resenha por Leonardo Tissot
Após 84 anos bem vividos, Woody Allen resolveu contar sua história na autobiografia “Apropos of Nothing” (Arcade), lançada nos Estados Unidos e Europa no primeiro semestre de 2020. Não sem antes enfrentar uma polêmica com a Hachette, editora original da obra, que acabou desistindo da publicação em função de um protesto de funcionários e do boicote por parte da ex-companheira do autor, a atriz Mia Farrow, e do filho do casal, o jornalista Ronan Farrow.
Em 392 páginas que fluem harmonicamente entre o drama e a comédia, como os principais filmes do diretor nova-iorquino, Allen resgata suas memórias desde a infância no Brooklyn, entre os anos 30 e 40, passando pelo início da carreira como escritor de piadas para comediantes já estabelecidos na cena local, suas primeiras experiências no cinema, a conquista do público e da crítica nos anos 70 e, finalmente, os dissabores promovidos por Farrow e o “cancelamento” do artista no século XXI.
Aliás, “Apropos of Nothing” surge em um momento no qual Allen vem sofrendo um verdadeiro boicote na indústria do cinema nos Estados Unidos, após as renovadas acusações da ex e da filha adotiva do casal, Dylan, a respeito de um suposto crime de violência sexual cometido pelo diretor quando a menina tinha apenas sete anos de idade.
Pela primeira vez, o cineasta entra em detalhes sobre o que chama de “falsas alegações”. Você já deve conhecer a história: em 1992, Allen (na época com 56 anos) e Soon-Yi Previn (outra filha adotiva de Farrow, então com 22 anos), passaram a viver um relacionamento. A partir daí, uma montanha-russa de acontecimentos levou Farrow a acusar Allen do suposto abuso a Dylan, que teria ocorrido em uma casa de campo da atriz, em Connecticut. O processo não foi levado adiante pela justiça americana após duas investigações bastante detalhadas, com direito a depoimento mediado por um detector de mentiras. Allen passou no teste, enquanto Farrow se recusou a se submeter ao polígrafo.
Apesar do tom divertido, diretor fala sério na hora de contar sua versão a respeito das acusações de abuso sexual. O cineasta dedica boa parte do livro para se defender. Diz que, na época, o caso foi considerado uma fabricação por parte de Farrow, por não haver qualquer evidência de que Dylan havia sido molestada — versão corroborada por testemunhas como babás e até mesmo Moses Farrow, filho adotivo de Mia que ficou ao lado de Allen na disputa. Não é que Dylan ainda esteja mentindo, na opinião de Allen. O diretor acredita que ela é uma vítima, sim, mas da própria mãe, após anos e anos ouvindo-a martelar insistentemente que teria sido abusada pelo pai. Isso justificaria, inclusive, seus depoimentos recentes acerca do ocorrido há 28 anos. Há estudos que comprovam essa possibilidade.
Ainda assim, os detalhes são bastante complexos. Mesmo sem encontrar evidências, o juiz do caso, o controverso Elliot Wilk, já falecido, definiu que Dylan precisava ser protegida e Allen perdeu o direito de visitação à filha, enquanto Ronan podia ver o pai apenas acompanhado de um assistente social. O diretor desistiu de conviver com o filho após um ano, argumentando que o tempo passado com ele era insuficiente para construir um verdadeiro laço familiar. Além disso, Mia declarou que Ronan poderia, na verdade, ser filho de Frank Sinatra.
Mas o melhor do livro, porém, fica para o resgate das memórias do autor como comediante stand-up, diretor de cinema e músico amador. Para quem tem a oportunidade de ler a obra em inglês, é inevitável “escutar” a própria voz do artista enquanto as páginas são devoradas. O estilo conversado, inclusive, remete à cena final de “Manhattan”, filme de 1979 no qual o personagem Isaac Davis (interpretado pelo próprio Allen) deita-se no sofá e, com a ajuda de um gravador, começa a registrar em áudio tudo o que “faz a vida valer a pena”.
O livro começa com a narrativa da infância do jovem Allan Konigsberg (nome real do artista) e sua vida em meio a uma família judia de classe média baixa. Suas diversões eram ler gibis do Batman e ouvir as doces melodias de Cole Porter nas estações locais — o período inspirou o filme “A Era do Rádio”, de 1987. O processo de criação de um nome mais marcante para sua persona humorística também é revelado, além de detalhes sobre sua paixão pelo beisebol e, é claro, pelo cinema.
Entre os destaques hilários dos capítulos iniciais estão parentes de nomes engraçados como Phil Wasserman e “o outro Phil Wasserman” (um deles, um assessor de imprensa que deu o impulso inicial à carreira do comediante) e a história curiosa de como seu pai, Martin, presenteou-o com sua primeira máquina de escrever. O item foi comprado — por módicos dois dólares — de vizinhos que costumavam furtar bens e objetos alheios.
Allen também busca se afastar da imagem de “cineasta intelectual”. Diz que foi criado à base de histórias em quadrinhos, esportes e jazz — “a música pop da época”, segundo o autor. Leu alguns livros de filosofia e autores russos apenas “para impressionar as garotas”, usando uma referência aqui e outra ali em sua obra. E repete o que já afirmou em incontáveis entrevistas: quando está filmando, só quer terminar o que precisa ser feito rapidamente e voltar para casa a tempo de assistir ao jogo (geralmente, de beisebol ou basquete). Seu “método” de direção ignora a necessidade de ensaios e vai direto para a captação de takes reais, sem espaço para experimentar novos ângulos de câmera ou garantir tomadas de segurança.
Allen enche colaboradores de elogios, mas ironiza os que se voltaram contra ele. A relação produtiva com uma série de colaboradores, incluindo diretores de fotografia premiados como Carlo Di Palma, Gordon Willis e Sven Nykvist, o designer de produção Santo Loquasto e as atrizes Emma Stone, Scarlett Johansson e Diane Keaton — a última, responsável pela divertida foto da contracapa do livro que abre o texto — são o ponto alto de “Apropos of Nothing”. Apesar de passar por praticamente todos os filmes de sua extensa carreira ao longo da narrativa, poucos detalhes são compartilhados a respeito de cada obra individualmente. O livro de entrevistas “Conversas com Woody Allen” (Cosac Naify), de Eric Lax, é mais revelador neste sentido.
Embora não deixe de comentar as fases difíceis, a autobiografia ainda assim diverte pelo tom jocoso e sarcástico com que Allen revive sua própria trajetória. Além das disputas com o clã Farrow, o autor relembra os maus momentos vividos no segundo casamento, com a atriz Louise Lasser (repleto de infidelidades e distúrbios emocionais), e ainda destaca a decepção com o fato de ter sido abandonado por dezenas de atores e atrizes com quem trabalhou ao longo dos anos, em função de seu “cancelamento”.
Mesmo nos trechos mais doloridos, o autor não deixa de dar suas alfinetadas. Uma das “vítimas” é Timothée Chalamet, o jovem protagonista do mais recente filme de Allen, “Um Dia de Chuva em Nova York” (2019). “Ele disse que doaria o cachê ganho pelo filme para vítimas de abuso sexual, mas confessou para minha irmã (a produtora Letty Aronson) que só estava fazendo aquilo porque seu agente mandou”, ironiza. Ele ainda critica, de forma serena, a ingenuidade dos colegas que simplesmente acreditaram na versão do abuso a Dylan sem conhecer os detalhes do caso e, também, aqueles que o evitam mesmo crendo em sua inocência. Uma das exceções é o diretor de “Woody Allen: Um Documentário” e da série “Curb Your Enthusiasm”, Robert B. Weide, que vem publicando evidências e destilando provocações a Ronan Farrow em seu blog dedicado ao assunto.
Allen ainda demonstra incômodo com a maneira como a própria imprensa americana comprou a versão novamente mais de 20 anos depois, sem nenhum fato novo relevante que pudesse servir de motivo para isso. As informações apuradas pela justiça permanecem as mesmas e, diferentemente de outros casos comprovadamente reais envolvendo abusadores em Hollywood, este permanece com as evidências favoráveis ao cineasta. “Ainda assim, colocam minha foto ao lado de imagens deles”, lamenta.
Com uma narrativa simples e diversos momentos de chorar de rir, “Apropos of Nothing” é um prato cheio para os fãs do diretor, famintos por novidades desde que o ciclo anual de filmes lançados por ele foi interrompido, em função das dificuldades de financiamento. No Brasil, a Globo Livros comprou os direitos de publicação e uma versão nacional da obra deve chegar ao mercado ainda em 2020, com tradução de Santiago Nazarian.
Se, como diz o ditado, a melhor vingança é viver bem, Woody Allen já teve sua revanche. Apesar das dificuldades para filmar e das cicatrizes emocionais de perder o contato com os filhos, o cineasta está casado há mais de 20 anos com Soon-Yi e é pai adotivo de duas jovens que atualmente cursam faculdade nos Estados Unidos. “Aliás, quem entregaria duas crianças para um abusador criar?”, Allen questiona.
Como ele mesmo diz, se nunca mais puder fazer um filme na vida, considera que já produziu mais do que o suficiente — e ele garante que se satisfaria da mesma forma montando peças ou publicando romances. Ainda assim, “Rifkin’s Festival” (2020), seu próximo lançamento, já foi financiado e filmado na Europa — onde ele permanece com seu status inabalado de lenda viva do cinema — e tem estreia prevista para setembro de 2020, no Festival de San Sebastián, na Espanha. Será seu quinquagésimo filme como diretor.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista especializado em comunicação corporativa e produção de conteúdo