Texto por Daniel Abreu
Michael Peter Balzary nasceu no dia 16 de outubro de 1962 em Melbourne, Austrália. Por conta da carreira do pai, o jovem Michael se mudou com a família para os Estados Unidos no final dos anos 60. Com o divórcio dos pais, se mudou para Los Angeles com a irmã, a mãe e o padrasto, Walter, um músico de jazz. Foi na ensolarada Califórnia que um moleque mirrado, estranho e com sotaque diferente, se tornou um dos principais baixistas da história do rock e fundador de uma das bandas mais influentes dos anos 80 e 90.
O Red Hot Chili Peppers, a banda desse tal de Michael, já vendeu milhões de discos desde a sua estreia com o álbum homônimo de 1984 e, mesmo com as mudanças na indústria da música, continua lotando estádios em todo o mundo. Mais conhecido por todos como Flea, o australiano é um dos membros fundadores do grupo e uma das principais forças do conjunto. Seu jeito único de tocar, influenciado por diversos estilos, do funk do Parliament ao punk do Germs, e o modo aloprado como ele se comporta no palco, são algumas das características que fazem da banda tão amada até os dias atuais.
Mas dessa vez Flea não é notícia por conta de suas linhas de baixo, mas sim pelas linhas da sua excelente autobiografia “Acid For the Children”, na qual conta a trajetória de sua vida até o primeiro show dos Chili Peppers em 1983. O livro de memórias foi publicado pela editora nova-iorquina Grand Central Publishing, uma divisão do Hachette Book Group (anteriormente, Warner Books, que mudou de nome depois que a Time Warner vendeu o Time Warner Book Group para a Hachette) no começo de novembro de 2019 e ainda não tem previsão de lançamento no Brasil.
Com uma escrita honesta e muitas vezes excêntrica, o músico narra em quase 400 páginas uma sequência de eventos que resultaram naquele show, no Grandia Room, em Hollywood, no qual o grupo ainda se chamava Tony Flow and the Miraculously Majestic Masters of Mayhem. Em um primeiro momento pode soar um pouco decepcionante. Uma das principais figuras da música só falando de um período de sua vida, no qual para muitos fãs não é o mais relevante. Porém, para entender o ser humano Michael, é muito importante conhecer as histórias que moldaram o pequeno Balzary no homem que ele é atualmente.
A obra é composta por diversos capítulos, a maioria de uma, duas, ou três páginas, e com títulos muito peculiares. É incrível como ele consegue descrever com uma riqueza de detalhes pessoas que fizeram parte da sua infância – quando a maioria das pessoas muitas vezes não consegue lembrar o que tomou de café da manhã. Por exemplo, no capítulo “Riot Girl”, ele conta a respeito de uma senhora que ministrava aulas de trompete de forma vívida. “A senhora Sager tinha 65 anos, uma mulher pálida e rotunda com óculos grossos e roupas de poliéster estampadas engraçadas, com cores vivas e coordenadas. Uma grande figura, em seu pequeno e escuro apartamento, com pilhas desorganizadas de partituras, trompetes e outros equipamentos musicais ocupando todo o espaço que não era uma cadeira ou um suporte musical”.
O livro poderia muito bem ter como subtítulo “Sinceridade”, por conta das inúmeras vezes em que o autor é verdadeiro e aberto com o leitor. Flea descreve que durante toda a sua infância sempre se sentiu um estranho, deslocado do restante de seus pares, porém nas ruas de Los Angeles ele encontrou almas também desajustadas. Artistas, músicos, poetas, pintores, ladrões de carteira, viciados, traficantes, todos esses personagens fizeram com que se sentisse parte de alguma coisa. Nesse cenário, o destino colocou duas importantes figuras em sua vida, Hillel Slovak e Anthony Kiedis.
Suas palavras transbordam emoção quando ele fala com carinho de Slovak. “Zilhões de poderosas memórias viajam dentro de mim, eu estou perdido em uma grossa floresta de emoções quando eu escrevo seu nome. Eu estou incapacitado para direcionar a tinta desta caneta para fazer as marcas que descrevam o profundo e complicado jovem que ele era”, escreve no capítulo “A Slovakian Influence”. O guitarrista viria a falecer com apenas 26 anos, após uma overdose de heroína que deixaria profundas marcas no jovem Michael. “Pelo tempo que eu viver, eu saberei que falhei. Por favor me perdoe, Hillel, eu não sabia, eu estava cego pelas únicas coisas que me davam visão, e poluído com arrogância e ambição. Se apenas. Se apenas eu soubesse o que o amor era”…
Já quando o assunto é Kiedis, a história é um pouco mais complicada. “Eu começo a escrever sobre o meu relacionamento com Anthony, eu tenho que fazer uma pausa e me afastar da minha mesa […] Eu estou com medo de envenenar as coisas entre nós, ou assustar a mágica disso ao tentar entender, mas que seja. Aí vou eu”, declara durante o capítulo “Animal Nature”.
Juntos desde os tempos que Flea tocava trompete na Fair Fax HighSchool, os dois são os únicos membros originais do Red Hot Chili Peppers até hoje. Portanto, é compreensível que em décadas de amizade e companheirismo, amor e magoas foram compartilhadas. Mas o jeito amoroso, quase transcendental com que ele fala de seu amigo, é lindo e supera qualquer ressentimento que possa existir entre os dois. “Juntos nessa jornada, a energia que nos manteve aqui é maior do que podemos entender. Não importa o desconforto, não há razão em lutar contra. Esse é o nosso tapete mágico voador e nosso fardo para carregar. Yin e Yang, luz e escuridão, começo e fim. Em perfeição. Eu tive que aprender a ter fé, honestidade e perdão para sobreviver, até que o universo decida mudar tudo isso, essa é as nossas vidas. Não é uma questão de carreira, dinheiro, amor ou até história. Não existem questões e explicações. É o que a natureza fez”.
O livro, como a música de John Coltrane, é uma grande viagem cósmica e espiritual. Recheada de amor, natureza, descobrimentos, lágrimas, arte, livros, cinema, drogas, mortes, violência, enfim, de boas histórias, “Acid for The Children” é, provavelmente, um dos livros mais legais lançados neste ano. O que resta para os fãs e leitores é esperar que o senhor Balzary se empolgue e escreva o próximo volume, descrevendo com a mesma riqueza de detalhes os doidos anos dedilhando o baixo do Red Hot Chili Peppers. Que tal, Flea?
– Daniel Abreu é jornalista responsável pelo Geleia Mecânica e colaborador do Whiplash.
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Fiquei com vontade de ler, e já de querer continuação.
Alguma editora brasileira tem que publicar!
Uma pena a Ideal não estar mais na ativa, pois as autobiografias do Johnny Marr e do Brett Anderson parecem que não serão trazidas para o nosso país.