Entrevista, fotos e vídeo por Nelson Oliveira
Teclar os caracteres que formam uma frase ousada é como, guardadas as devidas proporções, compor ao piano uma linha melódica surpreendente, colorida, soturna ou simplesmente singular – na falta de adjetivos que venham a preencher o sobressalto causado pela sequência de notas. Tomar tal atitude nas linhas iniciais de um texto é como tentar criar uma obra-prima na primeira tentativa, ‘tout de suite’, mas topamos o risco porque falamos de alguém que também aceitaria essa condição.
Portanto, lá vamos nós: a música instrumental brasileira vive uma era de popularidade e apuramento poucas vezes vista na história do país. Atualmente, temos grupos de diversas vertentes, de Quartabê e Orkestra Rumpilezz a Hurtmold e Gabriel Thomaz Trio. Entre eles, um dos nomes mais pujantes da cena do jazz: Amaro Freitas, reconhecido pelas apresentações vigorosas e carismáticas que faz com seu trio, ao qual se juntam Jean Elton (baixo acústico) e Hugo Medeiros (bateria).
O pianista pernambucano ganhou relevo em 2016, quando estreou com “Sangue Negro”. O respaldo da crítica e do público cresceu mais ainda depois que gravou “Rasif” (2018), trabalho em que mistura de forma mais intensa o jazz a ritmos populares em Pernambuco, como frevo, coco e baião. Amaro Freitas circulou pelo Brasil, pelos Estados Unidos e pela Europa com o segundo disco e, no primeiro semestre de 2020, faz a sua turnê de encerramento.
As novas viagens de Amaro Freitas tiveram início em Salvador, onde o Scream & Yell falou com o músico após um show vibrante, em que foi aclamado pela Sala do Coro do Teatro Castro Alves – lotada em plena terça-feira, 12 de fevereiro, pré-carnaval. Depois de ser acarinhado pelo público soteropolitano, o pernambucano conversou sobre seu processo de criação e nos adiantou que vem trabalho novo no segundo semestre, com influências do folclore maranhense e de mitos africanos. Confira, abaixo, a conversa na íntegra.
O que te levou a misturar o jazz a ritmos do Nordeste, como o coco, o frevo e o baião?
Meu primeiro contato com música foi na igreja e com meu pai, que é músico e me ensinou os primeiros acordes e movimentos. Quando eu tinha 15 anos eu ganhei um DVD de jazz e fiquei de cara com o tipo de música que era feita no jazz, sabe? Era uma outra relação, diferente da música da igreja, que era muito consonante e a do jazz, muito dissonante. Eu fui vivenciando isso vindo de uma família humilde, recebendo discografias de alguns artistas baixadas e gravadas em CDs. Quando fiz 19 anos, comecei a ter mais contato com a música pernambucana… o forró, o baião, o maracatu, Alceu Valença, o movimento manguebeat, Nação Zumbi, Capiba, Moacir Santos, Lenine… e também fico de cara com aquilo. Ao mesmo tempo, aquilo entra com uma facilidade que eu não imaginava e eu entendo que isso é a conexão com a ancestralidade. Aquilo já existia em mim e eu não sabia, só fui descobrir quando fiz faculdade de produção fonográfica. Foi um portal que me levou para outro lugar. Só que o jazz já tinha sido injetado e eu já estava “envenenado” pelo jazz. Então quando começo a produzir essa música pernambucana, eu já faço pensando no jazz.
Curioso. Meio que um caminho inverso, né? Conhecer algo de fora e só depois o que está perto de você.
Sim, um caminho inverso, mas aconteceu com muita naturalidade. E gerou uma mistura que tem essa naturalidade e que eu poderia dizer que é original, sem aquela coisa plástica, forçada, tentando fazer uma fusão superficial. É uma fusão que tem certa profundidade, porque é a minha verdade e tudo aquilo que me completa, algo que sai de mim de forma natural.
E como esse caminho “diferente” impactou na forma de produzir o seu trabalho?
Quando eu começo a compor, eu vejo numa palestra do Maestro Spok que na época que o jazz estava começando a ser desenvolvido com bandas marciais, o frevo também estava sendo gestado em Pernambuco, com as pessoas dançando, as agremiações. No mesmo período, aconteciam coisas muito parecidas, mas que deram em produtos diferentes, por causa do contexto em que elas estavam se desenvolvendo. São duas vertentes que nascem das pessoas mais humildes, dos negros, dos pobres, de pessoas que precisavam de um escape para uma dinâmica de vida que era muito agressiva, de exploração. Com o tempo, acabou havendo uma apropriação e um embranquecimento desses gêneros. Uma vez um professor da Universidade Federal de Pernambuco deu uma entrevista sobre mim e disse de uma forma romântica: “Amaro é um cara que resgata o que nos foi tirado”, tanto falando no sentido mais universal, que é o jazz, quanto pensando em algo mais local, que é o frevo. Hoje a gente tem o Paço do Frevo, em Recife, que é um lugar maravilhoso, aberto, mas que (de forma natural, estabelecido culturalmente) muita gente que faz um frevo mais roots não tem acesso porque se sente ignorante demais para estar naquele lugar. Então, me dá muito prazer esse resgate de fazer shows na rua para esse pessoal, como a gente fez recentemente com o Hamilton de Holanda no aniversário do Paço. Isso é altamente importante para mim.
“Rasif” é uma referência a Recife, de onde você vem, e o álbum trabalha com diversos ritmos pernambucanos ou afro-brasileiros fortes no estado. Nos seus próximos trabalhos, você tem interesse de imergir na cultura rítmica de outros lugares do Brasil?
Engraçado você falar sobre isso, porque o terceiro disco, que a gente tá produzindo agora, tem algumas outras coisas que não pertencem diretamente a Pernambuco. Não pertencem mesmo, sabe? Como o boi do Maranhão, por exemplo. Tem o cazumbá, por exemplo, que eu estudei para uma música que eu já compus, que é sobre essa figura meio híbrida, que não tem sexo e é meio curiosa, que assusta as pessoas. Então esse disco não deve ter nada tão diretamente ligado a Pernambuco. Eu ainda estou estudando isso, mas tem coisas que vamos fazer que não tem nem rótulo.
Então eu imagino que você esteja escutando coisas bem diferentes. Quais são tuas referências agora?
Isso tem a ver com a vivência atual. Se você for olhar, “Sangue Negro” é totalmente diferente do “Rasif”. Talvez o primeiro seja mais jazz do que pernambucano e brasileiro, e eu acho que o “Rasif” vem mais brasileiro, mais influenciado pelo coco. Mas no terceiro disco… eu dei a volta no mundo com o “Rasif”, ouvi muita coisa na Europa, muita coisa em São Paulo, muita coisa em Nova Iorque. Então tem muita música sem rótulo, que está relacionada com provérbios africanos. É um disco em que eu vou trabalhar muito mais essa ancestralidade. Vai ser muito mais relacionado a provérbios, a personagens, a ritmos que lembrem esse africanidade, mas não necessariamente tocando a clave ou o ritmo desse lugar, sabe? Eu tenho essa com a história sobre o cazumbá, que é esse personagem do bumba-meu-boi, e eu compus algo que eu sinto sobre a história dele. Tem músicas que não estão relacionadas com a música daquela região, mas com entender a poesia, sentir algo e começar a criar pensando nisso. Porque isso também é ancestralidade. É você pensar que ela é como um fio que tem continuidade e vai sofrendo modificações com o tempo. Hoje eu vivo num espaço-tempo diferente de quem veio antes, então quando essas histórias e ritmos chegam para mim, temos uma outra concepção até de poesia, pensando de forma literária.
E esse novo disco sai em 2020 ainda?
O trabalho vai ser lançado no segundo semestre. A gente já vai começar a gravar e temos confirmadas algumas participações, mas não posso falar ainda. Posso adiantar que o Hamilton de Holanda vai participar do disco e acho que teremos um baiano também.
Para encerrar, vou te fazer uma pergunta que você deve escutar muito. Além de bem enérgico no piano, você interage bastante com o público e tem uma voz super afinada. Você pensa em inserir elementos vocais nesse próximo trabalho ou em outro projeto?
Nunca pensei. Na verdade, a minha onda com a música instrumental é até um protesto contra isso de sempre ter que ter voz. De entender a música, falando a grosso modo, como algo com letra. Nosso povo é maravilhoso, mas infelizmente não teve acesso a esse tipo de conteúdo e às vezes rolam uns comentários do tipo “pô, como é que alguém gosta disso?” [de música instrumental]. Mas é porque a pessoa não teve acesso. E eu sempre tive vontade de mostrar que é possível, sim. Vontade de poder conectar o que eu faço com as pessoas. Então eu não sei se um dia eu vou colocar voz, porque meu protesto é real. Porque tem gente até dentro da classe que pensa que artista é o cantor, que o restante é “só” músico. Essa é uma lógica que não bate, para mim tá todo mundo no mesmo barco. Em grande parte das vezes, se o músico não cria os arranjos e faz o cantor “ter sentido”, o próprio cantor não consegue, não tem capacidade de produzir. Acho que ter esse cuidado com a música instrumental e poder impulsioná-la é gratificante. Se um dia eu quiser cantar, eu vou cantar, mas por que não fazer só o instrumental? Se um dia eu quiser me mudar de Recife, beleza, eu vou me mudar. Mas por que não ficar? Por que sempre temos que sair? São coisas que eu sempre penso. E eu quero me ver livre para fazer o que eu quiser.
– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE.