por Leonardo Vinhas
Imagine que Clovis Bornay recebesse uma vultosa soma em dinheiro para criar a alegoria “Delírios de Um Imperador Intergalático”. A afetação macho-gay resultante seria o trecho de abertura de “O Homem de Aço”. Mas calma que é só o começo: os minutos seguintes farão você ter saudades do tempo em que “Independence Day” era sinônimo do que poderia existir de pior em um blockbuster.
Há muitos a serem culpados pelo equivocadíssimo filme: o diretor Zack Snyder, o roteirista David S. Goyer, o produtor Christopher Nolan e até mesmo o público, que comparece em massa para assistir filmes que não sejam nada além de uma sucessão de imagens pirotécnicas entrecortadas por diálogos pífios que forneçam um arremedo de história. Mas vamos por partes.
Snyder é um enigma: seria um hábil enganador ou um medíocre que deu sorte? Seus filmes sempre se pautaram pelo exagero visual, pelos personagens rasos, por discursos pontuados de clichês onde frases de efeito tentam mascarar a ausência de qualquer ideia que resista à meia pergunta. Você não precisa acreditar em mim: basta assistir “300” ou “Sucker Punch” para conferir. O fracasso deste último parece tê-lo deixado com medo de imprimir sua “marca” neste “O Homem de Aço”. Assim, nada cenas de ação que começam em câmera lenta para depois acelerarem em velocidade de videogame, tampouco tratamento de imagem estilizado e hipersaturado. A questão é que, se você tira isso (que, bem ou mal, tinha seus fãs) do cinema de Snyder, sobra sua absoluta incapacidade de dirigir atores ou criar personagens críveis.
Goyer, por sua vez, tem passagens por várias mídias: TV, cinema (como diretor, produtor e roteirista), games, histórias em quadrinhos. Em nenhuma delas ficou conhecido por extrair o máximo de seus personagens, subverter clichês ou mesmo contar uma boa história. Ele produziu os dois “Motoqueiro Fantasma”, dirigiu o terceiro “Blade” e o piloto fracassado de “Nick Fury: Agente da Shield”. Como em qualquer emprego, o currículo entrega tudo o que você precisa saber sobre o profissional.
O problema é que Goyer e Nolan fizeram a trilogia “Batman”, o que rendeu a ambos prestígio, dinheiro e conceito. Só que se Nolan já havia nos deixado com a pulga atrás da orelha com “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” e seus muitos buracos na trama, agora ele coloca um circo todo desses insetos para habitar nossa nuca. Inicialmente cotado para dirigir este “O Homem de Aço”, ele assumiu a produção e disse que ia trazer seu tom “realista” para o filme. Dá para ver que aqueles tons escuros que ele tanto prezou em seus três “Batman” ou no ótimo “O Grande Truque” foram bem estudados por Snyder. Tentativa, talvez, de emular o tal “realismo”?
Pode ser. Mas como fazer algo realista quando seu personagem é um alienígena capaz de fazer o que quiser, uma fantasia adolescente que saiu da imaginação de dois garotos judeus amargos e espezinhados pela vida? Talvez até houvesse leituras interessantes possíveis. O Superman – você já deve ter lido bastante sobre isso – é um personagem ingrato, mesmo para autores talentosos. Um escoteirão invencível, infalível e de moral inabalável. E virgem. Sério, não dá para fazer muita coisa boa com isso. Mesmo na mídia onde o personagem nasceu – as HQs – você tem um John Byrne aqui, um Grant Morrison ali e não muito mais que esses dois na lista de roteiristas que fizeram boas histórias com o Azulão. Aliás, você notou que este texto está no sexto parágrafo e até agora não se falou da trama do filme, tampouco da construção dos personagens? É porque ambas as coisas inexistem.
O caso dos personagens coadjuvantes (ou seja, qualquer um que não seja o Superman) é tristemente oco. Michael Shannon tenta, por uns 30 segundos (não é exagero, é mais ou menos esse tempo mesmo), dar alguma credulidade ao vilão Zod. E só. O plano do general kryptoniano não se sustenta. A sanha assassina dele, menos ainda. Diane Lane não sabe o que fazer com os diálogos nonsense que lhe deram no papel de Martha Kent. Para Kevin Costner, coube o papel mais constrangedor de sua vida: como Jonathan Kent, o pai adotivo de Kal-El na Terra, ele se limita a recitar discursos incoerentes sobre sacrifício, intolerância e predestinação. Ah, por falar nisso…
(Spoiler no parágrafo seguinte, esteja avisado)
As pretensões messiânicas conferidas ao Superman carecem de qualquer sutileza. Há cada dez minutos vem algum “lembrete” para você entender que ele é análogo a Jesus Cristo: a missão pública aos 33 anos, Clark Kent caindo em posição de crucificação para depois “voltar à vida”, o fato de haver um propósito salvador em sua mera existência. E a moral supostamente inabalável que deve ser quebrada em nome de um bem maior, porque ele – Superman – tem o poder sobre a vida e a morte. Tem crítico gastando horas discutindo se ele seria o Messias cristão (“que já veio”) ou o judeu (“que está por vir”). Não vamos entrar nessa discussão aqui, mas me parece que o fato de termos um cientista judeu fazendo um sacrifício pelo mundo já entrega de que lado o Superman está.
De resto, tome cidades sendo destruídas (e nunca é mostrado o quanto isso custa em vidas humanas, claro), o Superman causando a morte de um monte de inocentes ao travar batalhas em zonas urbanas, buracos e mais buracos na trama (e na mais elementar lógica), “trocentas” falhas de continuidade, personagens verdadeiramente inúteis (o Perry White de Laurence Fishburne só está no filme porque sim), Easter eggs gratuitos para fanboys, e a certeza hollywoodiana que, não importa quão grave a tragédia, cachorros não podem morrer e a vida deles vale qualquer sacrifício.
Não se salva nada do filme, então? Bem, Henry Cavill é lindo e Amy Adams (a Lois Lane da vez) é uma gracinha. Mas um Google Images já serve para meninas e eventuais rapazes matarem a vontade de ver Cavill sem camisa, e Amy está bem mais agradável no último longa dos Muppets – filme que tem o bônus de ter uma trilha sonora bem melhor, uma mensagem “edificante” de verdade e que, pelo menos, faz sorrir. De resto, “O Homem de Aço” faz qualquer um ter saudades de “Lanterna Verde”. E quando você pensa que algo chamado “Lanterna Verde” pode ser melhor…
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por Marcio Guariba
Desde que foi anunciado, o projeto de reinicialização do Superman nos cinemas (e no novo século) causou frisson. E o maior motivo de toda a ansiedade era o dedo de Christopher Nolan, diretor responsável pelo sucesso da trilogia Batman tanto entre os nerds quanto no mundo normal, que fechou com o irregular “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, em 2012. Nolan, que além dos filmes sobre o Homem-Morcego fez os cultuados “Amnésia” (2000), “O Grande Truque” (2006) e, principalmente, “A Origem” (2010), se transformou em uma espécie de midas dos filmes sobre personagens de quadrinhos. Tudo ao que o nome dele está atrelado deixa os fanboys tranquilos. Até o lema ‘In Nolan we trust’ passou a ser frase feita entre os fãs. Mesmo que agora, assumindo somente a cadeira de produtor, ao lado de sua esposa Emma Thomas e de Charles Roven, também envolvidos na cine-série do Batman.
Junto dele veio David Goyer, roteirista da franquia do Batman e diretor ocasional (é dele o péssimo “Blade Trinity”, 2004), e Zakk Snyder, diretor que alternou um sucesso surpreendente (“300”, de 2006) com dois fiascos de bilheteria (o incompreendido “Watchmen”, de 2009, e o chatíssimo “Sucker Punch”, de 2011), e via seu status de “visionário” (como sempre gostam de colocar em seus trailers) se dissipar nos estúdios Warner. Era hora de entrar no esquema de Hollywood com o pé na porta.
Tudo foi milimetricamente concebido para funcionar exatamente como em “Batman Begins” (2005), o primeiro filme da trilogia do morcego. Tudo que já foi lançado nos cinemas sobre o Superman seria desconsiderado (graças a Jor-El!) e o filme contaria de forma inédita a sua origem – até em relação aos quadrinhos. Com direito a inúmeras intervenções criativas da mitologia do herói.
Nolan e Goyer trabalham sempre a questão da ‘grande pergunta’ em seus roteiros. Para tornarem seus conceitos críveis, suas idéias giram em torno de tentar encontrar o cerne da personagem buscando a razão para torná-lo aceitável aos nosso olhos, como se realmente estes heróis pudessem existir entre nós. Se com Bruce Wayne, a questão sobre fazer diferença no mundo e ser totalmente consumido por esse anseio, funcionou, com Superman tudo é mais complicado. Como tornar esse semideus aceitável? Como conectá-lo com essa nova audiência e ainda manter suas referências bíblicas?
O mote de “O Homem de Aço” (“Man Of Steel”, 2013) e sua pergunta central é: Como o mundo reagiria se um ser como ele realmente existisse? E, a partir dai, discutir todas as divagações que uma resposta positiva pudessem suscitar.
Partindo dessa ideia, o roteiro do filme disseca todo o cânone criado em setenta e cinco anos de histórias em quadrinhos: no início com o nascimento de Kal-El vemos seu pai (Russell Crowe, ótimo) enfrentando um golpe militar, a posterior salvação da criança e a destruição do planeta Krypton. Na sequencia, a vida interiorana sob a tutela dos Kent (Diane Lane e Kevin Costner, as melhores coisas do filme), Lois Lane (Amy Addams, velha demais para o papel), Metrópolis, momentos Smallville para agradar aos fãs da série, e tudo o mais que muitas pessoas tem no seu inconsciente sobre Superman. Só que, como é de praxe com Nolan, tudo reconfigurado e esmiuçado, recontado de uma maneira que pode deixar muitos puristas furiosos.
A grande questão que importa, no entanto, é: esse trabalho detalhista de Christopher Nola vale a pena? Sim. E muito! “O Homem de Aço” é belíssimo. Tocante mesmo. Uma trilha sonora absurdamente feliz, cortesia Hanz Zimmer, que faz esquecer do clássico tema de John Willians para os filmes originais – do mesmo jeito que Nolan fez com que todos se esquecessem do tema de Batman para a sua série cômica nos anos 60. Aliás, é exatamente essa a sensação que “O Homem de Aço” deixa: a de que os outros filmes da franquia pareçam uma série cômica pastelão.
Para conseguir seu intento, o roteiro trata o personagem com muita seriedade. Até demais, diriam alguns. Sua origem é totalmente reestruturada, a ponto do Superman (ou simplesmente Kal El) aparecer antes de Clark Kent. Na verdade, uma metáfora, pois se todos os heróis usam suas personas heroicas sob máscaras, no caso do Superman é o contrário, já que seu disfarce é a sua versão humana.
Outro item que pode incomodar é a relação do herói com Lois Lane, totalmente reimaginada. Basicamente, a descoberta de Clark Kent sobre suas origens é compartilhada com ela, que funciona como testemunha e link do personagem com o “mundo real”. Ela, inclusive, participa das cenas de ação mais do que se pode imaginar e, quando é salva, não é por suas idiotices, como nos acostumamos a ver tanto no cinema quanto nos quadrinhos.
Porém, o que mais tem sido alvo do chatos é a relativa violência e o descaso com que Superman trata a vida humana, colocando por diversas vezes a vida dos civis em risco, além, é claro, da sequencia final, quando acerta as contas com o vilão de forma como nunca antes ele havia feito. Besteira. Pura chatice de uma turma que só ficaria satisfeita se eles mesmos fizessem os filmes. O que importa é que tudo funciona na história, mesmo os momentos mais absurdos.
A grande razão para “O Homem de Aço” ser um filme sensacional é que ele consegue unir o mote filosófico intrinseco ao personagem com o lado hollywoodiano de ação e violência desenfreada – item indispensável nesse tipo de blockbuster, principalmente nos dias de hoje. E que, aliás, nunca havia sido realmente feito com o personagem. Sério. Ao assistir esse filme, finalmente as pessoas terão a noção do que o Superman realmente é e o que representa. As dimensões das batalhas e o escopo dos poderes é algo nunca visto antes em qualquer outro filme da franquia.
A cenas de voo e de luta são um caso a parte. Absolutamente sensacionais. Icônicas. É de se imaginar se um filme desse tipo seria possível há 30 anos atrás, e o que estaríamos falando dele hoje, já que lembramos com ar romântico as peripécias com cabo de aço que Christopher Reeve teve de fazer quando incorporava o personagem mítico.
O núcleo familiar e emotivo do filme também pode causar lágrimas. Desde as primeiras cenas, quando Jor e Lara El tem de abdicar do recém-nascido Kal para as estrelas até as lições morais passadas por Jonathan Kent e o amor fraterno de Martha Kent, “O Homem de Aço” mostra que também pode ser um filme terno e amoroso. Em sua narrativa entrecortada, as memórias vão sendo conectadas a momentos chave do filme, dando alma a cada ato do herói. Suas motivações e seu caráter são moldados ali, na frente do espectador – e é nessas horas que vemos o que grandes atores são capazes de fazer com uma boa ideia.
Todas as metáforas religiosas ligadas ao herói estão lá – como o fato de ele vir a público exatamente aos 33 anos. Os paralelos óbvios feitos com Jesus Cristo são exibidos em vários momentos do filme, mas é na história de Moisés, que foi colocado em um pequeno barco, encontrado e criado pelo povo Hebreu, tornando-se líder revolucionário e espiritual do seu povo, que mora a essência do personagem.
Há, sim, defeitos, furos de roteiro, saídas fáceis e exageros. Mas sob a ótica do espetáculo, tudo se torna mais aceitável. E o mais incrível é a influência das questões filosóficas, como o próprio título do filme, que, afinal, quer mostrar o homem, não o herói, que teve de se tornar de aço para ser alguém superior e melhor. Sacadas pequenas que não são para os tradicionais espectadores de filmes de ação, mas para os fãs do herói.
O futuro? Muito se especula. Já se fala no início da produção da sequencia para o ano que vem e a pressão para coloca-lo ao lado do panteão de heróis da DC Comics (que pertence a Warner) é grande. Superman foi o primeiro super-herói dos quadrinhos, mas já ficou para trás a muito tempo no cinema. “O Homem de Aço” o seu renascimento. E com estilo. Abrace a mudança e aceite o incrível. Isso é mitologia moderna. Vale a pena encara-la.
Leia também:
– “Superman – O Retorno”: Exagero talvez seja a palavra, por Marcelo Miranda (aqui)
– “A Origem: quase o filme perfeito do ano, por Marcelo Costa (aqui)
– “Batman Begins” faz esquecer os outros filmes da franquia, por Marcelo Costa (aqui)
– “O Grande Truque”: Nolan comanda o espetáculo com sabedoria, por Ronaldo Gazolla (aqui)
– “Batman: The Dark Knight Rises”: os fãs do herói agradecem, por Leonardo Vinhas (aqui)
– “Batmam – Cavaleiro das Trevas”, um divisor de águas, por André Azenha (aqui)
– “Watchmen, o Filme”: 20 anos depois, e a história não envelheceu, por Murilo Basso (aqui)
“Trilha sonora absurdamente feliz, cortesia Hanz Zimmer, que faz esquecer do clássico tema de John Willians para os filmes originais”. Foi sério isso? Preciso assistir de novo, acho que a cópia que eu vi só tinha um pastiche de, ahn, Hanz Zimmer.