Texto por Renan Guerra
Num país de cantoras, Joyce sempre impôs sua força como compositora. Aos 69 anos, com 50 anos de carreira e mais de 400 composições, ela segue escrevendo e o disco “Palavra e Som” (2017) é o resultado de seu trabalho constante em torno da canção. Atento ao nosso tempo, “Palavra e Som” fala de amor, de música e de crer em qualquer coisa que não nos deixe enlouquecer.
Tida como imoral nos anos 60, por escrever no feminino, Joyce Moreno é voz fundamental na MPB, mas não por “trazer o olhar feminino”, “a delicadeza da mulher” ou algum desses clichês atrelados a mulher, e sim por sua poética complexa e sua expressão forte sobre diferentes temas, incluso aí ser mulher em meio a todos os homens da MPB. Dona do hit anos 80 “Clareana” (regravada até pelo Portastatic, banda paralela do vocalista do Superchunk), era em outra faixa, “Feminina”, que ela questionava “- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina?”.
Em 2017, Joyce diz “lindas, tão lindas meninas, tem que ser lindas e só / tudo o que as meninas fazem sempre dá forrobodó”, em “Forrobodó das Meninas”, faixa que fala sobre o quanto o feminino ainda incomoda. É nesse sentido que Joyce segue a margem na MPB, considerada por alguns uma artista menor, de nicho: “um olhar feminino para mulheres”. Porém, Joyce é uma compositora do mesmo calibre de Chico Buarque, mas em 2017 pouco se ouve e pouco se fala do disco dela, ficamos aí a acompanhar debates de machismo no novo disco do carioca.
Alguns ainda lembram-se de seus sucessos dos anos 80, quando ainda não carregava o sobrenome Moreno, outros associam diretamente seu nome aquele tipo de artista que segue sempre tocando sua bossa nova ultrapassada. Joyce não é nada disso e o resto do mundo já sacou há tempos, tanto que “Palavra e Som” foi lançado antes no Japão, sendo considerado por lá um dos discos mais importantes de 2016.
“Palavra e Som” tem 13 faixas, 10 delas assinadas apenas por Joyce, as outras são parcerias com Paulo César Pinheiro, João Cavalcanti e Torquato Neto – esta, uma parceria póstuma, sugerida pelo próprio poeta ainda nos anos 1970. Como afirma a própria cantora, um disco autoral acaba gerando certa salada mista, por isso “Palavra e Som” nos leva por diferentes caminhos, sempre instigantes.
Nessa toada, “O Amor É o Lobo do Amor” é uma faixa dolorosa sobre relações tóxicas, e foi composta para a trilha de um curta-metragem espanhol sobre machismo. “Dia Lindo” tem participação da voz firme de Dor Caymmi e parece canção antiga, do interior. Já “Mingus, Miles & Coltrane” é um samba que flerta com o jazz.
É preciso ouvido atento para se adentrar dentro desse universo, é preciso desligar um pouco de tudo e deixar o samba nos arrebatar. Parece ultrapassado um disco de sambas em 2017, cantados quase que em voz e violão, mas Joyce entoa “vade retro apocalipse / salve o samba” (“Samba do Apocalipse”). Em tempos de retrocessos e de desânimo é o olhar pontual de Joyce que vale a pena ser ouvido.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Leo Aversa / Divulgação
Leia também:
– “Passarinho Urbano”, de Joyce, é um disco a ser redescoberto
– “Passarinho Urbano” foi lançado originalmente com capa dupla em 1976 na Itália
Obrigada por entender tudo. E não estou falando dos elogios.