A partir de uma das teorias da comunicação, esse ensaio foi feito tendo como base o filme “Broken Flowers” (2005), com Bill Murray. Apesar de ter sido escrito como uma análise da estrutura cognitiva da realidade, estudada por Frank Fearing (com base em seu livro “A Comunicação Humana”), e nos modos de comunicação não-verbal entre os personagens e os espectadores nos quesitos que abrangem música, imagem e comunicação pelo corpo, a leitura não exige um conhecimento acadêmico do assunto para uma boa compreensão. Dentre outros pontos abordados, está uma análise do eixo dos olhares travados entre os personagens e a observação das mensagens contidas em tais olhares. O texto se torna apenas mais uma maneira de apreciar essa tão valiosa obra de Jarmusch. A jornalista Paula Dume escreveu um texto publicado no Scream & Yell na época do lançamento.
Texto escrito em 2010 por João Paulo Barreto
A singularidade e a delicadeza apresentadas no modo de contar a história de um homem recém-descoberto pai de um rapaz de 19 anos e sua busca em saber quem é a mãe de tal rapaz, poderia, nas mãos de um ator inexperiente e sem o timing para comédia, cair na pieguice. Por sorte, o escolhido para viver o homem em busca da própria identidade foi Bill Murray.
O bon-vivant Don Johnson (numa piada contada diversas vezes no filme em sua relação ao equivalente espanhol do nome, Don Juan) vivido por Murray traz, com seu olhar triste e perdido no vazio, várias definições de quem ele é na análise do seu modo de encarar os fatos de fácil resolução, e na forma como ele precisa de um incentivo para ir ao encontro dos que realmente merecem sua atenção.
No filme, Don, após uma vida de conquistas amorosas, é um homem aparentemente com mais de 50 anos, aposentado, solteiro, bem sucedido no ramo de computadores, e ainda propenso a ter relacionamentos com mulheres bem mais jovens do que ele. A atual, Sherry (Julie Delpy, da trilogia “Before”, de Richard Linklater) resolve dar um basta naquele relacionamento sem futuro que apenas ela parece valorizar. “Eu pareço mais sua amante. E você nem é casado”, desabafa Sherry no momento em que resolve deixá-lo. Segundos antes, a frase “A eterna sede feminina por amor” é proferida pelo personagem Don Juan no filme que Johnson assiste. Uma referência ao comportamento que Sherry demonstraria logo depois.
Esta cena merece uma atenção especial, pois, implicitamente, o diretor Jim Jarmursh quis mostrar ao espectador um pouco do modo como Don parece enxergar Sherry. Colocando-a em perspectiva em relação a ele, a câmera mostra sua linha de visão voltada para a silhueta dos quadris da moça, uma clara alusão ao interesse supostamente apenas sexual que ele tem nela.
Neste primeiro diálogo do filme, percebe-se no eixo do olhar entre os personagens, um pouco da personalidade descompromissada (até um pouco infantil) de Don: quando exprime sua opinião sobre aquela despedida, ele olha diretamente nos olhos de Sherry (até tenta tocá-la para dar mais ênfase – o que ela não deixa que aconteça). No entanto, ao ouvir a opinião dela (bem mais contundente) sobre o fato, ele foge do seu olhar direto e fica por alguns segundos sem saber onde fixar o próprio.
Nota-se que a imaturidade de Don o incomoda e que ele não sabe, apesar de querer, pedir ajuda. “O que você quer, Sherry?”, ele pergunta, na esperança de que ela conduza aquela conversa e que, assim, ela flua de forma adulta. Ela apenas balança a cabeça em negação, o compara ao vizinho casado, feliz e com cinco filhos, e responde que não sabe o que quer, mas que tentará descobrir sozinha. “Talvez eu te telefone”, diz, ao sair da casa. Ao ouvir isso, a expressão de Don torna-se reflexiva como se já tivesse escutado tal frase antes. A diferença é que, nas outras vezes, ela foi proferida por ele mesmo. Daí sua perplexidade por escutá-la.
Voltemos agora aos primeiros minutos do filme. O som do dedilhar de uma máquina de escrever composto à visão de um contrastante envelope cor-de-rosa nos remete ao fato de que o conteúdo daquela carta trará sérias consequências. A palavra “collection” escrita na caixa dos correios nos remete, indiretamente, ao comportamento conquistador do personagem que ainda iríamos conhecer. A forma como a nostalgia será abordada no filme encontra ecos até na música cantada nos créditos iniciais, com um céu nublado mostrado junto aos nomes dos atores: “Eu tento ver através do disfarce, mas as nuvens lá no céu bloqueiam o sol… Toda estação tem seu fim”, canta Holly Golightly & The Greenhornes, como se para lembrar que não resta muito tempo para Don se esconder na sua figura de juventude e resolver sua nova situação. Tal céu nublado é uma analogia à dificuldade dele para encarar com clareza seus novos problemas.
A personalidade de Johnson é percebida logo nas primeiras cenas. Sua propriedade separa-se da pertencente ao seu vizinho etíope, Winston (Jeffrey Wright, de “Cassino Royalle”), apenas por uma cerca viva, mas a impressão que se tem é que a casa fica dentro de uma redoma, isolada hermética e acusticamente. Ele é um recluso, tímido e introspectivo (o que leva à reflexão das feridas que ele acumulou nos 20 anos passados já que, na carta cor-de-rosa, ele é descrito pela mãe de seu suposto filho como alguém falante e extrovertido: o que teria feito ele mudar tanto?) e sua casa demonstra justamente isso. A claridade do jardim não encontra continuidade em sua sala escura.
A funcionária dos correios parece sair de um mundo para outro ao entrar no gramado de Don. O barulho de crianças correndo e brincando é sobreposto pela candura do canto de pássaros; a sujeira no jardim de Winston (que tem, em sua maioria, latas de cerveja) reflete a criação liberta de dogmas sociais que ele, o etíope (numa afronta do diretor à cultura estadunidense), dá aos seus filhos, inclusive.
Curioso e válido de lembrança na relação da estruturação cognitiva trabalhada por Fearing da realidade é a proposição de análise do comportamento de Winston perante seus filhos. É o reflexo da imaturidade de pessoas que ainda têm comportamentos passíveis de advertência, mas que também devem servir de exemplo para outras. Fumar tabaco é condenável. Maconha, aceitável. Num impagável diálogo, Winston justifica-se para sua filha de não mais de oito anos (por quem acabara de ser recriminado), que aquilo que ele fuma não é tabaco, mas sim uma “pequena cheeba”. Don ratifica a declaração do amigo dizendo que é “somente cannabis sativa”. Um evidente exemplo da imaturidade dos personagens neste aspecto e sua dependência social – sem qualquer julgamento de valor. Apenas uma constatação da postura supostamente adulta e passível de contradições.
Mas voltemos a Don. A demonstração implícita da sua personalidade também é colocada em evidência na organização de sua casa: todos os móveis são organizados de forma individualista (válido observar como o sofá da sala é estrategicamente voltado para a TV de tela gigante, num reflexo da já citada individualidade do morador). Apesar de estar sempre agasalhado com roupas esportivas de cortes idênticos (como se fizesse frio), Don não se dá ao trabalho de acender a lareira na qual as flores partidas do título murcham (representando seu estado de espírito), o que chama atenção, mesmo que superficialmente, para sua acomodação e inércia.
Na TV, ironicamente, é exibida a cinebiografia de outro Don, este o conquistador espanhol Juan, alter ego do protagonista. Interessante o fato de a TV servir, no filme, como um lembrete para as reflexões de Johnson. Sempre que ela é ligada, surge uma referência à sua vida particular: “Retire-se enquanto ainda é lembrado como era”, aconselha um dos personagens do filme dentro do filme. Ao ouvir isso, Don muda seu foco de olhar, parecendo ter sido diretamente afetado por tal frase.
Os olhares trocados entre Don e as pessoas que o cercam relacionam-se diretamente a um texto apresentado por Fearing no que tange à mudança da conduta humana. Fearing escreve: “Para que ocorra uma mudança da conduta humana deverá haver um sentido compartilhado pelo produtor do estimulo e por quem lhe responde”. Esta definição é aplicada diretamente a outros exemplos do eixo dos olhares colocado no filme.
As cenas em que Winston dialoga com Don são compostas por uma série de contextos que corroboram a teoria de Fearing. Winston, em determinada cena, pede autorização para mudar a música clássica que toca no recinto para uma etíope, argumentando que ela faz bem ao coração. Nesse aspecto, a mensagem não-verbal é direta. Nos olhares travados por ambos nesta mesma cena, percebe-se um pedido de ajuda por parte de Don. Este não quer admitir que precisa ser ajudado. No diálogo, ele pede a Winston que esqueça tal assunto, que o suposto filho declarado existir na carta não passa de uma brincadeira de mau gosto. O etíope, notando a impaciência do amigo, decide esquecer também. O que se vê a seguir é uma troca de olhares que soa como um pedido de não desistência de Don para Winston. O primeiro olha para o segundo esperando alguma outra frase, até que este declara que não é justo deixar de lado algo que deve ser visto como um sinal.
Voltando a outro modo de encarar a estrutura cognitiva da realidade, a filha de Laura, personagem de Sharon Stone, chama-se Lolita, mas, aparentemente, desconhece a obra de Nabokov. No entanto, seu comportamento perante Don remete diretamente à relação de seu nome com a ficção literária (e também cinematográfica de Kubrick). Não apresentando pudor em caminhar nua na frente dele, ela transborda sensualidade em todos os seus diálogos. “Você acha que eu preciso ter irmãos?”, pergunta a Don quando este a questiona sobre tê-los. A postura que ela demonstra ao aproximar-se dele, usando um roupão de banho cor-de-rosa e o sorriso provocante, define muito bem o fato dela conhecer seu corpo e o poder que ele exala. A inconsequência é vista neste trecho de forma implícita. Ao jantarem juntos, Laura, sua filha e Don bebem vinho branco em grande quantidade. Laura reprime a filha, que abusa das taças, mas é ela quem acorda no dia seguinte sem lembrar como Don veio parar em sua cama.
As visitas de Don às suas ex-namoradas e sua observação do comportamento delas trazem uma análise ligada à seguinte definição de Fearing:
“Essas observações visam elucidar que as reações a estímulos nas situações de comunicação não são automáticas e mecânicas, mas, sim, dependem da totalidade de fatores culturais e de personalidade que cada pessoa leva para a situação”.
Dora (Frances Conroy, da série “A Sete Palmos”), a segunda visita de Don, apesar de ter sido hippie na juventude, hoje se apresenta como recatada e dedicada ao trabalho e marido. A cena dos três jantando, no começo em silêncio completo, para depois começarem a falar de negócios, coloca as duas famílias (a de Laura e a de Dora) em pontos extremos de comportamento: a primeira é vista como menos conservadora socialmente com seu frango e vinho branco para o jantar, enquanto a segunda mantém uma fachada de costumes elitistas em seus pratos arrumados como em restaurantes caros e em sua cozinha totalmente limpa. Nesta sequência, particularmente, nota-se a insegurança de Don em estar ali: todas as suas colocações são seguidas por olhares rápidos de um para o outro na esperança de não ter falado nada de errado.
Válido citar também o modo como Dora se comporta diante dos toques do marido em seu cabelo: ela não parece gostar. Age como um animal de estimação sendo acariciado.
A terceira visita de Don é Carmem (Jéssica Lange, de “Estrela Solitária”), outro exemplo do que Fearing classificaria na condição individual, psicológica, idiossincrática e subjetiva de se encarar a realidade a partir da estrutura cognitiva. Ela se diz uma comunicadora de animais. Literalmente, pode ouvi-los. Os livros vistos por Don na sala de espera de seu consultório levam a crer que ela realmente leva muito a sério seu trabalho. No entanto, é na sua fuga às perguntas de Johnson que se percebe que ela praticamente abdicou da comunicação humana em detrimento da animal, considerando-a bem mais importante. Vale citar que a análise da linguagem corporal nessa sequência é delicada: a sutileza do toque da recepcionista do consultório (Chloë Sevigny, de “Meninos não Choram”) na cintura da doutora faz o espectador perceber que Carmem abdicou, nos 20 anos passados, também de outros hábitos.
A penúltima visita de Don contrasta logo de início com as anteriores. Ao chegar onde vive Penny (Tilda Swinton, de “Conduta de Risco”), ele se vê obrigado a falar com um cachorro, indo de encontro à sua perplexidade diante do suposto dom de Carmem. Enquanto todas as outras mulheres o receberam com educação e cortesia, Penny demonstrou-se rancorosa e agressiva, ecos de uma mal-resolvida história entre ambos.
Nas mensagens que o local onde ela vive passam a Don, tudo leva a crer que dali partiu seu filho. Mas, àquela altura, a busca dele passou a ser por redenção e não pela origem de seu rebento. Lá está a máquina de escrever jogada ao chão como se descartada após cumprir sua última função. E lá também está alguém que não quer vê-lo. Após ser agredido pelo suposto namorado de Penny (que, contrastando com sua aparência violenta, parece tentar um diálogo civilizado com Johnson, falando sobre a insensatez de sua visita, para, finalmente, dar vazão à sua natureza com uma agressão), Don parte para encontrar-se com a última da lista, Michelle Pepe, morta cinco anos antes.
Esta última visita corrobora o fato de Don não mais estar em busca da mãe do seu filho, mas, sim, de sua identidade. Vale citar a pergunta de Sun Green, a floriculturista, ao ver o rosto ferido dele: “Você está bem?” ela pergunta, mesmo já sabendo a óbvia resposta. “Foi apenas um mal-entendido”, ele fala, e a resposta é suficiente para encerrar sua curiosidade. Ao receber um pequeno curativo no supercílio, Don agradece e um silêncio após as apresentações se segue. São poucos segundos (quatro, no máximo), mas o olhar dele é suficiente para salientar sua fragilidade emocional e a tensão romântica que o ato dela desencadeou nele.
Sua busca se encerra em uma cena cuja sutileza comprova o indubitável talento de Bill Murray: através dos seus olhos prestes a derramar lágrimas, a chuva se anuncia em paralelo ao choro de Don diante da lápide de Michele Pepe. Impossível não relacionar tal cena à já citada canção de abertura do filme, no trecho em que é cantado: “Primavera traz a chuva, com o inverno vem a dor, toda estação tem seu fim”. O escurecimento da cena (fade, recurso usado com frequência por Jim Jarmusch), complementa a beleza poética da sequência.
De volta à sua cidade, Don dorme no sofá de sua sala (mais uma vez demonstrando sua acomodação em não usar seu quarto para tal fim) e recebe mais um sinal da televisão: desta vez, um desenho animado o leva a pensar em sua paternidade. O filme se encerra com um equívoco por parte de Johnson, ao achar que um andarilho que desembarcou junto a ele é o seu filho.
Uma frase de Don para tal jovem (que usa um casaco praticamente idêntico ao dele) volta a corroborar Fearing, quando este escreveu que:
“na comunicação o produtor do estímulo (signo-símbolo) sempre formula certas suposições a respeito das capacidades e potencialidades da outra pessoa. Estas suposições podem ser gerais ou específicas; podem revelar-se fundamentalmente corretas ou totalmente errôneas; mas na situação de comunicação o produtor não pode deixar de fazê-las. Ele faz suposições até mesmo sobre as necessidades ou motivos daqueles cujo comportamento está tentando dirigir. Nesse caráter compartilhado das respostas repousa o seu ´significado´. Nenhuma comunicação ou significado socializado poderá existir sem que haja esse processo compartilhado através da mediação de certos estímulos chamados signos ou símbolos”.
Nesta frase, Don diz ao rapaz, que só porque ele quis lhe pagar um lanche, não significa que ele seja gay ou policial. A mesma definição de Fearing aplica-se à pergunta do garoto sobre a possibilidade de Don ser um gangster por ele ter aquele ferimento no rosto. Um não conhece o outro, mas, como “disse” Ramon, o gato de Carmem, Don tem intenções ocultas.
Sua busca o trouxe de volta à sua cidade com mais perguntas que respostas, e no olhar, roupas, face e música do rapaz dentro do carro observado pelo protagonista na cena final do filme, percebe-se que a solução procurada por Don Johnson veio até ele da forma mais sutil possível. Seu olhar esclarecedor no último close de Jarmusch corroborou isso.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.