por Marcelo Costa
No começo de 2019, James Dean Bradfiled, a voz dos Manics, ficou balançado com um livro de poemas do irmão de seu parceiro Nick Wire, o poeta galês Patrick Jones. Era um livro que falava sobre Victor Jara, professor, diretor de teatro, poeta, cantor, compositor, músico e ativista político chileno que, logo após o golpe militar que elevou Pinochet ao poder em 11 de setembro de 1973, foi preso, torturado por dias, fuzilado e que teve seu corpo abandonado numa favela.
Os Estado Chileno assumiu o crime apenas nos anos 90 (assista a “Massacre no Estádio“, no Netflix), por meio da Comissão da Verdade e da Reconciliação. De acordo com a autópsia, Víctor Jara tinha 44 marcas de bala e numerosos ossos fraturados. Na exumação do corpo, realizada em junho de 2009, foi confirmado que suas mãos haviam sido esmagadas por coronhadas dos soldados como parte do “castigo” dos militares a seu trabalho de conscientização social dos setores mais desfavorecidos da sociedade chilena.
Com o texto de Jones em mãos, Bradfiled se isolou no estúdio do Manics no País de Gales para gravar, praticamente sozinho, “Even in Exile” (2020), seu segundo disco solo – o primeiro, “The Great Western”, foi lançado em 2006. São 14 anos que separam os dois álbuns, mas James parece ter sua sonoridade de banda pronta na cabeça, pois ambos apostam em “guitarradas hard rock, acelerações punk, orquestrações new progressive e batidas de violões”.
Porém, se aqui e ali em “The Great Western” surgia um leve aceno pop (como na grande canção “Bad Boys em Painkillers”), em “Even in Exile” isso soa mais distante. E se você pegar os três últimos discos do Manics, também perceberá uma reflexão e densidade – principalmente no belo “Rewind The Film” – que pouco tem relação com a leveza de muitas canções de “Postcards from a Young Man” (2010). Mudou o mundo para pior nos anos 10, e isso parece estampado no som do Manics e de James.
Não é momento para canções pop, parece defender James, por isso “Even in Exile” soa como uma bela elegia em homenagem ao ativista chileno. É um disco poético, sério e influenciado por Pink Floyd e Rush, The Bad Plus e Johnny Marr, pelo John Cale do majestoso “Paris 1919” e pelo Led Zeppelin de “Houses of The Holy”. James ainda lista Husker Dü, Death, Jeff Beck e Violeta Parra entre as influências, e só ele mesmo para fazer tudo soar tão homogêneo.
Um violão abre o disco com “Recuerda” pedindo para que o ouvinte se lembre de Thatcher, Nixon e Pinochet e como a liberdade desapareceu para que não os obedecia. Antes de um minuto, a canção explode com as guitarradas que são a marca de James no Manics enquanto a letra pretende nos encher de esperança: “O que uma vez foi perdido será encontrado novamente / O que é verdade sempre transcenderá”. Tomara.
O mais próximo que o disco chega de uma faixa pop é na smithiana “The Boy From Plantation”, que, nesses dias cinzas e difíceis, com o futuro cada vez mais distante e o novo normal cada vez mais perto, pode trazer algumas lágrimas aos olhos com sua narrativa que imagina a mãe, que ensinou o ativista a tocar violão, embalando Victor Lidio Jara Martinez, “o menino da plantação que cantava sobre sonhos e injustiças”, um crime terrível num período ditatorial.
“There’ll Come a War” se conecta com “Preguntas por Puerto Montt”, de Victor Jara, enquanto a instrumental “Seeking the Room with the Three Windows” foi inspirada por uma foto de Jara com seu violão em Machu Picchu – o Templo das Três Janelas é um dos locais históricos da cidade perdida dos Incas. “Thirty Thousand Milk Bottles” combina o programa de leite gratuito promovido pelo governo Allende com as 30 mil pessoas desaparecidas no período ditatorial.
A idílica, cinematográfica e instrumental “Under the Mimosa Tree” (que remete ao Manics de “Rewind The Film”) foi inspirada em uma passagem do livro “An Unfinished Song”, escrito por Joan, a viúva de Jara, que descreve um jantar em família debaixo da árvore que dá título a música. Já “From the Hands of Violeta” alterna climas enquanto fala da influencia intensa que a música e as artes de Violeta Parra exerceram sobre Victor Jara.
Após o assassinato do marido torturado, o cadáver de Jara foi levado à câmara mortuária, onde foi identificado pela esposa, a bailarina britânica Joan Turner, que em seguida partiu para o exílio na Inglaterra com suas duas filhas. Retornou ao Chile no meio dos anos 80, criou uma companhia de dança e montou a Fundación Víctor Jara, tornando-se uma importante ativista contra a ditadura militar – em 2009, o senado concedeu a ela a nacionalidade chilena. Joan é a homenageada da belíssima “Without Knowing the End (Joan’s Song)”.
Lendo sobre as viúvas dos desaparecidos procurando os restos mortais de seus entes queridos no deserto do Atacama, James tentou cantar alguma canção de Victor, e acabou optando por um tema instrumental do artista chileno, “La Partida”, do álbum “El Derecho de Vivir En Paz” (1971). Há uma leve sensação de tristeza, que o refrão de “The Last Song” apenas amplifica: “Eles pegaram suas mãos / Mas não conseguiram silenciar sua língua”.
Para fechar, “Santiago Sunrise” foca nas manifestações que tomaram as ruas de Santiago em 2019 e avisa, no refrão, “Você nunca vai cruzar o rio se você está com medo de se molhar” – mais de 1,2 milhão de pessoas “cruzaram o rio” concentrando na Plaza Italia, centro nervoso da capital chilena, cantando “El Baile de Los Que Sobran”, sucesso do grupo Los Prisioneros que se tornou popular nos anos 80, e “El Derecho de Vivir En Paz”, de Victor Jara.
Em 11 faixas e quase 50 minutos, James Dean Bradfield traz Victor Jara a 2020 para mostrar o quanto a força de uma vida continua após a morte, tornando o passado vivo, e que mesmo com a ditadura avançado sobre nós, temos um futuro a construir. Por Jara, por tantos que tentaram e tentam construir um mundo melhor, e por nós mesmos. De certa maneira, ele reedita a ideia de que se tolerarmos tudo isso, nossos filhos serão os próximos.
Melhor abrir os olhos (e os ouvidos). E cerrar os punhos.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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– Três discos: “Forever Delayed”, “Lipstick Traces” e “Lifeblood” (aqui)
– “Journal For Plague Lovers”, Manic Street Preachers: sonoridade árida (aqui)
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