Texto por Daniel Tavares
Fotos por Caio Girardi
Os maiores nomes da música no nosso século ainda são aqueles que eram os maiores no século passado. Muitos de nós ainda somos, em sua maioria, os mesmos que éramos em 1900 e alguma coisa. Mais experientes, menos bonitos e com mais cicatrizes, talvez. Em 9 de maio, 55 mil pessoas decretaram que aquele seria o dia do maior engarrafamento nas ruas de Fortaleza, a maltratada capital do Ceará. O destino dessas pessoas era a recém-inaugurada Arena Castelão, o primeiro estádio brasileiro a ficar pronto para a vindoura Copa das Confederações, para ver de perto um dos quatro responsáveis por praticamente toda a música que ouvimos hoje, Sir Paul McCartney.
Quase um ano depois, intervalo em que foi possível assistir a dois outros shows internacionais (Elton John e Beyoncé, todos pela mesma produtora, Arte Produções) e a três jogos da tal copa, um número menor, mas ainda impressionante de 45 mil pessoas iria novamente ao mesmo local para ver o maior artista nascido em terras brasileiras, o “Rei” Roberto Carlos. Ao contrário daquele caótico 9 de maio, a chegada à Arena Castelão ocorreu de forma bem mais tranquila. Havia pontos de gargalo, dificuldade causada pelas obras ainda a terminar, mas chegar ao Castelão está cada vez mais fácil e todos os contratempos se apresentam de forma aceitável, dada a magnitude do evento. Até mesmo estacionar foi bem mais tranquilo, sem preocupações com bolsões de estacionamento ou necessidade de compra antecipada de tickets. E, embora tenha perdido para o ex-beatle, o Rei atraiu um público maior que o pianista inglês e a diva americana, o que faz pensar já que enquanto os shows de Elton e Beyoncé tenham sido, talvez, uma oportunidade única na vida de cada fã, Roberto Carlos volta e meia bate ponto em Fortaleza.
“Pra quem não me conhece, eu sou o Tom Cavalcante. Pra gente conversar melhor eu vou perguntar o nome de cada um de vocês”, brincou o humorista cearense ao fazer as honras da casa, numa curta apresentação em que convidou a plateia a cantar parabéns para Roberto Carlos (que faria, 14 dias depois, 72 anos) após a primeira canção. Uma fina chuva parecia querer atrapalhar o espetáculo, mas quando o Rei subiu ao palco, estrelas mudaram de lugar, chegaram mais perto só pra ver e afastaram para longe as nuvens.
Roberto Carlos começa o show dizendo: “Quando eu estou aqui, eu vivo este momento lindo” na canção “Emoções”. Desnecessário dizer que quase todos os presentes poderiam parafraseá-lo naquele instante. O “Parabéns Pra Você” cantado pela plateia ao final da canção, entretanto, não alcançou o efeito desejado. O astro, conhecido por suas superstições, agradeceu, mas fez questão de lembrar que ainda faltavam alguns dias para o seu aniversário e que viveria cada momento da idade que tinha até a chegada da nova idade. Sempre educado, ainda fez questão de comentar o quanto estava feliz por estar de volta a Fortaleza e parabenizar os cearenses pela reformada arena.
Muitas histórias foram contadas com a ajuda das canções do Rei. Senhoras, hoje viúvas, lembram quando começaram a namorar e viver uma vida inteira com seus maridos já falecidos. Vovôs e vovós, namorados como adolescentes, recordam quando eram mesmo adolescentes. Há também a história de uma criança que ficava falando com o rádio: “Canta Ádio, canta ‘eu te amo’”. Essa criança hoje tem já os seus quarenta e alguns anos e duas filhas adolescentes. Eu próprio, há mais de trinta anos, achava que o rádio era uma salinha onde homenzinhos minúsculos se sentavam para cantar e tocar. O mundo mudou, mudamos as pessoas, muitas pessoas queridas nos deixaram, outras nasceram para ser queridas, mas o encanto de canções como “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo”, do distante ano de 1968, continua. E músicas como “Cama e Mesa” continuam arrebatando fãs, mesmo os nascidos de 2010 pra cá.
Ainda falando de histórias de criança, agora é o próprio Roberto que conta as suas. Ele fala de um livro que tinha lido quando criança em Cachoeiro do Itapemirim, onde nasceu. Era a história bem pouco infantil de um cachorro chamado Axaxá que, ao perder seu grande amor para um cachorrão engravatado que chegara à cidade, tinha se entregado à bebida e ao cigarro. Roberto diz não se lembrar do final da história, mas se afeiçoou tanto àquele vira-lata que, quando adulto, deu esse nome ao seu cachorro. E foi esse cachorro que lhe sorriu latindo. Era o mote para a belíssima “O Portão”. Quantas lágrimas foram derramadas em frente a tantos portões Brasil afora? Só o Mar de Iracema poderia contê-las.
E antes de muitas canções o Rei conta suas histórias. Fala que “Proposta” é sua canção sobre sexo (e fica devendo “Cavalgada”, uma pena). Mudando o tom, fala sobre certa costureira chamada Laura Braga, falecida em 2010. Conta que escreveu a canção e a cantava com alegria e amor. “Agora, a alegria de cantá-la é nenhuma. Mas o amor é muito mais forte”.
“Além do Horizonte”, um dos melhores frutos da parceria Roberto/Erasmo, foi um dos muitos belos momentos. Impossível não cantar junto o “la la la ra la”. E você pode assistir a mil vezes “Detalhes” (o momento banquinho e violão do show, o único em que o astro toca um instrumento), e sempre será uma experiência única. Não é fortuito afirmar que, mesmo com seu “português ruim”, Roberto Carlos compôs uma das mais belas canções já escritas no bom português de Camões (Top 10 fácil).
O desfile de clássicos continua (talvez não na ordem que a memória permite recordar) num show que também teve a balada “Outra Vez” e o roquinho “Ilegal, Imoral ou Engorda” numa versão “diet”, bem mais comportada e sem brilho que a original. Um anacronismo, uma vez que a música foi lançada em 1974 em pleno domínio dos militares. Outros pontos musicalmente fracos (principalmente quando justapostos à prolífica e fantástica obra do astro dos anos 70 e 80) foram as populares “Nossa Senhora” (religiosidade a parte), “Mulher Pequena” e “Esse Cara Sou Eu”, que agradaram a maior parte do público, que as cantou em uníssono. Em “Nossa Senhora”, o templo do futebol transforma-se em uma gigantesca igreja a céu aberto. As duas canções religiosas do show, “Nossa Senhora” e “Jesus Cristo” são dois contrastes. “Nossa Senhora” é pobre musicalmente, enquanto “Jesus Cristo” é riquíssima. É possível constatar isso atendo-se apenas às composições, seja você católico, evangélico, judeu ou ateu.
O show é uma superprodução. Canhões de luz de diferentes cores inundavam de cor o palco e boa parte do estádio, um espetáculo particular a cada música. Nos momentos mais intimistas, se sobressaia a bela cortina de luzes ao fundo do palco (algo aparentemente simples, mas de efeito arrasador). Três telões e o telão do estádio ajudavam a trazer o Roberto Carlos para quem estava mais distante, nas arquibancadas. A imagem exibida nos telões, no entanto, foi um ponto falho nesta noite. O show é de Roberto Carlos e, embora competentíssima e composta por músicos escolhidos a dedo, não foi a RC9 (a banda do Rei, com muito mais que 9 integrantes) que atraiu aquelas dezenas de milhares de pessoas. Assim, o foco, os holofotes e a atenção do público, como não poderia deixar de ser, estão sempre em Roberto Carlos. No entanto, mesmo quando os holofotes são direcionados para um saxofonista que está solando, ou Eduardo Lages se destacando em seu piano, com o próprio Rei aplaudindo e pedindo aplausos, a câmera nem se mexe. Como atender ao pedido de Roberto Carlos, como aplaudir aquele seu amigo músico, se a única coisa que o pessoal da arquibancada podia ver era o próprio Rei? É, bicho, não vai dar pra atender ao seu pedido. Em boa parte do show não dava nem pra saber onde estava o kit de bateria, se à esquerda ou direita do palco. Apenas quando Roberto apresenta, de um a um os componentes e até se demora ao contar a história de alguns deles (como a do percussionista, mais uma prova de que aquela câmera estática não era bem sua intenção), o rosto daquelas pessoas aparece.
É no final do show, com a estonteante “Jesus Cristo, que esses músicos têm a oportunidade de mostrar que conseguem atrair admiradores mesmo sem sua figura principal. Com o calibre de uma E Street Band ou uma Vitória Régia, os quase vinte músicos prolongam a música por 10 ou 15 minutos numa excelente jam instrumental que serve de fundo para a tradicional entrega de rosas do Rei. Quem tinha alguma chance de receber uma rosa corre para perto do palco, outros (muitos) aproveitam para ir embora – enquanto os apaixonados pela música esperam que as rosas não acabem, e que os músicos continuem tocando e tocando e tocando.
Se a chegada ao show foi aceitável, o retorno para casa foi complicado. Com um número insuficiente de saídas, reforçado pela falta de educação e cooperação de alguns motoristas fortalezenses, a linda “Jesus Cristo” dá lugar a uma sinfonia torpe das buzinas insistentes e ineficazes. A situação era ainda pior no estacionamento externo: sem marcações, com uma grande extensão e sem pontos de referência, pessoas procuram seus carros por intermináveis minutos (entre muitos outros, “este cara sou eu”). Caro Secretário da Copa, uma sinalização horizontal poderia minimizar o problema.
Há três momentos bem diferentes na carreira do Rei: do artista que chegou a flertar com a bossa nova, mas ficou conhecido pelo rock and roll juvenil e inocente da Jovem Guarda, passando pela fase áurea do soul romântico e seus arranjos grandiloquentes até o ocaso musical (mas não de popularidade) posterior – e que se estende até dias atuais. Todos esses momentos foram muito bem representados em quase duas horas de show que emocionaram tanto aqueles que jamais tinham tido oportunidade de vê-lo ao vivo quanto veteranos de shows do Rei. Pessoas de todas as idades (de crianças acompanhadas de seus pais a senhorinhas de cabelos prateados acompanhadas de seus filhos), de todas as classes sociais, de vários credos. Alheios às polêmicas recentes em que Roberto Carlos esteve envolvido (a questão das biografias, o comercial para um frigorífico), todos cantaram juntos canções que marcaram e ainda marcarão vidas de mutos por décadas que estão por vir. Como é grande o amor do público brasileiro por Roberto Carlos. E cada um de seus súditos tem que vê-lo ao menos uma vez na vida.
Leia também:
– Agosto de 2000: “Está na hora do rei assumir o trono de novo”, por Fábio Sooner (aqui)
– Dezembro de 2006: “São Tantas Emoções”, por Marcelo Costa (aqui)
– Setembro de 2011: “Quase Nada se Modificou”, por Carlos Eduardo Lima (aqui)
Legal ver um texto sobre um show do RC aqui. Nem sou fã do homem, mas sem dúvida é um ícone pop do Brasil (pro bem e pro mal) que merece ser comentado. E fiquei surpreso e feliz, por não ler chiliques desesperados por aqui.
Rapaz, se é friboi, é bom…