por Marcelo Costa
Exatamente um ano após as manifestações que sacudiram o Brasil em 2013 (e ecoaram mundo afora) chega aos cinemas brasileiros e, simultaneamente, no iTunes, disponível para 80 países (com legendagem em espanhol, inglês, francês e alemão), “Junho”, de João Wainer, primeiro filme produzido pelo jornal Folha de São Paulo, e com distribuição da O2 Play, braço da O2 Filmes focado em cinema e Video On Demand (plataforma que disponibiliza filmes em banda larga).
Em 72 minutos de filme, João Wainer repassa dia a dia a saga da turma do Movimento Passe Livre, mas antes de entrar no mérito da obra, melhor elucidar alguns temas básicos:
1) “Junho” nasceu durante a cobertura dos eventos para o jornal, ou seja, o filme é fruto direto do dia a dia da equipe de reportagens da Folha acompanhando as manifestações, e Wainer, com o material em mãos, teve a excelente ideia de transformar a cobertura em um filme.
2) Boa ideia colocada na mesa, o formato escolhido pela edição (com praticamente todo o corpo de colunistas do jornal presente) deixa a sensação de que uma das funções de “Junho” é limpar a barra da Folha de São Paulo. Até o sem noção Pondé acerta nos comentários.
Dito isto, “Junho” é excelente e absolutamente obrigatório. Tolos que vão deixar de assistir ao filme (criticando sem tê-lo visto) por ser um objeto com a marca Folha de São Paulo irão perder uma obra histórica, que reconta didaticamente os eventos que tomaram o país em 2013. Mais: um corpo de comentaristas pontua de forma brilhante (com uma ou outra escorregada) a edição de imagens analisando o que se desenrolava nas ruas de todo o país numa interessante aula de sociologia
Entre as escorregadas está uma declaração do sociólogo Demétrio Magnoli defendendo o jornal responsável pelo filme ao dizer que a imprensa “caminhou ao lado da opinião pública” quando primeiro escreveu editoriais (Estadão, Folha e TV Globo, esta última via Arnaldo Jabor) condenando as manifestações e pedindo para a PM agir, e depois voltou atrás quando a PM atacou violentamente manifestantes. Magnoli minimiza erradamente a ação da grande imprensa, como um todo, e do próprio jornal em particular. Ficou feio.
Por outro lado, “Junho” ridiculariza de forma brilhante personagens hipócritas deste pobre país cheio de árvores e gente dizendo adeus. Entra no balaio Arnaldo Jabor (na comparação deliciosa de suas falas no Jornal da Globo, um dia após o outro), José Luiz Datena (apresentador movido pelo Ibope, que parece ter o dom de vender a própria alma se assim os números de audiência quiserem) e praticamente coloca nariz de palhaço na classe política brasileira, com destaque para o incompetente Geraldo Alckmin e o fantoche Fernando Haddad.
A presidenta Dilma Roussef também não sai ilesa do documentário, que começa com uma fala de uma ancora de um jornal da Rede Globo anunciando que “Junho começa com umidade”, corta para a Presidenta sendo vaiada na abertura da Copa das Confederações e segue paulatinamente batendo forte na incompetente classe política brasileira (felizmente) sobrando até para Renan Calheiros e José Sarney.
As análises são breves e pontuais. Um poeta da periferia observa: “Se as balas aqui na periferia fossem de borracha como são na Paulista, muitas mães teriam seus filhos vivos”. Gilberto Dimenstein reforça: “O que acontece diariamente na periferia aconteceu na Paulista, e a diferença é que a classe média estava filmando”. O sociólogo Sergio Adorno observa: “O que está acontecendo é um desencontro entre os cidadãos a as instituições”, enquanto Clóvis Rossi completa: “Você pode não gostar desses políticos que estão ai, eu não gosto, mas ainda não inventaram uma maneira melhor de dialogo entre Estado e população”.
Leitura atenta sobre os fatos acontecidos em julho do ano passado, o trecho final do documentário abre fogo contra a Copa do Mundo. O historiador T. J. Clark observa, espantado, que muitos brasileiros estão contra… o futebol. Mas não o futebol em si, mas “a catedral do futebol”, ele explica. Dilma aparece na sequencia dizendo que todos os estádios vão ser bancados pela sociedade privada e pelos Estados que vão usufruir. Corta para Romário, papo reto: “A Fifa criou um Estado dentro do Brasil e está mandando em tudo. A verdade é essa”.
O jornalista Juca Kfouri, em um dos melhores momentos do documentário, abre fogo contra João Havelange, critica a construção de um estádio modelo “Taj Mahal” em Brasília, “num estado que nem futebol tem”, e observa com sabedoria: “Brasília agora tem um estádio de primeiro mundo, mas o melhor hospital da cidade ainda é o aeroporto”. Ainda assim, T. J. Clark saúda as conquistas do governo PT, que tirou boa parte da população da miséria, enquanto alguém observa: “Essas pessoas saíram da miséria e agora querem mais: saúde, educação…”
Lançado em um momento político delicado, a poucos meses de uma eleição presidencial indefinida, “Junho” também parece reforçar a necessidade de ir às ruas e se manifestar contra a Copa do Mundo (não à toa, o filme termina como o bordão “Amanhã vai ser maior”), opção que, caso aconteça e fuja do controle, só pode prejudicar um candidato: Dilma Roussef. Não dá para ser inocente, porém, também não dá para não se emocionar com o povo clamando por seus direitos, e o povo é mais forte do que qualquer partido.
Há muita coisa boa em “Junho”, um filme que não só resume um mês importante na história do Brasil, mas praticamente resume o Brasil moderno, um país à deriva em que as diferenças entre esquerda e direita, situação e oposição, praticamente não existem, e a governabilidade nada mais é que um pacto entre líderes que não busca valorizar direitos do povo, mas os desejos de cada partido. Se amanhã será maior fica difícil prever (há torcida), mas que mídia, classe política e empresários inescrupulosos precisam ficar de olhos abertos, não há dúvida. Foi apenas uma vitória, mas o campeonato continua aberto. Que venham os próximos jogos.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne