entrevista por Pedro João
Na época da faculdade, um professor de literatura me ensinou que a literatura fantástica – que transcende os limites da linguagem e explode em irrealidades mais graves – pode ser dividida em duas categorias: a do absurdo e a do nonsense. A respeito da segunda, ele destacou a obra do britânico Lewis Carroll, autor do romance que posteriormente tornou-se um fenômeno pop da Disney, “Alice no País das Maravilhas” (1865). Para esmiuçar o conceito, ele ainda puxou uma frase do livro, ao que me lembro, dita pelo misterioso gato sorridente da trama: “Take care of the sense and the sounds will take care of themselves”. Em uma tradução livre, seria algo como: “Preocupe-se com o sentido e os sons tomarão conta deles mesmos.”
De certa forma, é isso que a banda paulistana E a Terra Nunca me Pareceu Tão Distante tem feito desde 2012. Seus integrantes, Luccas Villela (baixo), Lucas Thedoro (guitarra), Luden Viana (guitarra) e Rafael Jonke (bateria) nunca tiveram sequer o intuito de apoiar-se no universo lógico da linguagem escrita. “Acontece que eu e o Luden tínhamos acabados de terminar uma banda que tínhamos, mas a gente queria continuar tocando. Só tocar. Foi uma coisa bem natural”, me explicou o baterista durante nossa conversa no backstage do Lollapalooza 2019, pouco depois do show que apresentaram no Palco Onix. “É uma questão quase semiótica, mesmo”, esmiúça o baixista, por sua vez, “Não é só a sentença ali descrita que vai gerar a reação X ou Y em quem está ouvindo. Tem a sequência de acordes, a maneira como ela é tocada… Tudo se combina para formar uma impressão dentro da cabeça de cada um”.
Entre risadas e interrompendo-se mutuamente para complementar ou finalizar as ideias um do outro, os integrantes da “E a Terra” – abreviação mais comum entre os fãs – falaram ao Scream & Yell sobre seu processo criativo e a emoção de fazerem parte da primeira banda instrumental a tocar no Lollapalooza na história do festival no Brasil.
Esta foi a oitava edição do Lollapalooza no Brasil, por que demorou tanto para uma banda 100% instrumental entrar para o line-up?
Luden: Boa pergunta, cara… Nesse momento, o Brasil tem várias bandas instrumentais que são ótimas. E não é como se fôssemos a melhor de todas.
Rafael: Acho que é uma coisa de ocasião, também. A gente acabou de lançar um disco [“Fundação”, 2018], mas tem uma puta cena de instrumental acontecendo, muitas bandas que a gente gosta e paga pau.
Lucas Theodoro: Fiquei com a sensação de que, neste ano, eles se preocuparam em pegar as bandas brasileiras que já estavam fazendo o circuito de festivais nacionais (Bananada, Coquetel Molotov, etc.). A Luisa Lian, o BK, a Duda Beat estavam no line-up de vários desses também. Acho que foi um caminho natural para todo mundo.
Luccas Villela: É. E, nesses festivais, éramos sempre uma das poucas bandas instrumentais que estavam por ali.
Rafael: Na real, isso é uma coisa que a gente sempre fala, também. Nunca nos limitamos a tocar somente com outras bandas instrumentais. Sempre tocamos ao lado de bandas com voz. Isso nunca foi uma limitação.
Theodoro: Eu acho que, em um contexto nacional, a gente nunca se portou como uma banda de nicho. Foram poucas às vezes em que a gente tocou exclusivamente com outras bandas instrumentais.
Luden: Sim, no começo isso era mais frequente.
Villela: Depois, a gente começou a circular com todo mundo. Ficamos amigos de várias bandas. Fizemos Terno Rei recentemente, Ventre. A questão é tirar o instrumental daquele lugar de “cabeçudo”, de “difícil de ouvir”. Pelo contrário, é para todo mundo. A gente está aqui para isso.
Mesmo levando em consideração a força da cena independente, a música instrumental ainda não é muito popular no Brasil. De onde surgiu o ímpeto de investir nessa seara? Quando foi que entenderam que era esse o caminho que queriam trilhar?
Rafael: Acontece que eu e o Luden tínhamos acabados de terminar uma banda que tínhamos, mas a gente queria continuar tocando. Só tocar. Foi uma coisa bem natural. Estávamos de saco cheio de vocalista e ter que fazer letra para tudo, etc.
Theodoro: Quando eu fui fazer o teste para entrar na banda (risos), essa sempre foi a premissa. “A gente vai ter uma banda instrumental, você tá afim de tocar?” É uma coisa que a gente divide de moleque, de ter umas referências parecidas.
Luden: Na banda que eu tinha com o Rafa, eu cantava e odiava ter que cantar, para ser sincero. Era uma bosta. Então, acho que o instrumental também veio um pouco disso. Porque era horrível (risos).
Uma das coisas mais interessantes da música instrumental é o fato dos sentidos ficarem em aberto. Como vocês se relacionam com essa proposta e como acontece o processo criativo que não é apoiado pela lógica da letra, do poema?
Rafael: Cara, acho que uma coisa está intrínseca à outra.
Luden: Assim, eu entendo a coisa de a gente não ter nenhum signo identificável e, por isso, consequentemente, não conseguir direcionar os sentidos. Mas, mesmo assim, existe um direcionamento de outra ordem. Que é um tom maior, outro menor…
Vilella: … É uma questão quase semiótica, mesmo. Não é só a sentença ali descrita que vai gerar a reação X ou Y em quem está ouvindo. Tem a sequência de acordes, a maneira como ela é tocada… Tudo se combina para formar uma impressão dentro da cabeça de cada um.
Rafael: Ao mesmo tempo que nada disso é muito pensado…
Luden: …Exato, não é, à princípio. Mas, quando traz para jogo, de certa forma, é sim. Porque, por exemplo, eu lembro muito claramente de quando o Vilella trouxe “Karoshi” para a gente, que é a segunda faixa do disco. Eu fiquei nervoso, a música dá raiva. Ela tem um negócio de ser ruim, ela traz sozinha isso. Quando alguém chega com uma intenção, não tem para onde correr. A música fala.
Theodoro: E tem um ponto importante: a gente decide o nome das músicas sempre em conjunto. Baseado naquilo que a gente sente e se aquilo representa ou não o significado daquela música para a gente.
Os nomes das faixas, algumas vezes, são quase frases de tão grandes, em contraposição às músicas absolutamente sem letra. É uma maneira de delimitar o universo que vocês querem explorar com essa sonoridade?
Rafael: Então, é um lance de entendimento nosso. Tem que fazer sentido para todos. Não adianta o Luccas ter trazido uma música que ele intitulou sendo que a gente também fez parte da composição. Não faria sentido para ninguém além dele.
Vilella: Foi difícil dar nome para as músicas, acho que uma das situações mais difíceis.
Luden: A gente estava mais preocupado em fazer o disco do que qualquer outra coisa, na verdade. Os nomes vieram posteriormente. Tem nomes que a gente nem usa internamente, na real. Colocamos um nome interno que acabou ficando e é isso.
Por fim, como foi a experiência Lollapalooza para vocês?
Rafael: Cara, a gente não esperava. Eu fiquei muito feliz e muito surpreso, inclusive. Tipo, foi muito legal a experiência de tocar num palco desse tamanho. Do som que vai para o público e que vem para a gente no palco. O público que, de fato, estava superafim de ouvir… Para mim foi 100%.
Luden: Acho que isso de sermos a primeira banda do dia também ajudou. Todo mundo estava muito fresco.
Vilella: Mas, é surreal isso de sermos a primeira banda instrumental em um festival desse tamanho. Lá fora, isso já rolou várias vezes e aqui nada até agora. Deveria ser um lance mais natural. É música como qualquer outra. Não tem dificuldade nenhuma, aliás, é até mais fácil de mixar o som sem voz (risos).
Theodoro: E também, fico muito feliz de a gente ter chegado aqui com amigos e amigas que são profissionais extremamente capacitados que a gente ama mesmo. Tem uma galera enorme que trampa com a gente e que não aparece no palco, mas sem eles a gente não seria porra nenhuma. Não quero chamar de família porque é uma coisa muito Restart, muito escroto, mas é meio que isso.
Vilella: Amizade tá bom. Amizade é forte o suficiente.
Luden: Acho que nenhum de nós quatro imaginava que estaria aqui há dez anos. É exatamente essa a onda. Meu irmão me falou: “Vai lá e toca. Fica de boa”. Porque qualquer coisa que viesse seria lucro. Eu fico me perguntando demais coisas como “o que eu estou fazendo aqui?” É claro que, quando você para para pensar, consegue achar as respostas. Mas, há dez anos, ninguém imaginava.
Vilella: A graça é essa, fazer tudo da maneira mais verdadeira e sincera. Isso transparece no fonograma. As pessoas sabem quando as coisas são feitas assim.
Rafael: Real, quando o bagulho é planejado, você ganha na hora.
Vilella: É, cara, se você não é a Britney Spears ou os Backstreet Boys, tem que ser assim. A gente é uma banda instrumental tocando no Lollapalooza, não dá para acreditar. É foda demais.
Luden: O lado bom de estar aqui – e junto dessas pessoas todas – é que, por causa delas, não precisamos abdicar de nada politicamente. A gente não fez concessões de nenhum tipo. Não se vendeu nem do ponto de vista mercadológico, nem do ponto de vista ideológico. A gente mudou e cresceu desde o começo da banda, mas a gente continua sendo as mesmas pessoas que tocaram para trinta pessoas em um porão.
Pedro João é jornalista tendo passado pelas redações da Elle Brasil e da Veja Comer e Beber. Conheça seu canal no Medium. A foto que abre o texto é de Larissa Zaidan