por Bruno Capelas
Verdadeiro tesouro nacional – ao lado da feijoada, das fitinhas do Senhor do Bonfim e dos socos no ar de Pelé – as marchinhas de carnaval há muitas décadas embalam bailes nostálgicos das folias de momo pelo País, em não poucas ocasiões sendo executadas em versões um bocado desgastadas pelo tempo (ou será que alguém ainda aguenta ouvir “Chiquita Bacana” com o mesmo arranjo de 1949, na gravação de Emilinha Borba?) e frequentemente ignoradas pela ampla maioria do público jovem.
Com um olho no peixe (no público que consome música de maneira fiel a seus artistas preferidos) e outro no gato (a dupla oportunidade de mercado no calendário brasileiro, pelo carnaval e pela pouca agitação em lançamentos no início de temporada), a Som Livre comandou a gravação de um especial com releituras de alguns dos maiores sucessos dos carnavais de antigamente em roupagem funk, convidando nomes de sucesso do ritmo de hoje (Anitta, Naldo Benny, MC Marcelly) e de ontem (Buchecha, MC Leozinho, MC Marcinho) para adaptar as canções ao seu universo, num disco produzido a toque de caixa convenientemente chamado de “Pancadão das Marchinhas”.
Vale destacar que, apesar do nome, de pancadão o disco tem muito pouca coisa, sendo muito mais próximo do funk melody noventista que fazia a festa nas tardes do “Xuxa Hits” – o programa da rainha dos baixinhos que, com o apoio do DJ Marlboro, trouxe o funk do morro para a casa da família classe media brasileira, emplacando aparições televisivas de gente como Vinicius e Andinho (“Corpo Nu”), Márcio e Goró (“Madagascar”) e até os notórios Claudinho e Buchecha. Não à toa, talvez a melhor presença neste especial seja a do próprio Buchecha, que encaixa “Aurora” (de Mário Lago) em um ritmo hábil, com vocalização convincente e batidas empolgantes. Ainda na turma dos veteranos, outro acerto é o do glamouroso MC Marcinho com “Saca-Rolha”, embora o mesmo derrape ao vocalizar demais em “A Jardineira”, um erro também cometido por MC Leozinho em “Ô Abre Alas” e por uma meia dúzia de artistas nesse disco.
Da nova geração, os momentos mais interessantes ficam por conta da dupla MC Marcelly, que recria “Se A Canoa Não Virar” com ecos do seu grande hit “Bigode Grosso” (em tempo: Marcelly merecia uma marchinha mais bacana por seu potencial) e MC Tarapi (de “Novinha Safadinha”), que ataca “Ta-Hi” com um misto de esculacho e sentimento sem escorregar nem um pouco. Enquanto isso, Naldo Benny estraga dois clássicos (“Me Dá um Dinheiro Aí” e “O Teu Cabelo Não Nega”) exagerando nas inflexões vocais; o Ne-Yo brasileiro nem merecia estar presente aqui, para falar a verdade. Já a poderosa Anitta mostra que de funk seu trabalho tem muito pouco já faz algum tempo, fazendo uma versão Barbie Girl da Zona Norte para “Chiquita Bacana”, mais próxima do Discovery Kids que do glorioso quadradinho.
A resposta, talvez, tanto para Leozinho quanto para Anitta e Benny, pode parecer trivial e academicista, mas é bastante compreensível: ao exagerar na ênfase de algumas vogais nas canções, os três dão à mensagem um tom sentimental que não cabe em uma música festiva; Buchecha, por outro lado, acerta ao usar a mesma métrica das versões originais para manter o balanço dos pés no chão e das mãos para o alto, com perfeito uso da tensividade, como explica o musicólogo Luiz Tatit (do Grupo Rumo, outro exemplo de artista que soube recriar o universo do samba pré-anos 50) em um artigo dos anos 80 chamado “Canção, Estúdio e Tensividade”.
Entretanto, seria impossível falar de “Pancadão das Marchinhas” sem mencionar um dos momentos hilários e verdadeiramente bisonhos da coletânea: enquanto o pseudo-cantor David Brazil demole “A Cabeleira do Zezé” e a pouco conhecida “Vizinha”, Mr. Catra põe sua voz rasgada e grave a serviço de detonar “Índio Quer Apito”, e transformar “A Pipa do Vovô” em uma piada quase involuntária. O ponto alto da seleção, entretanto, fica nas mãos de Valeska Popozuda, que manda beijinhos no ombro e adapta para seu universo as dúbias “Mamãe Eu Quero” e “Maria Sapatão”, com ecos de outras canções da turma da Gaiola, em um resultado sensacional.
No saldo geral, “Pancadão das Marchinhas” acaba tendo resultado parecido com a maioria dos tributos que se veem por aí em outros estilos e propostas, com uma boa parcela de versões não mais que esquecíveis, uma ou outra releitura que pode até animar um carnaval, e dificilmente algum momento que possa ser lembrado nos próximos anos. A bem da verdade, por sua natureza comercial, “Pancadão” parece mesmo uma produção como a fantasia do pobre (de rei, de pirata ou jardineira), cheia de ilusão e se acabando na quarta-feira.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e assina o blog Pergunte ao Pop.
curti as versões do Catra, mas a exata mesma base em todas as músicas me pareceram preguiçosas pra cacete.
É sério que eu estou lendo isso no Scream & Yell???
É, Marcus. Mas ninguém está obrigando você a ler.
Uma sugestão: Ao invés de uma matéria sobre FÂNQUI, que tal uma matéria sobre o FUNK ?
É uma pena, Mac… Lamentável a sua resposta, principalmente. Lamentável que um site pelo qual eu eu tinha grande apreço – E ressalto, digo no passado porque depois da sua resposta, não tenho mais -, um site que preza(va) pela divulgação de arte de verdade, coisas de qualidade, que era uma referência pra mim… Traga uma matéria sobre essa anomalia chamada funk.
“Mas ninguém está obrigando você a ler”. Típico argumento de quem não aceita críticas, o que é o pior de tudo. Uma pena, fico triste. Esperava mais de você, Mac.
Desculpa te decepcionar, Marcus, mas acredito, sobretudo, no bom senso das pessoas: cada um faz o que quer, cada um lê o que quer, cada um publica o que quer.
O que você acredita ser um argumento fraco, pra mim é a base da sociedade. Ninguém é obrigado a nada, e isso é sincero. Não é questão de não ter argumento: há mais de 5 mil textos neste site e um número incontável na internet, e eu mesmo só leio aquilo que quero.
Não vou entrar em um site, qualquer site, e clicar em algo que eu não queira ler. É tão simples. Mas a simplicidade é algo que as pessoas não aceitam. Elas preferem se apegar a dogmas, gostos, opiniões e cegarem. Acontece nas melhores famílias. Neste ponto, você não é o primeiro leitor que me decepciona. Mas, apesar disso, a vida segue. Felizmente.
Marcus, Esses blogs, como os jornais e revistas, não servem pra mais nada hoje em dia… são da mesma onda retrógrada dos impressos, usando a informação apenas pra dar e defender suas opiniões duvidosamente absolutas… só de falar que algo é “mais que esquecível” eles já mostram o nível de análise deles… “o ninguém é obrigado a ler” é a única postura que resta, porque daqui a pouco ler esses blogs vai ser que nem assistir o SBT, no sentido mais cruel da analogia; engole e choro e vai buscar algo mais inteligente pra te servir de referência!
concordo com o jonas engole o choro e vai pra outo lugar. Adoro o screamyell!
Jonas e Marcus, não é a primeira vez que dizemos isso aqui no Scream & Yell, mas vamos lá: a mim como escritor (e acredito que ao Marcelo, como editor, também) interessa utilizar a cultura para entender o que acontece na sociedade contemporânea, e não ficar falando só do que a gente gosta. (Pra isso, a gente vai pro bar)
O funk é hoje um dos gêneros mais populares no país (e entendê-lo provavelmente revele mais sobre o Brasil anos 2010 do que ouvir boa parte da lista de Melhores do Ano do S&Y), e se a Som Livre resolve fazer uma coletânea desse porte, ela tem alguma razão de ser mercadologicamente falando – ainda que seu resultado artístico seja esquecível, como é boa parte dos sambas-enredos e a vasta maioria das marchinhas que foram “campeãs do ano” entre as décadas de 30 e 60.
(Vale lembrar que jazz e rock também já foram chamados de anomalia. Estou esperando também a anomalia dos anos 2020 com o maior prazer).
Esse é o meu primeiro comentário, mas venho acompanhando as discussões que acontecem aqui faz um bom tempo (descobri o site em 2010 por ocasião da carta do João Parayba e gostei) e respeito a posição do Marcelo Costa, mesmo acreditando que ele devesse usar palavras mais amenas (para o bem do site e da discussão). Ele e seus colaboradores tem todo o direito de publicarem o que eles quiserem, e essa liberdade precisa ser respeitada. Será que não aprendemos nada com a ditadura? Será que não aprendemos nada com os movimentos sociais que buscam a igualdade, ou vivemos ainda em um mundo falso em que é importante se posicionar a favor de gays e negros publicamente, e fazer o contrário entre amigos? A discussão é correlata e é importante prestar atenção como grandes questões podem estar atreladas em assuntos diversos. Parabéns Marcelo e equipe do Scream & Yell. Cada vez mais admiro o site, e sei que não sou apenas eu, mas quis mostrar que há pessoas aqui que não se sentem agredidas com textos como esse. Surpresas sim, mas não agredidas.
Joana, obrigado pelo comentário, pela confiança e pelo puxão de orelha. Muito do que você falou bate com coisas que eu sonho para o site, e acho que já escrevi sobre isso em outras discussões semelhantes a essa: gostaria que a discussão não fosse sobre o que nós devemos ou não publicar, mas sim sobre o tema publicado: “Não gostei do disco por isso, assado e aquilo”. Gostaria que outras coisas que fazemos gerassem comentários também, mas, às vezes, acho que as pessoas não leem realmente uma entrevista com, por exemplo, Dean Wareham (que está ótima), mas vem em textos como esse destilar seus pre-conceitos. Fico com a impressão que fazemos algumas coisas legais (não todas) que passam despercebidas enquanto a pessoa vê um texto como esse e quer julgar o site inteiro por ele. Porém, o site não é só isso. É também isso. E continuará sendo (com o intuito que abraçamos, desde sempre, signos de cultura que nos interesse). Abraço e, novamente, obrigado
Não acho que culpa seja do Mac, já que ele se coloca como observador enquanto seus “colaboradores” fazem o trabalho operário de dar a opinão que gera o debate! Todos os sites que reivindicam importância fazem isso… Marcus Preto é um dos poucos que assume a postura pessoalmente e orienta, segundo suas predileções, sim, também, a discussão; Ao produzir o disco do Tom Zé após ele ter sido tão criticado na internet, há uma opinião e análise objetiva sobre a crítica na internet, que é o verdadeiro objeto de pensamento, e não os arranjos ou bases das canções, que sempre foram panos de fundo para pensamentos (no caso do tom Zé)… os pensamentos é que são refutados ou não hoje em dia, não a estética… A questão é que embora a imagem do MAC esteja passando imune meio aos bate-bocas, a função que o site ocupa hoje na música brasileira é retrógrada e isso é um fato, não um argumento, é só vermos os novos ditames da música brasileira e ver que até a Pitchfork tem menos força que o New Album Releases, por exemplo… e ela é um branding estável… ninguém questiona o conhecimento e profundidade de análise do MAC, o que vem cada vez mais se mostrando frágil é a estrutura opinativa dos blogs que ainda não entendeu a perenidade dos tempos atuais frente a consolidação da internet… os papos ainda giram em torno de análises estéticas que, me desculpe a sinceridade, soam tão rasas quanto as discussões do Facebook sobre a copa, e os tempos são outros; mesmo com uma noção tão fluida de tempo como tempos hoje em dia em que qualquer mané consegue traçar um panorama da história da música brasileira apenas com o google, é preguiçoso analisar o tempo atual como desenrolar do passado rumo ao futuro, porque a própria estrutura da análise é que vai se tornar objeto de análise; o bairrismo estético, que esses blogs representam, acabou; Só minha opinião, não quis ofender ninguém pessoalmente, boa sorte aí, MAC!
Eu errei. Exagerei com as minhas palavras, e por isso peço desculpas. Disse aquilo porque esse site, como já disse, sempre foi referência para fugir do óbvio, dos globo.com e UOL da vida. De fato, eu poderia ter simplesmente ignorado a matéria. Quem sou eu pra falar de música? Quem sou eu pra falar sobre qualquer coisa… Retiro o que disse, enfim.
Matou Pau, Jonas.
Jonas, obrigado pelo aprofundamento do pensamento.
Eu mesmo não tenho definido para mim qual a real função do site – ele foi criado apenas para ser uma válvula de escape de ideias – e apesar de respeitar o trabalho do Marcus Preto, não sei se esse é o caminho jornalístico a ser tomado, ou, ao menos, que eu tomaria. Talvez de apoio ao cenário, sim, mas não jornalístico – ainda que a função traga um viés de conhecimento interessante.
Com o tempo, acredito eu, uma das funções primordiais do site passou a ser mapear a cena e dar espaço para as pessoas falarem, exporem ideias. O papel de selecionar, sabe. Porque, sim, qualquer um consegue traçar um panorama da história da música brasileira apenas com o google, mas as pessoas têm cada vez 1) menos tempo 2) menos apreço pela busca. Isso faz com que elas necessitem de alguém para selecionar o que, em meio a tanta informação, seja relevante. É uma curadoria, como, aliás, na história do jornalismo sempre foi. Uma revista em 1972 escolher falar deste artista ao invés daquele era uma opção de curadoria também.
Talvez seja pouco, mas é o que está ao nosso alcance. O desejo é bem maior, o tempo é escasso e tanto um quanto outro soam como desculpa, mas são a realidade. Ainda assim, gostei bastante da sua linha de raciocínio. É bom ser cobrado nesse nível.
Abraço
Falando do cd (sim!)
Ouvi em uma festa sexta passada, e conforme alguém comentou acima, depois de algumas faixas torna-se cansativo (como quase tudo depois dos 21 anos), mas ainda menos cansativo que ouvir as marchinhas em suas versões originais.
O que me chama atenção é a Som Livre encomendar essa coletânea, o que é mais uma evidência, se é que precisamos de alguma, da imensa massa de jovens consumidores de funk. São um número imenso que acompanha, venera e consome esse gênero. Se alguns artistas são mais talentosos e inovadores do que outros, ou alguns nem merecem estar na coletânea, é normal. Todo gênero traz engonhosidade e picaretagem, estão aí biquinis cavadões e jota quests que não me deixam mentir.
Provavelmente esse cd será esquecido, não mais do que os samba-enredos das escolas, porém seus artistas continuarão criando, tocando e sendo admirados por milhões de jovens, pois fora dessas coletâneas podadas, podem dizer o que quiserem, e isso eu respeito muito. A demografia sempre vence, e pra quem prefere ficar rosnando de cima do altar do bom gosto, Valeska aconselha “late mais alto que daqui eu não te escuto”.
Acho que o o Jonas quis dizer com a perenidade da música hoje em dia tem a ver com a própria matéria, já que essas músicas estão, com a própria matéria mostra, em vídeos no Youtube, em cantos da internet e lá ficarão eternamente sendo ouvidas ocasionalmente ao longo dos anos e isso por si só não deixará mais que nenhuma música seja “mais que esquecível”. A Chiquita bacana da Anitta e a chiquita bacana Original, ambas podem, e vão, ser revistadas por quem esbarrar por elas a julgo da internet, dos vídeos relacionados, das festinhas dos amigos… acho que por mais que o pensamento exposto num texto seja errôneo, o simples levantar a questão é necessário, não? afinal, talvez nem ficássemos sabendo da coletânea se não fosse a matéria ou, pelo menos, não lançaríamos um olhar inteligente sobre ela como fizemos todos por conta dessa discussão. Por isso acho que entre erros e acertos, o scream & Yell continua sendo um dos mais importantes no jornalismos musical do país… O Marcus já pediu desculpa, ninguém precisa mais discutir….
Matheus, a discussão sobre perenidade da música hoje em dia é interessantíssima, e eu mesmo não tenho uma opinião definida, apenas rascunhos de ideias. Costumo dizer àqueles que, ao elogiar o passado em confrontamento com o presente relembram que dificuldade de se conseguir um disco fazia com que esse disco fosse especial, e hoje está tudo a um toque do mouse, talvez não fosse a música um objeto especial, mas a relação com a dificuldade de encontra-la a tornava especial. Ou seja, no cenário atual – com a internet definitivamente incrustada em nossas vidas – mesmo os grandes discos sofrem com a velocidade de proliferação de outros discos, e isso parece diminuir a qualidade da musica. Então, embora a música continue sendo boa (dependendo do caso, claro), o ouvinte tem uma ilusão que ela não é perene. É o papel exercido pelo grande New Album Releases, que o Jonas cita. Porém, acho eu, a música não sobrevive apenas enquanto música. A pessoa não baixa o álbum, ouve e pula para outro. Se ela gosta do disco, ela quer saber mais sobre ele, sobre o artista. E nesse ponto, os veículos de cultura entram em cena (e, do mesmo jeito, os objetos físicos à venda possuem valor: as pessoas continuam comprando CDs, vinis e camisetas porque o ter as define). É um papo bem bom!
Gostei bastante ficou legal… 🙂