por Ana Clara Matta
Nossos afetos operam, muitas vezes, através de sinédoques. Cremos que amamos um todo hipotético porque o relacionamos com algum de seus conteúdos. Essa é a receita do fracasso que rege o retorno de muitas bandas do passado, mas não se aplica ao novo disco do trio Sleater-Kinney, que rompe um silêncio fonográfico de 10 anos. Carrie Brownstein, Corin Tucker e Janet Weiss refutam o seu amor metonímico na faixa título desse disco, quando cravam que “Não são as cidades que realmente amamos”, e sim o seu clima, as pessoas que nela vivem e o conjunto de ideias que preenchem o “nada”, a folha em branco dessas cidades, que amamos.
Nós não amamos uma banda. O que é uma banda? O seu nome? Os seus integrantes? Se apenas esses elementos retornam após uma pausa, o amor não se sustenta nos fãs. Falta algo, e isso explica as turnês caça-níqueis que lotam as casas de show a cada ano.
Nós não amamos, mesmo, uma banda. Amamos os sentidos que unimos a essa banda, a essência do som, os símbolos que lotam a identidade desse grupo de indivíduos que mal conhecemos. Amamos músicas e quem sabe amamos momentos que passamos ao som dessas músicas – e juntamos tudo isso em uma macro-estrutura que podemos chamar de “banda”. Então um retorno só pode ser bem sucedido (e justificar a saída dessa banda de uma dormência nostálgica) se o pacote completo retorna.
O trio do noroeste dos EUA retornou nesse ano com o disco “No Cities To Love” num pacote completo, seja em estrutura sonora, mais uma vez baseada na bateria firme de Weiss e na quase-virtuose punk (se é que isso existe) de Brownstein, seja em seu conjunto de ideias. Em entrevista para a PBS, Weiss declarou que o motivo do retorno se esconde na frustração que sentiam quando pensavam que nenhuma banda atual estava dando continuidade ao projeto da Sleater-Kinney – logo, para o trio, nem importava se essa essência que realmente preenche o nome de uma banda fosse levada em frente pelas mesmas integrantes. Weiss e Brownstein tentaram levar esse projeto em frente com o Wild Flag, mas o veredito tirado dessas experiências está no refrão grudento de “Surface Envy”.
We win, we lose, only together do we break the rules
We win, we lose, only together do we make the rules
“No Cities To Love” é um disco que, em vários momentos, parece versar sobre si mesmo. “Hey Darling” soa como o acordo feito entre as integrantes para possibilitar o retorno da banda, “Fade” revela o fardo da vida nos palcos e “Bury our Friends”, tal como “Surface Envy”, é mais um exercício na produção de hinos, e sua letra mira na ideia iconoclasta que costura as eras do punk.
A banda continua, porém, abraçando seu papel como conjunto de cronistas da sociedade norte-americana, e “Price Tag” (não confundir com aquele single dos verões passados de Jessie J) traz para a pauta a crise econômica e o consumismo, da mesma maneira que “Jumpers” (do disco “The Woods”, de 2005) trazia o suicídio e “One Beat” (2002) trazia os ataques de 11 de setembro. Em um verso de “No Anthems”, uma das músicas que fecham “No Cities To Love”, o Sleater-Kinney oferece algo tão próximo de um manifesto definitivo do movimento Riot Grrl (quase esquecido no atual panorama a-histórico do feminismo) que poderia ter saído diretamente de um dos fanzines noventistas de Kathleen Hanna.
But I want an anthem, I’m singin’ an answer
An answer and a voice
To feel rhythm in silence, a weapon, not violence
Power, power, source
A ambição sonora de “The Woods” foi abandonada por um som mais direto e focado no “power trio” tradicional, e o apreço que “No Cities to Love” tem pelos refrões cantaroláveis o coloca em um relacionamento mais próximo com o hoje quase clássico “Dig Me Out”, terceiro disco da banda (1997).
Uma das virtudes mais admiráveis em uma banda é o “saber quando parar”, mas “No Cities to Love” mostra que outra virtude é tão importante quanto – a de saber quando, como, e porque, retornar ao jogo.
– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Rock ‘n’ Beats e do Ovo de Fantasma
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