por Leonardo Vinhas
Jesse e Celine chegaram aos 40 anos de idade. Os personagens criados por Richard Linklater e Kim Krizan, protagonistas de “Antes do Amanhecer” (1995) e “Antes do Pôr-do-Sol” (2004), aceitaram pagar o preço que teria que ser pago para ficarem juntos. Formaram uma família e, ao olhar desatento, parece estar tudo bem.
Isso não é spoiler. É informação dada já nos primeiros cinco minutos de “Antes da Meia-Noite”, nova empreitada comandada por Linklater que traz Ethan Hawke e Julie Delpy de volta aos papeis nos quais eles mostraram seu máximo talento. E se você se identificou com eles quando eles estavam na faixa dos vinte ou dos trinta, por que seria diferente agora? A vida imita a arte com vulgar frequência. Até porque Jesse e Celine não são arquétipos. Eles são eu e você.
Afinal, se você, leitor, está entre os 35 e os 45, você também é Jesse e Celine. Também faz parte da geração do desencanto, dessa grande leva de seres humanos para quem a desilusão parece ser o destino onde todos os caminhos levam. Recapitulemos seus últimos anos: você tem comida na mesa, e sabe que dificilmente ela lhe faltará. É pouco provável que você tenha vivido, literalmente, ganhando hoje para comer amanhã. Então a batalha do dia a dia nunca foi disputada em um terreno inóspito a ponto de comprometer sua sobrevivência. Isso não quer dizer, claro, que ela tenha sido uma luta fácil.
Você também já tentou alternativas para sua vida afetiva e para a profissional. Teve alguns ou muitos relacionamentos efêmeros e pelo menos um longo. Conheceu pessoas. Viajou – se para a Europa ou para o litoral de seu Estado, pouco importa. Mas você precisa do turismo como parte de seus objetivos. Já tentou mais de uma carreira, e provavelmente trabalha há mais tempo naquela que lhe foi circunstancialmente mais conveniente.
Enfim, você viveu (tem vivido) uma vida que permite questionamentos, dialética. Millôr Fernandes já escreveu que, “quem está na merda não filosofa”. Logo, se você se questiona, as coisas não estão tão irremediáveis assim. Mesmo assim, você não está feliz. Há um estado de permanente incompletitude. E o que você mais questiona é sua vida “amorosa” (as aspas serão explicadas mais a frente).
Jesse e Celine estão há muito tempo sem questionar suas vidas, amorosas ou não. Os objetivos comuns de manter uma família e duas carreiras (ele escritor, ela executiva/ativista do terceiro setor) tomam todo seu tempo. Mas há férias, e essas férias trazem pausa, contemplação, silêncio. E intimidade. Exatamente aquela intimidade que os casais de longa data costumam perder. Com isso, eles vão se redescobrir – a si próprios e um ao outro. Haverá conflito. E a partir daí, Richard Linklater faz mais um grande filme, e nós ficamos com um monte de perguntas difíceis de responder.
Porque, você sabe, no fundo queremos aquilo que idealizamos. “Idealizar” é bastante diferente de “realizar”, e não apenas etimologicamente. Porque o ideal visa um momento, ou a perpetuação dele: a conquista de um campeonato, o café da manhã em família digno de comercial de margarina, a contemplação in loco da paisagem sonhada. Mas a vida dura mais que um momento. Ela dura anos, anos que são compartilhados com outras pessoas, e que passam rápido demais. Queremos sempre achar a pessoa “certa” para esse compartilhamento, mas quem nós queremos aos 40 não é necessariamente quem queremos aos 21. Caramba, NÓS não somos os mesmos com o passar dos anos (felizmente, diga-se de passagem). Por que “o outro” haveria de ser?
Por causa do “amor”, alguém responderia. Ora, o amor, já sabemos, é recurso finito. Renovável desde que se mude o objeto, pois uma vez esgotado o amor por X, é necessário amar Y. De qualquer maneira, o amor acaba, num final que não aceitamos. E o que sobra é a realidade, que se traduz em desejo de permanência ou de distância, em manutenção da rotina, em aproximação fraternal ou distanciamento entre estranhos. O desejo sexual, esse não acaba, mas também se transforma. E não há tesão que sobreviva às comodidades do cotidiano, como as roupas íntimas velhas e folgadas, o topless sem sensualidade da mulher que interrompe um momento íntimo para atender o telefone com os peitos já quase caídos à mostra (ou o homem com uma patética capa de gordura cobrindo a cintura).
Tudo isso são efeitos da passagem do tempo. Mas essa geração quer que o tempo congele. Que os encontros sejam doces como dois jovens viajantes se encontrando num trem. Que as despedidas sejam tenras, que os olhares sejam belos e encantadores. Que todas as palavras tenham significado, e possam ser preservadas – na memória ou numa rede social. Essa geração – a nossa – deseja uma vida de instantes marcantes. Mas na maioria das vezes, a vida é só a vida, mesmo. Pesada, inconsistente, sem sentido. E fica ainda mais difícil ao lado de alguém que pensávamos conhecer e já não compreendemos como achávamos ser capazes.
É sobre isso esse terceiro filme de Richard Linklater, Julie Delpy e Ethan Hawke (é justo dizer que os três têm igual importância na criação do filme). Também é sobre ressentimentos, e sobre o quanto colocamos na conta de quem dizemos amar os esbanjamentos e mesquinharias de nosso coração. É sobre eu e você não conseguindo ficar juntos, ou conseguindo e não sendo necessariamente felizes por isso. Sobre saber que tudo chega ao fim, mas ter uma imensa dificuldade de aproveitar o presente enquanto esse fim não chega. E mais que tudo, sobre saber tudo isso, e conseguir fazer tão pouco com esse conhecimento.
por Marcelo Costa
E lá vem eles de novo. Quando “Antes do Por-do-Sol” (Before Sunset, 2004) foi anunciado, muitos ficaram com um elefante atrás da orelha: “Por que mexer em uma história tão especial correndo o risco de estragar toda sua beleza?”, foi o comentário a respeito do filme que reveria o casal Jesse e Celine após o encontro de uma noite protagonizado nove anos antes e exibido com delicadeza em “Antes do Amanhecer” (Before Sunrise, 1995). O que esperar então, após o grande acerto do segundo filme, desta terceira recriação da história do casal, já nos cinemas e com o nome de “Antes da Meia Noite” (Before Midnight, 2013)?
Como já disse outro, se o Diabo quiser (ou, no caso, Afrodite) todo Keith Richards irá encontrar seu Mick Jagger, e o diretor Richard Linklater honra o ditado num perfeito ménage cinematográfico da qual fazem parte os atores (creditados como roteiristas) Ethan Hawke e Julie Delpy. “Antes da Meia Noite”, terceira parte da saga (não é impossível esperar um quarto filme), é a mais nova peça no quebra-cabeça que visualiza com extrema perfeição essa coisa tão complicada chamada relacionamentos – já deveria ser assim na pré-história, e o mundo moderno não tratou de facilitar a relação entre pessoas, pelo contrário, complicou mais.
No caso de Jesse e Celine, “Antes da Meia Noite” flagra o casal nove anos depois daquele último momento do filme anterior, em que a francesa dança uma canção de Nina Simone avisando que o norte-americano iria perder o avião. Sim, ele perdeu o avião, e o fruto deste reencontro está no banco de trás do carro do casal, que passa férias na Grécia a convite de um editor: filhas gêmeas, Nina e Ella (belíssima homenagem a Nina Simone e Ella Fitzgerald). A pausa na rotina de trabalho do casal, que agora vive em Paris, se transforma em um momento para que Jesse e Celine analisem, inconscientemente, seu relacionamento.
Ou seja, é bom deixar claro: “Antes da Meia Noite” compila 109 minutos de projeção, e cerca de 80% desse tempo é tomado por uma longa e interminável discussão de relacionamento, a popular DR, e só quem nunca entrou numa desconhece o embrulhar de estômago que estar diante de um casal em crise pode causar. Porém, há um lado didático, amplificado pela química absurda entre Ethan Hawke e Julie Delpy, que funciona (ou, ao menos, deveria funcionar) como alerta para possíveis lenhas na fogueira que o espectador venha a querer jogar numa possível inadvertida recriação da trama em seu próprio lar (evite repetir em casa, se possível).
Há todo um mise-en-scéne em “Antes da Meia Noite” buscando apenas tornar explicito características dos personagens que já haviam vindo à tona nos dois filmes anteriores, e que aqui retornam em ebulição como se desvalorizassem aquele ditado de que não conhecemos as pessoas que amamos. Conhecemos, embora fingimos (muitas vezes inconscientemente) o contrário. As personalidades contrastantes de Jesse e Celine são colocadas em uma mesa de cirurgia e dissecadas com lupa, como para mostrar que os erros que causamos muitas vezes são causados por nós mesmos, por medo, tolice ou tiro (ou, no caso do filme, faca).
No caso de Jesse e Celine, a análise é bem mais simples e recheada de elementos que compõe uma comédia de costumes. Ele, norte-americano, exemplifica o cara sonhador, mas vazio, que tenta a todo modo manter as coisas sob controle, embora tenha o desejo de satisfazer a todos, o que pode significar uma tentativa impossível de abraçar o mundo. Em “Antes da Meia Noite”, as armadilhas surgem quando Jesse entra ligeiramente em depressão com a partida do filho, fruto do primeiro casamento, e praticamente foca seus pensamentos numa possível união da família (Celine, Nina e Ella mais o filho Hank) em território norte-americano.
Do outro lado da mesa, entra em cena o gênio altamente transtornado (e ligeiramente clichê, embora Julie Delpy tenha colocado ainda mais lenha na fogueira com seus dois filmes, “2 Dias em Paris” e “2 Dias em Nova York”) da mulher francesa, politizada e tendendo a sentimentos dúbios e hiperbolizados, que não quer ser dominada pelo marido numa relação anos 50 simbolizada pelo “ele trabalha, eu cuido da casa”, e, deste ponto, começa a trafegar uma rua perigosa chamada Dúvida: “Você ainda me ama? Você irá me amar pelo resto da vida?”. E diante de uma possível negação, a antecipação: “Eu não te amo mais”. Haja estômago.
Tudo isso, ainda que doloroso, compõe o painel romântico de muitos casais, e o trio de roteiristas apenas valida a opção de que ficar junto com alguém é o preço que se paga por viver uma história de amor, qualquer que seja. Claro, Jesse ama Celine, e vice-versa, mas ele precisa passar por esse teste? Sim, e a resposta genial é dada por seu editor italiano, em uma discussão imperdível em um almoço: “Já recebi muitos escritores aqui, e quando você chegou, vestido de jeans e camiseta, não entendi como você poderia ser uma pessoa interessante. Mas bastou conhecer Celine para entender que ela faz de você uma pessoa especial”. Bingo.
Um dos grandes filmes do ano, “Antes da Meia Noite” é menos romântico (e, por isso, menos charmoso) que “Antes do Por-do-Sol”, mas combina com esta busca por mostrar a vida – em um relacionamento – como ela é. Chega a ser tocante a preocupação da equipe em mostrar que essas caminhadas repletas de discussões do casal não são comuns e nem acontecem todo dia na vida de Jesse e Celine (“Há quanto tempo não fazemos isso?”, ele pergunta em certo momento. “Uns nove anos”, ela responde), pois é preciso amar muito (e ser muito masoquista) para viver DRs constantes. Que a próxima, daqui nove anos, seja menos intensa, mas tão brilhante e emocional quanto esta.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– “Antes do Por-do-Sol”, um filme tocante, comovente e sincero, por Marcelo Costa (aqui)
– “2 Dias em Paris” pode ser tão cômico quanto educativo, por Marcelo Costa (aqui)
Irretocáveis,suas impressões e seu texto, assim como o filme ( ou a sequência dos 3); parabéns!!
Muito boa a resenha. Bom texto aliado a conhecimento de causa. Parabéns!!!
Uma trilogia onde não há cena ou diálogo desnecessário.
Uma trilogia onde o espaço de tempo entre os filmes foi muito feliz e os filmes vieram inesperadamente (principalmente este ultimo).
Uma história de amor onde o romântico da relação é o cara 🙂
Espero um boxset ansiosamente.
Belo texto!
@vinimzo
assisti ontem e realmente esse é o menos romântico/charmoso dos 3 mas nem por isso seja inferior. tomara muito que tenhamos um quarto!
“Antes da Meia Noite” marca a perda da inocência no relacionamento entre Jesse e Celine. Chegaram os 40 anos e com eles as responsabilidades. Primeiro, os filhos dos dois e do outro casamento de Jesse, o papel de esposa e marido, a qualidade das relações sexuais, etc. Mantendo a tônica dos filmes anteriores (diálogos inteligentes, insistentes e sempre interessantes), o mais recente episódio da trilogia continua a saga do “the beginning is the end is the beginning” com os finais em aberto. É mais razoável não ter saudades dos dois jovens que fizeram um interrail e continuar a acompanhar os promissores desenvolvimentos da história.
Muito legal o texto. Grande filme, não tão romântico mas achei que tem alguns dos melhores diálogos dentre os três filmes.
Bem bom os dois textos! Os 3 filmes são ótimos, mas o “Antes da meia noite” me “incomodou” mais, justamente por mostrar que o tempo é implacável até para os personagens fictícios… saí do cinema cantarolando Mother’s Little Helper…