entrevista por Renan Guerra
Cantora, compositora e atriz, a mineira Julia Branco já cantou ao lado da banda Todos os Caetanos do Mundo, mas há cerca de um ano lançou em disco e álbum-visual seu primeiro trabalho solo, o forte “Soltar os Cavalos” (Natura Musical). Em menos de 40 minutos, o álbum de estreia navega por mares complexos, como, por exemplo, o que é ser mulher em nosso tempo, o que é ser livre, o que é amadurecer, entre outros temas. Para tudo isso, Julia passeia entre a canção, a poesia e a teatralidade num disco bastante conceitual, mas mesmo assim de força pop inegável.
“Soltar os Cavalos” surgiu da decisão de Julia de reunir seus escritos num processo de construção que contou com o apoio de Chico Neves, produtor do disco (e de álbuns como “Lado B Lado A”, do Rappa, “O Dia em que Faremos Contato”, do Lenine, “Maquinarama”, do Skank, “Hey Na Na”, dos Paralamas, e “Bloco do Eu Sozinho”, do Los Hermanos) e Luiza Brina, co-produtora. Esse processo buscava desvendar a porção compositora de Júlia e é o que dá o tom pessoal e revelador do disco, que ganha outros olhares em seu álbum-visual, dirigido por cinco diferentes diretoras: Sara Lana em “Coisas”, Luísa Horta em “Sou Forte” e “Estrela”, Raquel Pinheiro em “30 Anos”, Samanta do Amaral em “Eu Sou Mulher” e Julia Zakia em “Meu Corpo”.
Com participações de Letrux, Uyara Torrente (A Banda Mais Bonita da Cidade) e Paulo Santos (Uakti), “Soltar os Cavalos” completou um ano de lançamento (incluindo lançamento em vinil) com o frescor de canções que parecem latentes nesse 2019, ecoando em versos como “Quero ser livre / Toda dor que atravessa não vai me fazer ficar triste / Eu sei que posso navegar”. Ainda na estrada, Julia também lançou recentemente uma versão ao vivo do disco, no Estúdio Showlivre, e tem planos de seguir explorando os meandros desse primeiro disco.
Conversamos com Julia antes do show de lançamento do disco em São Paulo, no Itaú Cultural. De voz mansa e saboroso sotaque mineiro, a cantora falou sobre o processo de construção de “Soltar os Cavalos” e como o público responde a sua entrega nas canções. Confira o papo na íntegra abaixo:
Qual foi o momento em que você percebeu que era necessário fazer um disco solo?
Eu havia feito um show em BH, num projeto do Sesc chamado “Salve Compositores”, que era um projeto em que você poderia gravar as suas músicas e foi o momento em que olhei para as minhas composições. Com isso fiquei com muita vontade de gravar um disco, e eu já sabia que, antes de tudo, eu queria gravar esse disco com o Chico Neves, que é diretor musical. Mas fiquei assim, “quero gravar o meu disco”, mas não sabia também que ele seria de composições só minhas. Eu sabia que queria fazer o disco com ele, para ele produzir e tal, e esse show me despertou o olhar para meu trabalho, mas mesmo assim eu cheguei a pedir músicas pela internet para várias pessoas, pois eu ainda não tinha muita clareza do que faria. Foi dai que o Chico lançou essa provocação: “Acho importante que você grave as suas músicas”. E é engraçado que eu tinha feito esse show com as minhas canções, mas na hora de gravar eu não fiquei segura de que seria isso, eu estava muito aberta a tudo que poderia ser, quem sabe eu poderia gravar alguma coisa de alguém, etc, mas ele falou “não, acho que é importante que você grave os seus textos, as suas canções” e a partir daí começou. Ele me propôs que eu fizesse um roteiro, como se fosse um roteiro de uma peça de teatro, por que eu também sou atriz. Ele falou “traz aqui os seus textos e o que não tiver música ainda, a gente vai descobrir aqui” e foi muito isso: fiz um roteiro com começo, meio e fim, com vários textos. Algumas coisas já estavam mais encaminhadas, outras mais cruas.
Então, antes do disco, você já compunha?
Já. E é engraçado, por que eu sempre escrevi. Escrever é uma coisa que eu faço nem sei desde quando, mas sempre escrevi. Eu já tive um blog e aí escrevia lá muito livremente. Eu sou filha de dois escritores, então para mim a literatura está num lugar muito inatingível, mas quando eu fiz faculdade de teatro, eu costumava encenar as minhas peças. Eu sempre escrevi muito texto curtinho, frases, sempre gostei muito de frases. É até uma relação que eu tenho com a música, muito de “leia na minha camisa”, do tipo frases que você quer vestir, que você se identifica. Mesmo assim, eu não me assumia muito como compositora, era uma coisa que embora na banda que eu tive antes, que era Todos os Caetanos do Mundo, já tivesse ali duas composições minhas junto com o Luís, eu não me assumia muito como compositora. Pode ser por que não toco um instrumento – só agora que eu tô aprendendo violão –, então eu senti que era uma coisa meio tímida, do tipo “eu escrevo, mas não componho”. E eu acho que nesse disco eu me assumi como compositora, é só agora que consigo dizer que sou compositora, de ter a segurança para dizer isso. Era uma coisa quase como se eu sentisse que não era muito autorizado para mim; uma bobagem, na verdade.
E esse é um trabalho que aborda universos bastante íntimos. Nesse sentido, você teve algum frio na barriga de se mostrar dessa forma?
Sim, mas ao mesmo tempo foi muito natural a forma com que as coisas foram se dando. Foi um processo longo, de mais de um ano dentro do estúdio, antes mesmo de começar a gravar, desde esse momento em que o Chico me pediu o roteiro. A gente teve muitas conversas profundas e íntimas dentro do estúdio, de desejos, então quando eu vi eu já estava vasculhando as minhas gavetas e pegando ali coisas – claro que não tem nada muito antigo ali, eu digo que as letras e tudo, cada uma tem sua história, mas tem coisas de três anos pra cá, no máximo. Então foi meio natural que eu fosse atrás disso, até por conta do próprio teatro, pois tem uma coisa de se colocar a serviço do trabalho, de algum jeito ter esse risco, esse desejo de arriscar, de entrar a fundo, de se aprofundar. Claro que existe ali os nossos receios, mas também foi muito natural como essa intimidade foi se dando no disco, teve a ver com o processo com o Chico, com a Luiza [Brina], de como a gente foi gastando o tempo, não teve nada com pressa, então foi meio tateando um universo, ao mesmo tempo em que estávamos muito abertos para as coisas que iam vindo, sem muito julgamento se era bom ou ruim, muito disponível para o novo. E foi especial, por que também tem a ver com o encontro com eles.
Nesse tempo do lançamento até agora você também teve uma resposta das pessoas que foi muito pessoal, de como elas abraçaram o seu trabalho de uma forma que também chegava ao íntimo delas.
Sim, isso tem sido incrível! Tanto nos shows quanto na internet. No show, por exemplo, tem muitas mulheres que se emocionam muito. Acontece de chorar, de vir me abraçar, de falar “nossa, esse show mexe muito comigo”, e de falar coisas muito íntimas. Gosto dessa proximidade, acho que é natural também pra mim. É muito louco, por que a pessoa te escreve contando coisas realmente muito íntimas, tipo “nossa, eu estava em um momento super difícil da minha vida, aconteceu isso e isso e isso e tal e eu ouvi a sua música e isso me deu força”, então é engraçado por que talvez o fato de ter nascido de uma intimidade faz com que as pessoas se abram das intimidades delas, elas sentem que elas podem confiar para contar aquela história, de ser tão aberta assim. Tem um vídeo que eu lancei no Dia Internacional da Mulher que foi todo feito com várias mulheres que gravaram trechinhos cantando “Eu Sou Mulher”, que é uma das músicas do disco, e foi impressionante como muitas mulheres se disponibilizaram a cantar, que é uma coisa que tem uma vergonha e tudo, mas elas mandaram e se abriram pra isso. Acho que tem uma coisa no disco que é forte que é esse acolhimento da vulnerabilidade, então há um acolhimento do erro e do que talvez você sinta que não está pronto. Tem um acolhimento do fracasso, que eu brinco que no texto de “Coisas”, das coisas que eu não consigo fazer, na própria música “30 anos”, acho que isso aproxima, por que torna mais real, tem um discurso que se fortalece, tem uma coisa de se colocar em um lugar de força, mas ao mesmo tempo entendendo a sua humanidade.
Sim, eu entendo que a força surge desses fracassos, desses não-lugaress, desses espaços que você vai criando dentro do disco, tanto que o nome é “Soltar os Cavalos”, que é uma coisa muito forte.
Sim, é forte e eu falo que é soltar, é uma ação, não é como “soltei os cavalos”, na verdade, “soltar os cavalos” eu tenho que continuar soltando. A gente sempre tem esses lugares, e eu acho que isso pra mim também foi natural, por que é como me sinto. Não me sinto sem medo, me sinto cheia de questões, cheia de coisas, um ser humano tentando ser mais forte e acho que o disco assume esse processo. Ele não coloca num lugar de “sou forte e inabalável”, mas sim “sou forte, sou do tamanho do medo”, o medo está ali, ele está presente, não estou sem medo, mas vou mesmo assim. E acho que isso aproxima as pessoas, é uma conversa humana.
E você falou que o disco tinha esse conceito de roteiro de teatro. E o teatro é uma coisa que permeia todo o seu trabalho, ainda com a música, já que o show é um espetáculo também mais próximo da teatralidade. E dentro do disco a gente tem coisas que são muito teatrais, tem a leitura dos textos, uma criação de cenários que são muito fortes. Como você vê a presença do teatro em seu trabalho?
O teatro foi realmente uma busca que tive nesse trabalho, pois eu queria muito me reaproximar dele. Quando fui me encaminhando para a música, houve esses momentos em que pensei “poxa, eu imaginava que seria aquela pessoa que ia atuar em cinema, ter grupo de teatro” e isso mudou, a vida mudou. E tudo certo, porque a música foi dando mais certo, foi sendo mais o sentido das coisas. Mas senti que era muito “Julia atriz” e “Julia cantora” e queria um pouco somar esses conhecimentos, então teve uma preocupação com isso, do processo de criação, de trazer textos falados. Pensei no show muito brincando com esses elementos do próprio teatro, que também é uma coisa de que gosto, de pensar no roteiro, em pensar como ele começa, como termina, pensar nas energias de cada momento, como é essa dramaturgia que eu construí. Então eu falo que tem várias dramaturgias: tem a do próprio disco, a ordem que a gente pensou, tem a dramaturgia do show, do vídeo-álbum, então é tudo muito pensando mesmo nessa história, nessas sensações, não necessariamente numa história narrativa, mas nessas sensações que vão sendo contadas. E também por que eu estava com saudades de atuar, então gosto de brincar com isso, foi uma coisa de “poxa, eu também sou isso”, da mesma forma de assumir a compositora, eu também sou atriz, por que eu iria desligar um lado? Tenho que acolher esses lados todos que fazem parte de mim.
Nesse processo do disco, você se cercou muito de mulheres. Tem o Chico, mas de resto são mulheres, tanto no disco, quanto no visual, que é um trabalho no qual você agrega várias artistas. Como foi esse trabalho com todas elas?
Foi muito especial. Quando comecei o processo do disco já tinha essa vontade de trabalhar com mais mulheres, eu vinha de uma banda de homens e eu não trabalhava com tantas mulheres quanto hoje, o que já é uma coisa que mudou na minha própria equipe. Além da Luiza, eu faço questão de que seja uma equipe mais feminina. Hoje, por exemplo, a gente está fazendo o show com outra iluminadora que não é a iluminadora que criou a luz, e eu quis que fosse uma mulher. O técnico de som é o Evaldo, que é ótimo, mas sempre que eu posso eu tento buscar primeiro uma mulher, porque acho que também, nesses últimos 3, 4 anos – assim como várias mulheres – eu me sinto contaminada por tudo isso que está acontecendo. Acho que teve uma mudança de perspectiva, um fortalecimento mesmo do feminino e do feminismo. A gente está mais atenta as coisas, a gente está soltando mais a voz, soltando os cavalos. E o vídeo-álbum aconteceu também nesse sentido. Quando comecei a gravar o disco, eu já tinha esse desejo, mas não sabia muito qual seria o assunto, o tema, mas quando olhei pra essas composições é que eu vi que elas tinham isso muito forte, de algum jeito respondendo a esse contexto e a esse mundo, num processo de intimidade e tal. Então achei que esse vídeo-álbum faria todo sentido se fosse composto por mulheres, por que eu queria muito ver como elas enxergariam essas músicas, dar espaço para a voz delas. E foi um processo muito incrível, por que a Sara Lana fez a coordenação do vídeo-álbum, e ela teve a brilhante ideia de convidar quatro diretoras para os cinco vídeos no total. Cada uma dessas diretoras, além de dirigir um vídeo, assumiria outra função nesses trabalhos – de direção de fotografia, direção de arte – então foi uma outra forma de trabalhar num processo de audiovisual, sem muita hierarquia, era uma coisa do tipo de passar a bola uma pra outra, hoje uma dirige, amanhã é outra, e todo mundo estava junto nesse vídeo-álbum. Claro que não foi tão simples, porque o processo coletivo tem outras coisas, mas foi muito rico. E pra mim está sendo muito incrível, sinto que a gente está se abraçando também, é uma luta real por tornar esse mercado e esse mundo mais igual. E também acredito que fazendo isso eu talvez fortaleça para que mais mulheres ocupem lugares de liderança e de pensamento, tornando esse mercado mais igual.
E agora você segue em turnê do disco, mas você tem outros projetos rolando? Pois a banda Todos os Caetanos do Mundo está em hiato.
A banda segue em hiato, é difícil falar se iremos voltar um dia, pode ser, nunca sei, mas não está nos planos. Cada um está tocando um pouco a sua vida e, pra mim, o meu trabalho solo tomou realmente o foco principal, então estou completamente mergulhada nesse trabalho mesmo. As outras coisas que eu faço são realmente paralelas, como participar do projeto de alguém, mas o foco principal tem sido na minha carreira. O momento de agora é realmente de turnê, de fazer o máximo de shows, de conseguir circular pelos lugares que a gente quer muito transitar, porque a gente sente que o disco ainda está muito fresco, é até doido porque ele saiu em agosto de 2018, mas já aconteceu muita coisa de lá pra cá e mesmo assim ele é muito recente ainda, então sinto que tem uma estrada grande para esse disco percorrer. Tenho desejo de fazer um segundo vídeo-álbum, por que algumas músicas ficaram de fora, mas ainda estou vendo como isso poderá se dar. Mas também tenho vontade de explorar as músicas de outras formas, talvez fazer um remix, enfim, outras coisas assim, mais ainda muito nesse trabalho.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.