por Marcelo Costa
Já é noite e os moradores de um edifício no centro de Teerã começam a perceber tremores e rachaduras nas paredes, rapidamente evacuando o prédio. Entre os moradores está o casal Emad (Shahab Hosseini) e Rana (Taraneh Alidoosti), atores prestes a estrear uma adaptação teatral iraniana para a famosa peça de Arthur Miller, “A Morte do Caixeiro Viajante” (“Death of a Salesman” no original), que em 1949 criticava ferozmente tanto o mito da masculinidade quanto do “sonho americano”, que coloca(va) o dinheiro acima da humanidade.
Com o edifício condenado, Emad e Rana precisam de um novo apartamento, e um dos amigos que atua na mesma peça teatral que o casal diz que pode ajuda-los oferecendo a eles um velho apartamento seu que está vazio. Emad e Rana aceitam a gentileza, mas ao se mudarem para o novo endereço descobrem que a antiga moradora (não muito querida pelos vizinhos) deixou seus móveis e roupas trancados em um dos quartos. “Ela virá buscar quando conseguir um novo local para morar”, diz o dono do imóvel, para desagrado do casal.
Aquela porta fechada é a primeira gota de suspense no roteiro brilhante de “O Apartamento” (“Salesman”, no original), primeiro filme de Asghar Farhadi filmado no Irã após o sucesso mundial de “A Separação” (2011), filme vencedor de 78 prêmios internacionais incluindo o Oscar e o Globo de Ouro na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Pelo andar da carruagem, “O Apartamento” (entre os nove finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e já indicado ao Globo de Ouro) tem tudo para repetir o sucesso de “A Separação”.
Um ponto a favor de “O Apartamento”: não há uma manipulação de roteiro como em “A Separação”, em que uma passagem definitiva para a trama só é colocada em cena quando todas as cartas já estão na mesa e o espectador, que já montou o filmezinho na cabeça, é surpreendido pela “novidade”. Aqui não. “O Apartamento” é um roteiro brilhante (premiado em Cannes) e absolutamente clássico, sem artifícios, com a história sendo construída numa relação interessante entre a “vida real” do casal, a trama da peça e os apartamentos.
Os personagens são apresentados numa posição de vida sem conturbações, com planos, sonhos felizes e bons ideais. Num trecho secundário, mas significativo, Emad, que também é professor de literatura, se vê um taxi (modelo Uber Pool) ao lado de uma mulher, que incomodada com sua presença no veículo lotado, pede para trocar de lugar com o passageiro da frente. Um aluno presenciou a cena e, posteriormente, reclama da atitude da mulher, no que Emad explica que ela pode ter suas razões. “Algum homem já deve feito algo que ela não gostou”, contemporiza.
Entra em cena então a segunda dose de suspense, que já não é uma gota, mas sim uma tempestade que irá balançar a vida de Emad e Hana num choque belamente explorado pelo roteiro que trará a tona discussões importantes sobre abuso físico versus atentando à honra versus vingança. E, a partir dai, rachaduras invisíveis no relacionamento nas primeiras cenas do casal (e na própria sociedade como um todo) poderão condenar não só a união como também os atos de cada um dos personagens, cujos sonhos felizes e bons ideais podem tomar um novo rumo.
O personagem feminino, nesse contexto, é colocado em segundo plano não pela natureza equivocada de uma sociedade machista, mas sim porque Farhadi sugere que o espectador observe a derrocada do personagem masculino de forma isolada a partir das armadilhas emocionais que ele cria para si próprio ao se relacionar com o mundo. Não há condenação do personagem feminino (ainda que ele próprio tema a condenação social), e Hana ressurge lúcida e decisiva no final – mesmo abalada pelo trauma – e, tal qual sua personagem na peça, observa a ruína construída unicamente pelo marido (da qual ela não compartilha) e que o levará ao fundo do poço.
O cerne moral de “O Apartamento” não é nenhuma novidade no cinema (vários grandes filmes já trataram sobre como o ser-humano pode vir a cometer atos que questiona e recrimina quando é pressionado), mas Asghar Farhadi (também responsável pelo roteiro meticuloso) conduz a trama com delicadeza observando a história fluir lentamente com seus personagens à vontade em atender a um destino praticamente inevitável. É como se uma ampulheta tivesse sido virada e só resta (aos personagens e ao espectador) observar a areia fina cair… tristemente. Fique atento as rachaduras.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne