por Marcelo Costa
Mississippi, 1863, dois anos antes do final da Guerra da Secessão, que dividiu os Estados Unidos da América em Confederados (estados que defendiam a escravatura) e União (que lutavam pela abolição), uma garotinha de 12 anos caminha em um bosque para colher cogumelos e encontra um soldado gravemente ferido. O homem, soldado da União em território Confederado, é levado pela garota para o internato feminino em que ela vive com mais seis mulheres, o que torna o título nacional de “O Estranho Que Nós Amamos”, novo filme de Sofia Coppola, extremamente óbvio nos primeiros segundos da trama, mas há bastante suspense e mistério debaixo do teto deste casarão.
A presença do cabo John McBurney (Colin Farrell) no internato coloca todas as mulheres da casa em polvorosa, e começa então um jogo de sedução que irá movimentar os hospedes: Edwina (Kirsten Dunst) é a governanta inocente que desejaria viver longe desse lugar e vê no soldado uma oportunidade de fuga tanto quanto uma primeira paixão; Alicia (Elle Fanning) é a jovem atirada que não medira esforços para seduzir e levar o soldado para sua cama; Amy (Oona Laurence) é a garotinha de 12 anos que salvou o soldado, e se apaixonou por ele; Emily (Emma Howard) é a menina racista que quer entregar o soldado para a tropa confederada. E Miss Martha Farnsworth (Nicole Kidman) é a matriarca da casa, conduzindo o internato com pulso firme, mas que também se sente atraída pelo rapaz.
Enquanto se recupera do tiro que levou, com vários estilhaços de bala sendo retirados de várias partes de sua perna esquerda, o cabo John McBurney inicia uma relação de amizade e sedução com cada uma das hospedes, que é retribuída aparentemente no mesmo tom pelas mulheres, ainda que a matriarca divida-se entre o desejo de mantê-lo na casa e o de entrega-lo para as autoridades, que fazem ronda de tempos em tempos na frente do internato. A sensação, porém, é de que o soldado adapta seu discurso a cada uma das mulheres que, por sua vez, jogam com ele na mesma medida, utilizando a moeda da conversa para causar ciúmes umas nas outras. Está criado o cenário para um grande filme de suspense que, amplificado por um cenário caótico de guerra, tem tudo para se desenrolar tragicamente.
Baseado no livro “A Painted Devil’ (1966), de Thomas Cullinan, e com uma adaptação famosa e extremamente polêmica para o cinema dirigida por Don Siegel e estrelada por Clint Eastwood em 1971, “O Estranho Que Nós Amamos” (“The Beguiled”, no original, o que quer dizer “O Seduzido”) de Sofia Copolla se diferencia do filme de Don Siegel pelo foco maior nas mulheres (o que a atuação comportada de Colin Farrel amplia frente a bombástica presença de Clint) buscado pela cineasta tanto quanto pela sutileza com que ela trata o roteiro, tirando da história absolutamente tudo aquilo que deixou o mundo em polvorosa em 1971, das óbvias questões raciais, um ponto negativo já que a trama se passa em meio a Guerra da Secessão, até temas polêmicos como pedofilia, incesto, racismo, sexo e religião, o que permite vislumbrar maneiras e maneiras de se adaptar um livro para o cinema.
Partindo dessa comparação, na versão de Don Siegel não há espaço para elucubrações por parte do espectador. Tal qual uma granada, o roteiro joga absolutamente tudo que está no livro no colo de quem assiste, e a sensação pós explosão é de que a humanidade deu muito errado. O soldado interpretado por Clint Eastwood é forte, intenso e decidido (em sua moral torta e particular), e todas as dicotomias dos personagens são explicitadas de modo a não deixar nenhuma dúvida sobre a “mensagem” do filme (e, por consequência, do livro): não há santo em cena na história, absolutamente ninguém presta no “O Estranho Que Nós Amamos” de 1971, um filme que estreou sob estilhaços do colapso do verão do amor, da condenação a morte de Charles Manson (depois transformada em prisão perpetua) e do início da Guerra da Vietnã.
Sofia Coppola optou por outro caminho nesta forte adaptação de “O Estranho Que Nós Amamos”. Ela retirou quase todos os temas polêmicos do filme e concentrou seu roteiro no jogo de espelhos que se forma entre os personagens, deixando para o público um grande número de lacunas a serem preenchidas (e discutidas). O soldado interpretado por Colin Farrel é vacilante, fraco, até sonhador. De forma bastante sutil, Sofia pontua os intentos de cada um dos seus personagens, o que algumas vezes pode tanto confundir o espectador como trazer a tona uma leitura pessoal para momentos chaves da trama, o que pode dizer mais sobre a pessoa que interpreta do que propriamente sobre o filme. Enquanto Don Siegel culpa tudo e todos, Sofia deixa o exercício para seus espectadores, e o resultado são dois grandes filmes diferentes que partem da mesma matriz.
Encabeçado por Clint Eastwood e Geraldine Page, a versão polêmica de 1971 fracassou nos cinemas norte-americanos (a Universal Pictures não sabia como trabalhar o filme, e Clint acusou a produtora de sabotar o lançamento, rompendo com ela ao fim do contrato; ele ficou mais de 30 anos sem trabalhar com a Universal), mas fez sucesso na França, onde até hoje é reconhecido (merecidamente) como um dos seus melhores trabalhos como ator. Já a versão de Sofia, com Nicole Kidman e Colin Farrell, rendeu a ela o prêmio de Melhor Diretora em Cannes 2017, além de já ter recuperado nas bilheterias o investimento inicial do filme (custou US$ 10 milhões e já faturou US$ 15 mi). No saldo final, o primeiro filme ganha pontos pelo pandemônio que causa na cabeça do espectador enquanto o segundo se destaca por trazer o espectador para dentro da história, e deixar a “lição moral” em aberto. Mas limar a questão racial soa um erro que o recente episódio nazista em Charlottesville apenas amplia. Não prejudica o resultado final desta segunda excelente versão, mas deixa nas entrelinhas que o melhor “O Estranho Que Nós Amamos” está exatamente no meio entre a adaptação de 1971 e a de 2017.
Nota: ***½
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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Pois é, ela deve ter se arrependido de não focar nesse ponto ainda mais agora com esses atos condenáveis e grotescos acontecendo na sociedade americana.
Assisti a versão do Don Siegel, em uma madrugada lá dos anos 80 e fiquei fascinado e perplexo.
E é difícil se esquecer dessa versão do Don Siegel!