Texto por Renan Guerra
21º filme do espanhol Pedro Almodóvar, “Dor e Glória” (Dolor y Gloria, 2019) talvez seja o filme mais íntimo do diretor espanhol, em uma busca por reconciliações com o passado, num presente em que o envelhecimento é a sua realidade. É quase como um quebra-cabeça para os fãs, em tentar entender o que é autobiográfico e o que é fantasia no filme, já que muitas coisas funcionam como metáforas para questões reais do diretor.
Antonio Bandeiras dá vida a Salvador Mallo, um diretor de cinema aos 60 anos que enfrenta diferentes doenças que tem o limitado fisicamente e o impedido de produzir. Mallo está prestes a reexibir um de seus filmes antigos, que após restauração, será relançado pela Filmoteca Espanhola. A partir disso, ele acaba caindo em reencontros com antigos parceiros e amores, bem como mergulha em memórias de sua infância e de sua relação com a mãe. Banderas está caracterizado com cabelos revoltos ao alto, deixando-o muito mais próximo de um alter ego de Almodóvar.
Esse tour de force de Salvador pelos seus próprios fantasmas é pano para que temas clássicos do cinema almodovariano reapareçam: os povoados espanhóis, a cultura popular, as mulheres fortes, a homossexualidade, o cinema, a arte, a paixão e o desejo. “Dor e Glória”, aliás, é visto como o fecho de uma trilogia do desejo, iniciada nos anos 80, com “A Lei do Desejo” (1987) e seguida por “Má Educação” (2004).
O link com “A Lei do Desejo” vai além das telas e remonta a episódios pessoais do diretor. No novo filme, Salvador Mallo (Banderas) vai ao reencontro de um ator com o qual não falava há mais de 30 anos, por embates criativos. Nos bastidores, Almodóvar e Banderas eram parceiros de trabalho nos anos 80 e início dos anos 90, porém ficaram anos sem se falar, em uma briga não explicada, que só teve fim com o retorno da parceria em “A Pele Que Habito” (2011).
Uma das teorias para a possível briga envolveria a carreira de Banderas em Hollywood, sendo que ele teria tentado limitar o lançamento de “A Lei do Desejo” nos Estados Unidos, por causa das variadas cenas de sexo gay do filme, o que de algum modo poderia atrapalhar sua busca pelo posto de galã hetero latino.
Fofocas a parte, “Dor e Glória” é um filme menos histriônico que muitos clássicos do diretor e isso pode distanciar aqueles que esperam o Almodóvar dos anos 80 ou 90, pois o que há aqui é uma correlação com trabalhos mais recentes, como os delicados (do jeito Almodóvar de ser delicado) “Julieta” (2016) e “Abraços Partidos” (2009), em que as cores são mais sóbrias e a melancolia dá o tom ao filme. A melancolia, aliás, é responsável por um ritmo mais lento e quase contemplativo, o que de algum modo pode afastar alguns espectadores e pode, de certo modo, diminuir o envolvimento destes com os dramas do personagem principal.
Assim com os outros dois filmes de sua trilogia do desejo, este aqui é protagonizado por um homem gay e não por uma de suas clássicas mulheres e isso muda muito as perspectivas do filme, deixando-o mais cuidadoso e tateante ao contar cada detalhe, tanto que algumas das passagens mais belas do filme se dão quando o pequeno Salvador começa a descobrir o corpo masculino e sua homossexualidade.
Por outro lado, o filme funciona quase como um acerto de contas do diretor com sua mãe, que faleceu no início dos anos 2000 e que já havia sido o ponto de partida para “Volver” (2006). Em determinada altura do filme, a personagem materna diz “não coloque essas histórias em seus filmes… e nem coloque as minhas vizinhas em seus filmes”, um diálogo que possivelmente pode ter acontecido na vida real, visto que essas mulheres do povoado de Almodóvar é que sempre construíram uma das forças de seus filmes.
Penélope Cruz, estrela de outros quatro filmes do diretor, é quem tem o papel da mãe na juventude e, mais uma vez, mostra que a sua parceria com Almodóvar sempre lhe desperta o melhor, com uma atuação delicada, que consegue transmitir dor, ternura e sinceridade apenas no olhar. Antonio Banderas também entrega uma de suas mais complexas atuações, com detalhismo, construindo pequenos trejeitos, estabelecendo sutilezas que dão veracidade ao seu personagem, sem soar como um possível arremedo do próprio Almodóvar – Banderas, inclusive, foi eleito o melhor ator no Festival de Cannes desse ano.
O espanhol Asier Etxeandia também está bem em seu papel de ator viciado em heroína. Já o argentino Leonardo Sbaraglia (“Relatos Selvagens”, de 2014) é uma grata surpresa em sua delicadeza apaixonada no filme. Porém a surpresa maior fica a cargo do pequeno Asier Flores, que interpreta Salvador na infância, com graça e interessante complexidade.
As inúmeras referências clássicas de Almodóvar aparecem novamente aqui: Tennessee Williams, por exemplo, vira e mexe ressurge em cartazes de “Gata em Teto de Zinco Quente” (1958). Atores e atrizes clássicos do cinema hollywoodiano ressurgem pela fala dos personagens, em figurinhas colecionáveis e até em stills de Marilyn Monro. Já a cantora mexicana Chavela Vargas é mais uma vez citada de forma apaixonada. Das novidades, é curiosa a pequena ponta da cantora pop Rosalía, que aparece como uma camponesa, a cantar flamenco durante uma lavagem de roupas no rio.
“Dor e Glória” acaba não sendo um Almodóvar grandioso, do tipo que entraria naquele panteão que tem “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999) ou “Fale com Ela” (2002), porém é um filme tão sincero, tão verdadeiro, que fala de seus personagens com tanto respeito, com tanto carinho que é quase impossível não se sentir tocado por aquilo que vemos. Para os fãs do diretor, é um trabalho cheio de minúcias, de pequenas descobertas, o que talvez para os não-iniciados seja um empecilho. De todo modo, há uma universalidade nas questões ali expostas: o medo de envelhecer, a deterioração de nosso corpo, os nossos vícios e as nossas dores, os nossos amores e os nossos desejo, o que faz de “Dor e Glória” um filme belo e terno, que acalenta e emociona em sua total melancolia.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz