por Leonardo Vinhas
“O cão que guarda as estrelas” é uma expressão idiomática japonesa que significa almejar o impossível. É também o título da primeira história sequencial do artista Takashi Murakami, que vendeu mais de 400 mil cópias em seu país natal, Japão, e chega ao Brasil em 2014 (seis anos após a publicação do original, “Hoshi Mamoru Inu”) numa bem-cuidada e acessível edição da JBC.
O personagem da história perdeu muitas coisas, menos aquilo que escolheu manter. Nada é mais importante para ele do que Happy, o cachorro que sua filha o convenceu a adotar. Nada mesmo: nem a própria filha ou sua esposa, que o abandonam quando decidem viver suas próprias vidas.
Somente nesse “abandono” – que acontece nas primeiras páginas do livro – Murakami já propõe tantas questões que não dá para passar impune pelas páginas. Teria o abandono acontecido porque o homem adquiriu uma doença crônica? Ou porque sua passividade o impediu de estabelecer ligações reais com sua família? Ou porque família enquanto unidade indivisível é um conceito utópico, quase opressor?
A construção das relações, e como lidamos com o resultado delas, está presente na obra, assim como está presente a aparente falta de sentido nas escolhas emocionais que fazemos – por que amar este, e não aquele? Por que unir-se não é sinônimo de amar?
Sem família, sem emprego, e com pouco dinheiro, o homem sai com seu carro rumo ao sul do Japão, onde nasceu e cresceu, para tentar encontrar uma nova vida no interior, já que a vida atual só existe ao lado de Happy e não são muitos os lugares em uma grande cidade onde uma pessoa pode viver com um cachorro (apartamentos e casas com permissão para abrigar animais são bem mais caros na terra do sol nascente).
Mas logo se percebe que o destino importa menos para o protagonista do que estar ao lado de Happy. E também ele, Happy, abandonado pelas mulheres da família à qual pertenceu, já tem uma ligação forte demais com seu “pai” para não aproveitar cada minuto ao lado dele, descobrindo o mar, a miséria, a generosidade e o desapego, e apreciando cada momento, mesmo os mais dolorosos, ao lado de quem ele mais ama.
Essa é a primeira parte do livro. Na segunda, um assistente social, por razões que vão se esclarecendo aos poucos, decide refazer o caminho de Happy e seu “pai”. E também aí ele terá contato com sentimentos e descobertas muito similares às da dupla, ainda que por meios totalmente diferentes, e tendo que lidar com uma mágoa que eles felizmente não sofriam.
“O Cão que Guarda as Estrelas” é o tipo de história que pode ser contada no cinema (tanto que ganhou uma adaptação em 2011), na TV ou em um romance, mas que em quadrinhos ganha uma dimensão maior, valorizada tanto pelos silêncios como pela arte ou pela concisão e veracidade do texto. Murakami fez uma obra passional, mas jamais apelativa ou excessiva em sua delicadeza. Há tristeza e dor, porque sempre há, mas também alegria e paz – porque, por incrível que pareça aos mais cínicos, elas podem existir também.
Ao término, o leitor vai gastar muitas horas pensando em quem é o cão que guarda as estrelas, no sentido idiomático da expressão. A resposta é individual, e certamente surpreenderá.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
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