não menos estimulante, é o trabalho de Ruiz com o fora de campo. Os espelhos, as deformações estão todas lá, do outro lado da imagem. Sentimos sua força motriz através das projeções no corpo dos atores e na dublagem: vozes de 2019 que restituem falas silenciadas há várias décadas. Todo o filme é um corpo único: como foi feito, desaparecido, refeito e ressuscitado – o pós-filmagem, o acaso, a criação, a (re)montagem, o perdido definitivamente(?)… “O Tango do Viúvo e o Espelho Deformador” incorpora tais percalços, floresce através deles e se firma como uma obra-prima do hors-champ.
O 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba irá acontecer de 07 a 15 de outubro e será online em 2020. Você pode assistir “O Tango do Viúvo e o Espelho Deformador” na plataforma do festival nos dias 11 e 15/10.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)