por Adriano Costa
Um faquir, explica o dicionário, é um ser que acredita no trunfo do espírito e no poder da mente sobre o corpo, e, por isso, executa feitos de resistência ao corpo humano desprezando qualquer sensação física. Quando a imagem se associa a palavra, é comum imaginarmos logo aquele indivíduo magro, que encanta serpentes com uma flauta, faz jejum, deita sobre uma cama de pregos, engole espadas ou anda sobre cacos de vidro. Para alguns, são pessoas com dons sobrenaturais, dons mágicos. Para outros, são pessoas com extremo domínio do corpo e da mente.
O faquir indiano Ajatashatru Ahvaka Singh, personagem principal do romance “A Extraordinária Viagem do Faquir Que Ficou Preso em Um Armário Ikea” (“L’Extraordinaire Voyage Du Fakir Qui Etait Resté Coincé Dans Une Armoire Ikea” no original), não se enquadra em nenhum dos casos citados no primeiro parágrafo. O livro, escrito pelo francês Romain Puértolas, foi originalmente publicado em seu país natal em 2013 e virou um best seller por lá, ganhando reedição em mais de 35 países, inclusive no Brasil, via Editora Record, com tradução de Mauro Pinheiro e 256 páginas.
A trama consiste na viagem do referido faquir para a França com o intuito de comprar uma nova cama de pregos na gigante multinacional sueca do ramo de móveis, a IKEA. Para que essa pequena aventura se tornasse possível, Ajatashatru Ahvaka Singh engana a população do vilarejo em que mora fazendo com que eles banquem a passagem de ida e volta para a França e assim desce no aeroporto francês munido de uma nota de 100 euros (falsa!) no bolso para efetuar a aquisição do móvel. Sim, percebe-se aqui que Ajatashatru é um golpista e não possui nada de extraordinário além da sua patifaria e esperteza. Sempre foi assim, apesar de uma infância complexa, que o autor – sem muita razão – disserta mais adiante.
Como o título parcialmente entrega, dentro da loja na França, o “duble” de faquir consegue ficar preso em um armário e assim viaja por múltiplas outras nações – como Inglaterra, Espanha, Itália e Líbia – se metendo em confusões e revendo seu modo de ser e de agir. E é nesse quesito de repensar a vida que Romain Puértolas se perde completamente numa história óbvia demais. Enquanto foca na comédia inicial, o autor consegue atrair a atenção do leitor, pois por mais que a história em si não seja nada sensacional, cumpre a missão de divertir. Todavia, antes de chegar à segunda metade, a escritor perde a mão e a trama desce ladeira abaixo.
Além de insistir no fato de transformar a comédia em uma viagem de redescoberta (o livro acaba não sendo nem uma coisa nem outra), a repetição de piadas faz com que a graça se dissipe no decorrer das páginas. Bons artifícios como a brincadeira com os nomes dos personagens, assim como dos costumes dos povos apresentados, perdem a força por conta disso.
Fenômeno de vendas na França, onde atingiu a marca dos 250 mil exemplares vendidos, e presente em uma lista de livros indicados pela Folha de São Paulo sob o título de “Inevitáveis de 2014”, “A Extraordinária Viagem do Faquir Que Ficou Preso em Um Armário Ikea” decepciona e desperdiça um ponto interessante, que é expor o problema da imigração ilegal na Europa, tanto nas suas diretrizes quanto no tratamento dos imigrantes, tema deixado de lado pela falta de pulsação do texto. Por conta disso, a estreia do autor francês – um agente do controle de fronteiras francês com sete romances recusados até o sucesso deste livro – fica muito parecida com Ajatashatru Ahvaka Singh, engana, mas no final não cumpre bem o objetivo a que se destina.
– Adriano Mello Costa (siga @coisapop no Twitter) e assina o blog de cultura Coisa Pop
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