por Marcos Paulino
15 anos atrás, Nando Reis lançou-se em carreira solo. Seu álbum de estreia, “12 de Janeiro”, é datado de 1994, e até 2000 ele integrou a fileira dos Titãs. A partir de 2001, com “Infernal”, ele se viu solo, mas não sozinho. Muitos dos nomes que o acompanham em “Jardim-Pomar”, seu oitavo álbum solo, são companheiros de primeira hora, como Jack Endino (que havia produzido os Titãs nos anos 90 e o belo “Para Quando o Arco-Íris Encontrar o Pote de Ouro”, segundo solo de Nando, de 2000), o eterno R.E.M. Peter Buck (que já tocou bandolim em duas canções de Nando, e agora exibe sua Rickenbacker de 12 cordas na nova “Inimitável”) e o baterista Barrett Martin, ex-Screaming Trees, uma das grandes bandas da cena de Seattle, fiel companheiro de Nando Reis há quase 20 anos.
Além do grupo de amigos acima, velhos e novos rostos marcam presença em “Jardim-Pomar”: Mike McCready, guitarrista fundador do Pearl Jam, sola em “Pra Onde Foi?” e os amigos dos Titãs Arnaldo Antunes, Branco Mello, Sérgio Britto e Paulo Miklos se juntam a Pitty, Luiza Possi e Tulipa Ruiz e aos filhos Theo, Sebastião e Zoé. Todos participam da faixa “Azul de Presunto”. Gravado entre Seattle e São Paulo e novamente lançado por seu selo próprio, Relicário, com uma arte caprichadíssima e também edições em vinil e fita cassete, “Jardim-Pomar” é o disco que Nando Reis considera o mais rock’n’roll de sua fase solo. “O fato de eu ter que me envolver com a produção, com a comercialização e com a divulgação permite que eu faça da forma como quero”, avisa na entrevista abaixo. Confira.
Na sua carreira solo, você vem lançando um disco de inéditas a cada três ou quatro anos, e entre um e outro sempre tem algum projeto especial, como um ao vivo ou acústico, por exemplo. Essa periodicidade faz parte de um planejamento ou os discos aparecem conforme as oportunidades?
É uma conjunção de fatores. Hoje não se vendem mais discos, e a gente sobrevive fazendo turnê. No mercado de hoje, o disco, além de ser uma realização para o artista, necessita ter um espaçamento maior, porque é preciso ficar em turnê. Os discos precisam de cuidados, trabalho, e cada vez é mais difícil fazer isso, porque ninguém mais parece interessado neles. E, evidentemente, meu ritmo de produção não é o mesmo de quando eu tinha 20 anos. Gosto de trabalhar em outras coisas, de estar em turnê, de ter parcerias. Não vivo só em estúdio, embora seja um prazer imenso. Mas também é preciso criar uma expectativa maior pra que seja uma forma de chamar mais a atenção das pessoas que se interessam pelo trabalho.
O disco foi gravado parte nos EUA, parte em São Paulo e finalizado no Rio. Por que foi necessário todo esse esquema?
Por planejamento e necessidade. Como sou independente, e preciso bancar tudo isso, fui fazendo conforme tinha dinheiro pra fazer da forma que eu gostaria. Nunca tinha gravado dessa forma, com um intervalo entre a sessão de Seattle e a de São Paulo. Isso permitiu um tempo de maturação, como perceber que a versão de “Só Posso Dizer” de Seattle [há também uma versão da música gravada em São Paulo no disco] tinha ficado lenta e poder regravar. Sempre gostei de gravar em vários países, e em Seattle por causa do Jack Endino. Isso não é muito diferente do que sempre fiz. A diferença é ter feito com essa calma. Terminei a parte musical em abril e aí entrei no processo de concepção gráfica, depois no planejamento pro lançamento. Um trabalho feito com bastante rigor e cuidado precisa de tempo.
Você mesmo já classificou este disco como o mais rock’n’roll de sua carreira solo. Isso aconteceu naturalmente, durante o processo de criação, ou já estava nos seus planos?
Fazendo shows, percebi que havia muitas músicas com andamento lento. Demorei um tempo pra perceber isso, talvez, justamente, porque essas músicas fizeram sucesso. Sempre gostei de rock’n’roll, então acho, sim, que dei uma atenção a isso. Neste disco, comecei a dar importância a coisas que estava deixando de lado pela forma quase imediatista de privilegiar a espontaneidade e o frescor. Então há uma parte bastante racional e de planejamento. Mas acho que todas as categorizações são um pouco redutoras. Neste disco, queria que ele abrangesse um aspecto maior que o meu gosto musical, minhas influências. Mas acho que um bom riff e uma música poderosa são a melhor forma de se abrir um disco.
Você está lançando o disco nas plataformas digitais, ok. Em CD, ok. Em vinil, que vem sendo uma tendência, ok. Mas chama a atenção o formato fita cassete. Por que essa decisão, se hoje quase nem há mais onde tocar uma fita?
É claro que tem uma reiteração de que acredito no objeto físico. A fita cassete tem uma certa ironia. A informação subliminar é que a fita é muito semelhante, do ponto de vista funcional, a um iPod ou a uma seleção no seu celular. Há 30 anos, pra transportar ou ouvir no carro ou no walkman, você gravava e fazia seleções. Então, não deixa de ser uma forma de dizer que tudo anda em círculos. Fico feliz que o vinil tenha voltado a chamar a atenção, tem gente que compra e nem tem vitrola. Me agrada que as pessoas percebam que a música digital faz perder aquilo que é muito rico num disco, a sua sequência, a sua alternância de climas e informação, que propõem uma experiência muito mais sofisticada, muito mais densa, do que a satisfação imediata de acionar uma música que você quer ouvir. E no vinil isso fica muito evidente, além da questão plástica, visual. O vinil é um objeto muito mais bonito. É maravilhosa essa facilidade da internet de você ter contato com tudo, mas música digital, vamos combinar, não nem tem capa. Dessa forma, acho bastante pobre, porque meu trabalho como artista vai além da questão musical, envolve a experiência sensorial, a reflexão que um disco exige. Há um excesso de dispersão nessa coisa de tanta informação em tanto lugar, que se reflete não só na forma como as pessoas ouvem música, mas como não conseguem nem dormir direito, porque não desligam da porra do celular.
“Jardim-Pomar” tem um projeto gráfico caprichado, com direito até a informações em braile, o que denota também uma preocupação com a inclusão.
A escala dos vinis, que foram desmembrados em dois, é mais impactante ainda, muito bonita. E a coisa da inclusão pra mim nem é uma tendência nova, porque tenho um irmão surdo e uma irmã que teve paralisia cerebral. A inclusão vai além de uma ideologia, é a minha experiência de vida. É magnífico juntar tudo isso dentro daquilo que é a minha expressão de trabalho. Um disco diz muito a respeito de quem eu sou, no que acredito, não apenas na informação que está sendo dita, mas de todas as maneiras possíveis. O disco é cheio de referências que muitas vezes escapam aos críticos apressados. Uma delas é sobre um dos artistas de que mais gosto, o Stevie Wonder, que especialmente nos anos 70 lançava discos com informações em braile. De certa maneira, eu o homenageio e digo muito a respeito de quem eu sou.
Essa liberdade de poder dirigir o projeto gráfico, de lançar uma fita cassete, tem muito a ver com o fato de você ser independente. Que outras vantagens você vê em não estar atrelado a uma grande gravadora?
O fato de eu ter que me envolver com a produção, com a comercialização e com a divulgação permite que eu faça da forma como quero. Nos anos de gravadora, se você embalasse o disco num papel “x”, ele iria pra uma faixa que fazia o preço dele subir muito na loja. Porque as gravadoras sempre pensaram em aumentar a faixa de lucro, são multinacionais que trabalham com orçamentos bilionários. Eu sou um pequeno empresário que cuida apenas daquilo que faz, um artesão. Meu trabalho agora abrange tudo aquilo que envolve a produção de um disco. Sempre fui cuidadoso com a parte gráfica, mas dependia de orçamentos que não eram estabelecidos por mim.
Na faixa “Azul de Presunto”, você juntou a galera dos Titãs, filhos e outras convidadas. Como surgiu essa ideia e como foi a bagunça da gravação?
[Risos] A ideia surgiu imediatamente quando fiz a música, pelo assunto, por aquilo que ela pretende dizer sobre pluralidade, sobre diversidade. Quis que ela fosse cantada por várias vozes, que nela tivesse uma representação da minha coletividade, do meu microcosmo. Aí tive a ideia de convidar meus amigos Titãs, porque também é um reconhecimento da importância deles na minha vida. Às vezes fica uma ideia meio segmentada, como se eu cortasse as coisas, essa coisa de sou carreira-solo, sou ex-titã. Não é assim que penso. Com grandes amigos, sempre foi uma farra. Ali estão também meus filhos, que sempre conviveram muito com os Titãs, então foi um reencontro. E como queria vozes femininas, pude chamar artistas que admiro e de quem nunca tinha tido oportunidade de me aproximar. Fiquei muito feliz que Pitty, Luiza e Tulipa aceitaram contribuir. Foi uma farra, sim, e sempre tem que ser. Não dá pra pensar no trabalho como um martírio. Minha vida tem essa facilidade: faço o que gosto.
Além dos brasileiros, você caprichou na escolha dos gringos que participaram. Como rolaram essas participações?
Tem uma galera da pesada! [Risos] A música americana é determinante na minha formação. E a vida, por acaso, foi me colocando em contato com pessoas como o Jack Endino, depois o Barret Martin, grandes músicos que se tornaram grandes amigos. O Barret é muito amigo do Peter Buck, que já tocou em discos meus, e do Mike McCready, que não conheço pessoalmente. Fico muito lisonjeado, orgulhoso, honrado de eles terem participado. Estou envolvido com essa gente e não preciso fazer alarde disso. Nunca precisei divulgar que o Peter Buck gravou no meu “A Letra A” no momento áureo do R.E.M., com o bandolim milionário de “Losing My Religion”. Não me interessa divulgar, mas já que você me perguntou, sim, fico muito feliz de ter gente que admiro cada vez mais perto de mim.
Sua carreira solo é tão consolidada, que talvez haja uma galera mais nova que nem saiba que você já fez parte dos Titãs. E há ainda aqueles fãs que te acompanham desde a época da banda. Enfim, quem consome sua música hoje?
Uma maneira de aferir é quem entra em contato comigo pelas redes sociais, e é muito gratificante ver que tem gente de todas as idades. Acredito que minha música tende a ser universal, porque o que falo não é direcionado a um gueto nem a uma geração, e não há demérito nenhum em músicas que falam a um segmento. Chamar a atenção de tanta gente é bom porque garante uma renovação, uma ampliação do meu público, o que significa que meu trabalho mantém uma vitalidade e desperta interesse, e isso me permite sobreviver.
Quais seus próximos passos?
Estou voltado ao lançamento do disco. Em fevereiro, inicio os ensaios pra turnê que começa em março. Certamente, 2017 será um ano dedicado à divulgação deste meu trabalho novo.
– Marcos Paulino é editor do caderno Plug (www.mundoplug.com), da Gazeta de Limeira.
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