por Marcos Paulino
É estranho constatar que, até alguns dias atrás, Samuel Rosa e Lô Borges não tinham sequer um disco gravado juntos. Afinal, há tanto tempo são parceiros, que registrar esse encontro de duas gerações importantes da música mineira era algo mais que natural. Mas o fato é que apenas agora, uma década e meia depois do primeiro show da dupla, a reunião está devidamente documentada.
“No início do projeto com o Lô, a ideia era ser meramente um encontro dos dois no palco. Não existia plano pra lançarmos um disco (…) era uma coisa descompromissada, leve, sem data, sem obrigação”, conta Samuel, explicando que a intensa atividade da carreira solo de Lô e sua vida corrida com o Skank (“que continua atuante e em plena atividade”) tornavam quase impossível tocar outros projetos.
Mas, felizmente, sobrou um tempinho para registrar “Samuel Rosa e Lô Borges”, título do DVD e do CD do espetáculo gravado ao vivo no Cine Theatro Brasil de Belo Horizonte, em agosto de 2015. No repertório, sucessos do Skank de Samuel, do Clube da Esquina de Lô e outros compostos em parceria pelos dois, como “Dois Rios”, de 2003, a primeira música que fizeram juntos. Nesta entrevista, Samuel explica melhor o projeto.
Você e o Lô Borges fazem shows juntos desde 1999 e são parceiros de composição há anos. Por que demorou tanto para registrar uma dessas apresentações?
Não sei se teria um motivo que explicasse completamente essa defasagem do período em que a gente começou os encontros e este primeiro documento. Vale lembrar que nesse período o Lô continuou tocando a carreira dele e eu também, dentro do Skank, uma banda que continua atuante e em plena atividade. Isso demanda gravação de disco, turnê… Cheguei a acreditar que conseguiria dar uma breve pausa na carreira com o Skank pra cuidar de outros projetos, mas vi que isso é quase impossível, pelo menos agora. Vi que a alternativa seria mesmo tocar outros projetos paralelamente à existência do Skank. No início do projeto com o Lô, a ideia era ser meramente um encontro dos dois no palco. Não existia plano pra lançarmos um disco, fazermos uma turnê ou fecharmos contrato com uma gravadora. Era uma coisa descompromissada, leve, sem data, sem obrigação, só pelo mero prazer de estar junto, de tocarmos as coisas de que gostamos e talvez depois compormos juntos. Depois de algum tempo, faz uns cinco ou seis anos, é que nos ocorreu gravar o projeto, pra que o Brasil pudesse conhecer.
O repertório do DVD fica bem dividido entre as composições clássicas do Lô e as suas, além das parcerias entre os dois. Vocês chegaram a ficar tentados a fugir desse set list previsível ou é isso mesmo que os fãs querem ouvir?
Durante esse período todo, experimentamos muitas músicas, coisas conhecidas e outras nem tanto. Mas com a proximidade da data da gravação, precisamos fechar o set list. Não foi uma coisa muito difícil, porque ao longo do tempo houve uma seleção natural. Algumas músicas estão desde o início, outras foram compostas depois que o projeto começou. Havia 70% ou 80% das coisas que tocávamos que achávamos obrigatório que entrassem no repertório, e outras que poderíamos pontuar, como as parcerias e as mais recentes.
A participação da Fernanda Takai e do Milton Nascimento também não foi nenhuma surpresa. Pensaram em mais alguém que por algum motivo não pôde estar presente?
Um convite ao Milton era quase que inevitável, uma vez que ele é um pouco responsável por esse encontro. Ele sempre foi muito interessado no Skank, já gravou música minha, já participei de projetos com ele. E ele e o Lô são parceiros musicais há muito tempo, já fizeram várias obras-primas. Então ele tinha que existir nesse projeto. Com a Fernanda, mesmo ela sendo da minha geração e da mesma cidade, nossa aproximação só se deu recentemente. Gravei no disco dela, ela gravou coisas do Skank com o Pato Fu. E também recentemente ela participou de projetos com o Lô. Nossa intenção era que os convidados seguissem a mesma filosofia do meu encontro com o Lô, ou seja, que tivessem, além de um respeito musical muito grande, uma afinidade pessoal antes de tudo. Não sentimos a obrigação de que deveríamos surpreender alguém. Pra mim, estar fora do Skank com outro artista, ainda que seja alguém com quem eu tabele há muitos anos, já é algo bem diferente. Não é comum para os artistas de pop rock abrirem momentos na carreira pra gravar sem sua banda, ainda mais com alguém de outra geração. Pra mim, isso já é surpresa em dose suficiente.
Hoje você tem 49 anos e o Lô, 64. São, portanto, de gerações diferentes do pop mineiro. Como conseguiram tanto entendimento musical?
Quase todos os garotos da minha geração que tivessem pais com um mínimo de bom gosto escutaram o Clube da Esquina por tabela. [Risos] Mais pra frente, inserido na cena musical belo-horizontina, com uma preponderância muito grande do Clube da Esquina, acabei entendendo um pouco mais, busquei outros discos, outros compositores. Curiosamente, sempre tive uma admiração muito especial pelo Lô. Achava que ele era um cara que, com toda sofisticação, com toda erudição, tinha uma linguagem mais próxima do pop e do rock. E isso talvez tenha sido um facilitador pra que eu entrasse no universo dele. Quando surgiu aquela turma dos anos 90, Skank, Pato Fu, era regra todo mundo pontuar o abismo estético que havia entre as duas gerações. Nossa proposta era muito diferente da do Clube da Esquina. A gente estava num momento de negar a geração anterior, queríamos que não nos achassem uma raspa de tacho, os caras que iriam dar uma continuidade ao Clube da Esquina, à música mineira ociosa. Então criou-se um certo antagonismo, até que o Lô quebrou esse gelo gravando “Te Ver” no disco dele [“Meu Filme”, de 1996]. Ele mostrou que achava bom ter uma nova geração, com outra proposta, com outras referências, e que gostava do nosso som. Quando o conheci, lhe disse que era fã dele, que tinha todos os discos, e daí nasceu uma amizade, que foi pro palco por sugestão de um amigo em comum. Então começou a história toda.
O Lô já declarou que sempre fez músicas mais complexas, mas que aprendeu com você que é possível compor ótimas canções com menos acordes. E você, o que pode destacar de tudo o que aprendeu com ele?
Pra mim, é mais fácil dizer tudo que aprendi com ele [Risos]. O Lô é um mestre da composição, tem uma forma de composição harmônica muito genuína, muito interessante. Olhando pra discografia do Skank, consigo ver claramente o quanto esse encontro com o Lô representou pra mim em termos de composição. Se ele descobriu que é possível fazer músicas interessantes com dois acordes, eu descobri que é possível fazer músicas diretas, sem muita complicação, usando mais que dois acordes. [Risos] Na minha tentativa de romper com uma estética inicial do Skank, de baterias eletrônicas, de músicas mais simples, diretas, quis emprestar uma complexidade maior às canções da banda. Nada muito experimental ou totalmente vanguardista, nada disso. Simplesmente ajeitar uma nova maneira de compor, que não dependesse tanto dos metais, ou que não começasse a partir de uma batida de bateria. Aí veio “Resposta”, veio “Dois Rios”, “Balada de um Amor Inabalável”, que já têm algumas dissonâncias nos acordes.
O Lô me disse, no lançamento de seu último disco de inéditas, “Horizonte Vertical”, em 2011, que o público dele se renova constantemente. Em 2014, você me garantiu o mesmo sobre o Skank no lançamento de “Velocia”. E os fãs de vocês dois juntos, quem são?
É uma pergunta difícil, e vou ter mais condições de te responder depois que a gente fizer alguns shows. A sensação que eu tinha, salvo raras exceções, é que as pessoas, ao irem ao show do Samuel e do Lô, não sabiam o que iriam encontrar. Se era um projeto de músicas inéditas, se iríamos privilegiar o Clube da Esquina, o Lô ou o Skank, e se, privilegiando um ou outro, de qual fase da carreira. Era meio que um susto, as pessoas iam descobrindo o que tinham comprado durante o show. Agora, com o lançamento do DVD, a gente coloca uma legenda, fica mais fácil de entender. O que sinto é que as músicas, apesar de serem de fases diferentes, conseguem manter um diálogo entre elas no show. E vejo na plateia, na grande maioria, pessoas que têm, no gosto musical, uma interseção das músicas do Skank e do Lô Borges. O público do Skank já não é mais tão jovem, são pessoas que casaram, tiveram filhos. E pra essas pessoas entenderem a música do Lô, acredito que seja mais tranquilo. Também vejo hoje que uma moçadinha de 16, 17 anos, até porque sou pai de um garoto de 17 anos, não sei se pelo desgaste, pela falência da música pop brasileira, que não existe mais, está buscando lá atrás coisas que possam atender a eles, que tenham juventude, mas também conteúdo. E encontram isso na música do Clube da Esquina. Hoje é muito mais fácil, não é preciso recorrer àquele vinil velho que está na casa do seu avô ou do seu pai, está tudo na internet. Vejo uma moçada mais iniciada em música, que procura a música brasileira produzida no início dos anos 70, os tesouros da Tropicália, dos Novos Baianos, da música progressiva, psicodélica. Estão garimpando os tesouros da nossa música.
Você e o Lô terão tempo para uma turnê juntos?
A ideia é essa. Vamos cobrir as principais capitais do Brasil e, o máximo possível, fazer o público brasileiro sabedor desse encontro.
E o Skank, o que há de novo para contar aos fãs da banda?
O Skank continua na turnê do “Velocia”, ainda estamos colhendo os frutos do disco. Estamos na terceira música de trabalho. É provável que no ano que vem a gente venha a lançar alguma coisa. Ainda não posso garantir, porque não tivemos nenhuma reunião pra definir isso, mas é bem provável termos coisas inéditas do Skank. Ou quem sabe minhas, solo, não sei. [Risos]
– Marcos Paulino é editor do caderno Plug (www.mundoplug.com), da Gazeta de Limeira.
Ótimo projeto. Clube da esquina com certeza é uma das melhores coisas da música brasileira
Achei bacana, afinal os dois são grandes mestres do pop… compõe canções que realmente pegam na veia. Porém, eu acharia ainda mais legal se fosse um disco de inéditas.
Também estava esperando por um de inéditas.