por Adriano Costa
Na Constituição Federal do nosso estimado país, datada de 5 de outubro de 1988, logo no primeiro artigo lê-se o seguinte: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Sim, um “Estado Democrático de Direito”, ou seja, nenhum indivíduo, presidente ou cidadão comum, está acima da lei, porque as leis devem expressar a vontade do povo, não os caprichos de “reis”, ditadores, militares, líderes religiosos e ou partidos políticos.
Dessa maneira, não é passível de concordância ou digna de legitimidade qualquer ação que vá contra isso, por exemplo, qualquer ação que signifique censura prévia de um livro, filme ou obra que se equivalha. Mas, infelizmente não é o que se vê na realidade do dia-a-dia brasileiro.
O caso mais famoso sobre esse tipo de proibição foi o livro “Roberto Carlos em Detalhes”, lançado no final de 2006 pela Editora Planeta e com a circulação interditada no início de 2007 pelo artista, fruto de uma audiência de conciliação na Barra Funda em São Paulo, com peculiaridades que honrariam um quadro de filme do Monty Python. Coerção, quebra de regras, adulteração de texto, juiz entregando CD’s de sua autoria para Roberto Carlos, promotor e juiz batendo alegres fotos com o artista depois da decisão, os advogados da editora acuados e esbanjando covardia. Em entrevista sobre “O Réu e o Rei” para o jornal A Tarde, Araújo diz: “Fui tratado como criminoso“. Um escritor. Pareceria cômico se não fosse trágico.
Essas minúcias e pormenores do processo agora são revelados pelo escritor Paulo Cesar de Araújo em “O Réu e O Rei”, com 526 páginas e edição da Companhia Das Letras, um livro profícuo que versa não somente sobre jornalismo, como também se correlaciona com o atual cenário onde (nesse momento) um projeto de lei que libera a publicação de biografias não autorizadas foi aprovado pela Câmara dos Deputados e segue para o Senado Federal, e assim se espera, para a sanção presidencial. Chega também depois do ridículo movimento chamado “Procure Saber” idealizado no ano passado por Roberto Carlos com a chancela de mais alguns ícones da música nacional que visavam justamente essa proibição.
Em “O Réu e o Rei”, Paulo Cesar de Araújo dedica boa parte das páginas para contar sua própria história, desde a saída do interior da Bahia até a chegada ao Rio de Janeiro. Navega na paixão pelas músicas do Roberto Carlos (quem leu o proibido “Roberto Carlos em Detalhes” percebe o tamanho dessa paixão) e pelo intenso projeto de pesquisa que fez com nomes representativos como Chico Buarque (que geraria um fato interessante depois), Caetano Veloso e Tom Jobim. Narra também seu percurso até a publicação do ótimo “Eu Não Sou Cachorro, Não”, de 2002, onde joga luz sobre a produção sonora assim denominada de “brega”, dos anos 70 e 80, e resgata músicos como Odair José, entre outros tantos.
A peregrinação do autor para entrevistar tantos artistas quanto conseguiu é envolvente, pois além de um atestado de perseverança e crença nas ideias que nutria, apresenta também um país diferente, com uma indústria fonográfica ainda forte e pulsante, mas que em contrapartida não tinha tanta frescura para ter acesso a seus criadores, e onde os assessores ainda não eram estrelas. Outro ponto bem agradável do registro consiste no relacionamento que o autor formou com João Gilberto, o crânio por trás da bossa nova, que sempre se demonstrou arredio e inacessível, mas que no livro exibe outros lados diversos a esses.
Não obstante, o personagem principal da obra é mesmo a pendenga judicial que envolve o livro de 2006. Movimentos sujos e sórdidos permeiam as páginas, assim como posicionamentos nada lisonjeiros para alguns dos envolvidos. O favorecimento fica límpido para uma das partes no livro. O inciso IX do artigo 5º da nossa constituição – que versa “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” – passa longe de ser obedecido. É justo lembrar que nesse mesmo artigo, no inciso X, temos: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Os incisos são conflitantes, mas tem o mesmo peso, o que não foi levado em consideração de modo correto no litígio.
Não cabe aqui entrar profundamente nos aspectos jurídicos que abrangem também, entre outros, o artigo 220 da mesma Constituição Federal e o artigo 20 do Código Civil (justamente é este artigo que o projeto de lei aprovado na câmara visa mudar), como também aspectos gerais aos conceitos de infâmia, injúria e difamação. Paulo Cesar de Araújo coordena de modo equânime as divergências de pensamento e teorias, e isso engrandece ainda mais o texto. Texto que em nenhum momento se opõe a reivindicações na justiça sobre eventuais ofensas ou inverdades através de indenizações. Ninguém quer autores desonestos no mercado, o que se discute é a proibição para publicações do tipo. Antes de serem lidas, inclusive.
Em um país como o nosso, que tanto sofreu (e por tanto tempo) com cerceamento e repressão de obras culturais das mais distintas espécies, o caso de Paulo Cesar Araújo tem um destaque maior, mas é bom afirmar que são vários os casos de litígio desse nível existentes. E isso tem que acabar. “O Réu e o Rei” é uma demonstração precisa desse fato. Roberto Carlos, que sempre expôs a vida e os fatos dela em revistas, jornais e tevê para benefício próprio, não é o melhor caso para alegar invasão de privacidade, quando na absoluta maioria do texto esses casos foram divulgados por ele mesmo.
Com suas manias e a obsessão dele e do seu séquito pelo controle de tudo, o “Rei” parece realmente acreditar que é dono desse título e merecedor de um tratamento de majestade em todas as esferas, como bem afirmou certa vez o jornalista André Barcinski. É desprezível essa posição. Ele deve se lembrar de que este título que ostenta é apenas uma (cada vez menos justa) homenagem pública as suas canções, canções que em boa parte exaltam atitudes contrárias às ações despropositadas que exibe. Podemos apenas lamentar e admirar obras sérias como a de Paulo Cesar de Araújo, baseadas em extenso trabalho de pesquisa e que louva as melhores prerrogativas do bom jornalismo.
Leia. Sem falta.
P.S 1: Existia um receio de que novamente Roberto Carlos entraria com um processo de proibição sobre um livro de Paulo Cesar de Araújo. No lançamento, mesmo novamente sem ler o texto, divulgou que mandaria para o jurídico analisar. Com medo de nova repercussão negativa na imprensa e em seu público, ou com finalmente a razão lhe tomando a cuca, o “Rei” afirmou nos últimos dias que não fará isso. Espera-se que continue assim.
P.S 2: É possível ler a introdução de “O Réu e o Rei” aqui. Abaixo, a integra do programa Roda Viva, com Paulo Cesar de Araújo, exibido em outubro de 2013.
– Adriano Mello Costa (siga @coisapop no Twitter) e assina o blog de cultura Coisa Pop
Leia também:
– Em Fortaleza: Como é grande o amor do público por Roberto Carlos (aqui)
– Dezembro de 2006: Roberto Carlos mostra seus defeitos ao vivo (aqui)
– Setembro de 2011: O quanto o Rei se tornou uma figura caricata (aqui)
Como todos os reis e reinados deveriam ser à esta altura, robertinho é apenas um artefato ultrapassado e ressentido, agarrado à própria noção de majestade. Um rei-fraude, friboi morto.
Triste, se não fosse o fato de que Roberto parece pedir cada vez mais que o público se afaste dele próprio através de atitudes como a que foi tomada em relação a Paulo César. De “Rei” a Ditador… esse também seria um título apropriado para o livro. O maior ídolo da música brasileira em todos os tempos perde cada vez mais oportunidade de tentar ao menos renovar um pouco do seu público ou pelo menos chamar um pouco de atenção entre as novas gerações que se seguem, coisa que o eterno parceiro Erasmo vem até de certo modo conseguindo assim como outros contemporâneos como o seu maior desafeto e primeiro parceiro, Tim Maia, falecido há quase duas décadas. O problema aí então, penso eu, é que Roberto sempre achou que seu lenga-lenga musical poderia suportar um público cativo o quanto tempo ele quisesse sem que ele se preocupasse em, sei lá, tentar se reinventar ou fazer alguma coisa um pouco diferente em seu trabalho… faz tempo ( muito tempo mesmo ) que ele não lança ou grava algo que faça jus à sua alcunha de “Rei”… agora pior: achar que pode controlar as pessoas e o mundo ao seu redor, aí já é demais… fiquei tão enojado com essa história toda que até mesmo os seus primeiros álbuns, seguindo cronologicamente até a sua fase soul, pareceram perder sua força, até. Espero que ainda haja uma mudança de rumo, não para o Roberto ( isso parece impossível, à essa altura, tanto artisticamente quanto pessoalmente ), mas sim para Paulo César e que sua obra ( RC em Detalhes ) seja publicada finalmente sem proibição qualquer.
Roberto Carlos nunca foi o rei da MPB, que fique bem claro.