Texto e fotos por Marcelo Costa
Em sua segunda vinda ao Brasil (após dois grandes shows em São Paulo em 2013), os tugas do Deolinda baixaram no Rio para um show gratuito na noite de abertura da Festa dos Santos Populares Portugueses, na Praça XV de Novembro, no centro antigo, que exibe uma estátua equestre de D. João VI. Com o palco montado em frente ao Paço Imperial, edifício colonial datado de 1738, e tendo as costas o Palácio da Ilha Fiscal, os Deolinda encontraram na sexta-feira (10/06) um bom público, que enfrentou uma noite fria (para cariocas: 17 graus) a fim de conferir um dos principais nomes da música portuguesa contemporânea ao vivo.
Com uma formação predominantemente acústica que traz Pedro da Silva Martins (violão e principal compositor e letrista da banda), José Pedro Leitão (contrabaixo acústico) e Luís da Silva Martins (violão, viola braguesa e vocais) mais a empolgante frontwoman Ana Bacalhau, os Deolinda surgiram na Praça XV (diferentes do show em São Paulo) acrescidos do baterista Rui Freire, que encorpou a sonoridade do quarteto com destreza, uma tarefa delicada vide a suavidade das canções de “Outras Histórias” (2016), quarto álbum lançando em março, que amplia o cenário bucólico que o álbum anterior, “Mundo Pequenino” (2013), já insinuava.
Com o ator global português Ricardo Pereira de mestre de cerimônias e a jornalista Ana Paula Araújo na beira do palco, os Deolinda surgiram privilegiando material novo (11 das 15 canções de “Outras Histórias” entraram no set da noite) com as canções “Manto Para Dois”, “Mau Acordar”, “Bom Partido”, “As Canções Que Tu Farias” e “Bote Furado” funcionando muito bem ao vivo. “Corzinha de Verão”, primeiro single do álbum, trouxe Ana Bacalhau, impagável, contando: “Essa música é sobre uma pessoa que nunca encontra o sol quando sai de férias. Dai a gente vem pro Rio e pensa: vamos pegar uma corzinha. E encontramos esse tempo”… (risos gerais).
Ana Bacalhau é pequenina e surge num vestidinho preto com uma jaqueta dourada, mas se agiganta em cena. Pedro da Silva Martins (auxiliando bastante como backing vocal) e José Pedro Leitão dividem o lado esquerdo do palco enquanto Luís da Silva Martins se alterna, no lado direito, entre violões, cavaquinho, viola braguesa e brinquedinhos (durante a fofa “A Avô da Maria”) no melhor estilo Pato Fu. Aliás, a grande banda mineira é um paralelo perfeito para os Deolinda, pois as duas bandas são formadas por casais em uma banda bastante peculiar (John e Fernanda no Pato Fu, Ana e Zé Pedro no Deolinda).
No caso dos Deolinda, surgido em Lisboa em 2006 e com uma carreira amplificada durante os difíceis anos de crise em Portugal (através de canções que viriam a se transformar em hinos de protestos – uma delas, “Parva que Sou“, inspirou o movimento “Geração à Rasca” que em 12 de Março de 2011 protagonizou as maiores manifestações não vinculadas a partidos políticos desde a Revolução dos Cravos), a força interpretativa de Ana Bacalhau se destaca, e mesmo no Rio ela não perde o jogo de cintura: assim que um forte coro de #ForaTemer ecoa na Praça XV, ela vira o microfone para a plateia e depois saúda: “Viva a democracia”.
Não seria o único momento que o nome do vice-presidente decorativo interino seria lembrado nesta noite: “A música que vamos tocar agora tem uma palavra que não existe no Brasil: berbicacho”, ela diz, e explica: “Berbicacho significa um grande problema… um problemão! Vocês entendem? O que é um problemão pra vocês?”. No meio do público, várias pessoas gritam: “Michel Temer!” E ela arremeta, sagazmente: “Isso, Temer é um berbicacho”. O público aplaude a tragicidade da piada e alguém comenta: “A Ana Bacalhau tirou a jaqueta dourada, mas não para de brilhar”. Que grande intérprete, que domínio de palco.
“Mundo Pequenino”, o álbum anterior de 2013, é coadjuvante na noite, com apenas “Seja Agora” e “Musiquinha” presentes no set. Do segundo disco, “Dois Selos e um Carimbo” (2010), marcam presença a empolgante “Um Contra o Outro” (que já vinha sendo pedida por parte do público de forma insistente), a bonita “Passou Por Mim e Sorriu” e as absolutamente hilárias “Quando Janto em Restaurantes” e “A Problemática Colocação De Um Mastro”, esta última obrigatória em uma festa de santos populares portugueses e mostrando um humor irônico que é uma das grandes virtudes das letras dos Deolinda.
O álbum de estreia, “Canção ao Lado” (2008), foi celebrado com versões poderosas de “Mal por Mal”, “Fado Toninho” e “Fon Fon Fon”, além, claro, das sensacionais “Movimento Perpétuo Associativo” (sobre pessoas que falam sobre mudar as coisas, mas que nunca vão às ruas) e, escolhida pelos fãs no Facebook da banda, “Garçonete da Casa de Fado”, que Ana Bacalhau se apressa a explicar, divertidamente, “Não é uma canção para tirar sarro dos brasileiros”, encerrando uma noite especialíssima em que os Deolinda, vivendo um momento de calmaria (poética e musical), embalaram novamente os sonhos de um país em crise.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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