texto por Leila Evelyn
Você compreende como se dá o curso dos rios? Tudo começa lá na nascente, onde a água que vêm do subterrâneo atinge a superfície e dá origem ao curso d’água. De maneira natural, a água segue seu caminho. Ocupa o leito em abundância, sem pedir licença e, por meio de suas fortes correntes, deságua em seu foz: outro rio, um lago, uma lagoa, o mar ou o oceano. Não parece incrível como quem não quer nada, ainda sem muita coragem, aqueles fios tímidos de água podem estar prestes a virar o oceano?
Como um rio, se deu o curso das águas no Festival Favela em Casa. Em março, quando fui convidada a participar da comunicação, a ideia era movimentar artistas e profissionais já preocupados com as contas à vencer e com as perspectivas alarmantes e iminentes, evidenciadas pela pandemia do novo coronavírus. Nas quebradas nunca foi fácil, mas de uma lacuna submergiu água limpa. Eu, como cria da Cidade Tiradentes, entendo e sinto na pele. Tomei como missão, entre indas e vindas, segurei no colo um sonho que também era meu, fiz a produção de conteúdo para as redes sociais do rolê.
Andressa Oliveira e Marcelo Rocha pensaram o Festival e reuniram um time majoritariamente preto e periférico para oferecer três dias e mais de 35 apresentações com múltiplas linguagens: música, teatro, dança, cinema e talks. Sabe como é, né? O quebradinha também quer tirar um lazer. Como se pode imaginar, foi preciso muito mais que três semanas para colocar esse trampo na rua, foram seis meses de um trabalho árduo que contou com a realização do Sesc SP.
O Festival aconteceu nos dias 18, 19 e 20 de setembro, cumprindo todas as medidas de segurança previstas pela OMS, tendo sido transmitido online pelo Canal do Festival Favela em Casa no Youtube e no Facebook. Além disso, também foi transmitido pela Rede TVT e pelos canais de Facebook das unidades do Sesc Campo Limpo, Carmo, Itaquera, Ipiranga, Parque Dom Pedro II, Santana, Santo André, São Caetano e Vila Mariana. Para quem não viu ou já está com saudade, as apresentações estão salvas e podem ser vistas agora mesmo no Canal do Favela.
A programação passou por uma curadoria minuciosa e, certamente, tem diversos detalhes imperdíveis. Da cenografia impecável com camisa de time e a clássica vendinha de doces, salgados e geladinho; passando pela iluminação adequada ao tom de pele negra e indígena… e, claro, entre muitas outras coisas, boa música. O que se destacou musicalmente você confere abaixo, mas fica o conselho: não perca de vista o Favela, muito está por vir, procure saber!
Cinco apresentações imperdíveis do Festival Favela em Casa
Como um bom festival, o Favela em Casa possibilitou aos artistas pequenos uma produção nível Marília Mendonça. A maioria das pessoas que se apresentou estava cantando em público pela primeira vez, como é o caso de Tonyyymon, um dos artistas mais potentes de se ver rimar no final de semana. Com desenvoltura e presença em palco, deixou claro todas as suas certezas.
Ainda sob entusiasmo e força da primeira apresentação, Caue Gas surpreendeu com desenvoltura em palco e uma caixinha cheia de sonhos. Ele quer ser mais e ele pode ser mais. Sua apresentação foi um sopro de vida, a lembrança do primeiro beijo e do primeiro tombo de bicicleta, tudo ao mesmo tempo. No camarim, ele afirmou com brilho no olho que aquela era a primeira oportunidade de muitas que estavam por vir.
Para quem se apega às histórias, uma das apresentações que merecem destaque foi a do grupo Os FerrAIS, o presente, passado e futuro, bem ali, na nossa frente. A filha, Alê Ferraz, e seu companheiro, Rodrigo Moura, tiraram da gaveta as letras de Jaldier Ferraz. O compositor estava feliz pelo reconhecimento depois de tantos anos de estrada e anonimato: “estamos vivos”, disse Alê durante apresentação.
Reforçando o grande apego às histórias, o dançarino Keyson IDD, também da Cidade Tiradentes, apresentou o passinho foda e o passinho do magrão. Eufórico no camarim, reclamava de dor por ter pisado em alguma pedrinha durante seu set. Enquanto descansava, pensava na imperceptível interferência dos obstáculos naquela apresentação. O funk é criminalizado, julgado e tido como menos importante, mas IDD continua tranquilo, dando o seu melhor.
Nayra Lays é uma das artistas mais incríveis de sua geração. Nay, para os mais intimos, está pronta. Tem uma mala cheia de propósitos e sonha sem freio. O palco se fez gira, sua voz preenche o espaço ao redor e, com composições profundas, envolve todos em uma atmosfera sagrada.
O foz das águas é sempre rico e fonte essencial para existência de outras vidas. É preciso ter respeito para com as águas, são sagradas, principalmente por que tudo começa lá daquela nascente do começo do texto, lembra? Mais que lives, da iniciativa do Festival Favela em Casa também surge um Fundo Emergencial Para Artistas e Coletivos de Favela de todo Brasil.
Em um contexto politicamente e economicamente caótico, contar com aporte financeiro é fundamental para manter a plena existência e atuação artística. Uma das convidadas, Nina Oliveira (em destaque na foto de Dieson Morais que abre o texto), descreveu o Festival como um “manifesto favelado”, o início de um projeto muito maior. E assim deságua, depois de um longo percurso, mas não parece nem mesmo de longe que já cumpriu com sua trajetória.
– Leila Evelyn é relações públicas e uma das criadoras do projeto Preta Comprando de Preta.