resenhas por Leonardo Tissot
“Aprendendo a Cair”, de Mikaël Ros (Editora Nemo)
Para fazer “Aprendendo a Cair” (“Der Umfall”), o cartunista alemão Mikaël Ross passou dois anos visitando frequentemente a comunidade Neuerkerode, habitada e administrada exclusivamente por pessoas com deficiência. De lá, Ross tirou a inspiração para contar a história do jovem Noel, um fã de AC/DC que vivia em Berlim até sua mãe sofrer um derrame — o livro é uma encomenda da associação responsável pelo espaço. A cada página, acompanhamos como Noel se adapta à nova realidade sem deixar de lado suas raízes — as lembranças de sua “mãezinha”, o gosto pela banda australiana e a saudade do apartamento da família na capital alemã —, porém, abrindo-se aos poucos para novas experiências: conhecer de perto o poder da amizade, as dificuldades de viver sozinho e os tortuosos caminhos do amor. Passagens hilárias, como a descoberta do sexo por meio de um filme pornô apresentado por outro morador de Neuerkerode, são intercaladas com capítulos que trazem à tona as emoções dos leitores. Um dos destaques é a cena de despedida da figura materna, representada por uma bailarina que surge sobre um cavalo branco — uma pitada de realismo fantástico que ajuda a tornar “Aprendendo a Cair” uma obra única. Ainda assim, a narrativa e os desenhos às vezes pecam pela falta de clareza do que está sendo apresentado. Vencedor do Max Und Moritz, o principal prêmio de quadrinhos da Alemanha, o livro lançado originalmente em 2018 chegou ao Brasil em agosto deste ano, com tradução de Renata Silveira.
“Traje de Rigor”, de Gustavo Lambreta (Conrad)
Mais um lançamento recente, “Traje de Rigor” (Conrad) é uma adaptação para os quadrinhos feita por Gustavo Lambreta para um conto de Marcos Rey (conhecido por romances adultos como “Memórias de um Gigolô” e clássicos infanto-juvenis da Coleção Vaga-Lume, como “O Rapto do Garoto de Ouro” e “O Mistério do Cinco Estrelas”, publicados pela editora Ática nos anos 1980). A poucas horas de seu aniversário de 37 anos, Otávio sai pela primeira vez com seu smoking novo em folha para se divertir em um baile. Ao encontrar alguns conhecidos em um bar, acaba sugado pela noite paulistana: come, bebe, dá discursos, visita prostíbulos e se mete em brigas, acompanhado de três figuras que incluem um repórter policial que tenta vender um revólver, um antigo cantor de óperas e um pai de família que carrega consigo uma lata de leite Ninho. A adaptação é elegante e o andamento é fluido, embora o traço de Lambreta às vezes pareça limpo demais para a história que está sendo contada. Além disso, a experiência de leitura não é a melhor em um dispositivo digital, e uma edição impressa valorizaria ainda mais a arte e a narrativa deste belo conto — que, com um e outro retoque, não faria feio como uma história do mago britânico John Constantine.
“A Solidão de um Quadrinho Sem Fim”, Adrian Tomine (Editora Nemo)
Adrian Tomine é um dos quadrinistas mais venerados dos últimos anos. Com uma vasta carreira que inclui a série “Optic Nerve”, capas da New Yorker e a premiada graphic novel “Intrusos”, o artista nipo-americano relembra causos de sua vida como fã e como profissional da área em “A Solidão de um Quadrinho Sem Fim” (“The Loneliness of a Long-Distance Cartoonist”, 2020). Uma espécie de autobiografia em forma de HQ, o livro começa com uma cena ocorrida em uma escola em Fresno (EUA), em 1982, quando o pequeno Adrian percebe que sua obsessão pelo Homem-Aranha (e, especialmente, pelos artistas que criam suas histórias) pode não ser compartilhada com a mesma intensidade pelos colegas de escola. Ao longo dos anos, a “solidão” do título da obra apenas se acentua na vida de Tomine, mesmo com uma carreira consolidada e admirada na nona arte. Momentos embaraçosos envolvendo jornalistas, outros quadrinistas, donos de comic shops, organizadores de eventos, admiradores e detratores demonstram como a vida de um artista pode ser repleta de sucesso profissional e, ao mesmo tempo, contaminada pela indiferença de grande parte das pessoas — mesmo aquelas que habitam o universo dos quadrinhos. Tomine acerta ao não fazer de sua trajetória um muro de lamentações. O artista encara as situações retratadas no livro com bom humor — inclusive, mais do que ele parece ter na vida real —, o que faz de “A Solidão de um Quadrinho Sem Fim” uma das HQs mais engraçadas (de gargalhar alto mesmo) dos últimos tempos. O traço mais cartunesco, que ele já havia utilizado em trabalhos como o também autobiográfico “Scenes From an Impending Marriage” (inédito no Brasil), ajuda a suavizar o tom na comparação com seus trabalhos mais carregados no drama, nos quais ilustrações realistas são o recurso mais utilizado. Aqui, Tomine está mais para Samanta Flôor do que para Daniel Clowes. O livro chegou ao mercado americano em julho de 2020 e foi lançado no Brasil logo depois, no final de setembro, no mesmo formato moleskine da edição original (uma escolha que é explicada na própria história). A tradução é de Érico Assis.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo