Desde que existe sociedade, existe juízo, culpa, tribunal, acusação e absolvição. A coisa só abrandou ou piorou ao longo dos tempos, de acordo com a moral vigente. Ainda assim nunca deixaram de existir meia dúzia de preconceitos, tabus ou desvios de noção suficientes para mandarem para fogueira, implacável ou covardemente aqueles que pisassem fora deles – ou que achássemos que pisaram. Alguns moleques poderiam fazer um punk rock de 3 minutos sobre isso (e até fazem), mas Thomas Vinterberg fez melhor em “A Caça” (“Jagten”, 2012): ele dançou valsa de coturno sobre nossos rins.
Depois de passada a onda do que podemos chamar de neo-neorealismo iraniano (luz e som imitando o natural, conflitos corriqueiros sem resoluções brutais e personagens nada extraordinários) o cinema retoma uma vertente realista mais próxima do dito cinema narrativo clássico (luzes recortando a cena, som hiperreal, situações extremas e drama). Surge nesse realismo dois caminhos: um para frente outro para trás. A possibilidade de especular até que raia podemos conduzir o absurdo ou de estudar sua origem naturalista.
No primeiro caso, em filmes como “Drive”, “Cosmopolis” e “Holy Motors”, o carro é quase um protagonista. No segundo, em filmes como “Fausto” e “L’apollonide”, há sempre um personagem de outra espécie que não a nossa, como a cadela Fanny, de “A Caça”. Pois se o carro é uma das maiores representações da extensão humana, os bichos nos dão uma noção da selvageria natural das coisas.
Predominam nesses filmes a câmera aberta e estática, dando a sensação de que a humanidade foi posta no divã. Algo que não acontece em “A Caça”, onde uma câmera embriagada, no melhor estilo John Cassavetes, deturpa tudo. Fosco/desfoco e o quadro trêmulo criam uma atmosfera ruidosa, perturbadora e incompreensível, onde é preciso parar para respirar e tentar retomar a ordem dos fatos, quase sempre sem sucesso. Uma ode ao caos, mostrando o desvario dos tempos e a impossibilidade de tirar conclusões no calor dos fatos.
O imbróglio todo filme se dá porque uma garotinha de uma cidade pequena na Dinamarca acusa seu professor de abuso sexual. Mesmo sem saber o que é isso, a garotinha relata ter visto o órgão sexual do tutor do jardim de infância em riste. O bater de asas da borboleta se converte em tufão, quando a coordenadora do colégio se senta com um investigador para tomar uma providência.
Vinterberg – que a exemplo de Lucrecia Martel ou o Selton Mello de “Feliz Natal”, é adepto de caricaturas pouco convencionais da sociedade – ressalta desta maneira dois aspectos importantes da “sociedade do juízo”: a ingenuidade iluminista da professora – nascemos puros e verdadeiros, depois nos perdemos – e a crença distópica do investigador – há sempre mais maldade do que podemos ver. No restante do filme, a menina desmente a si mesma, mas é tarde demais, pois a temporada de caça foi aberta, a presa é fácil e todos estão surdos com os rifles já armados.
Talvez a lição que “A Caça” queira passar seja simplesmente essa: somos cães no canil a espera de alguém que abra a porta para praticarmos um de nossos lazeres prediletos, a selvageria. Nesta caça constante (motivada muitas vezes pelo olhar sem profundidade sobre fatos contados a esmo, seja por um desconhecido, um vizinho ou pelo apresentador de um programa de televisão, quase todos viciados em primeiras impressões) as bruxas às vezes são apenas alces que não terão muitas chances contra nossos rifles.
– João Carlos Martins assina o blog Ponei Maldito e é responsável pela Uruguaiana Movies
Leia também:
– Não espere uma conclusão clara e fechada em “Holy Motors”, por Lucas Guarniéri (aqui)
– “Cosmópolis” e o modo de vida individualista dos nossos tempos, por Adriano Costa (aqui)
– “Drive”, um filme econômico que tem muito a oferecer, por Bruno Capelas (aqui)
– “L’Apollonide”: retrato do ocaso de um prostíbulo parisiense, por Itamar Montalvão (aqui)
– Lucrecia Martel radicaliza na simplicidade com “A Mulher Sem Cabeça”, por Mac (aqui)
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