Kevin Parker e a arte de trás para frente
por Mateus Ribeirete
Continuidade retroativa (‘retcon’) é a alteração do passado de uma história já contada. Traz a reinterpretação de um ocorrido, ou de algo que apenas parecia ter ocorrido: é aquilo que autores fazem quando querem aprofundar algo não elaborado, preenchendo lacunas, ou quando se arrependem do destino atribuído a algum personagem. Como Sherlock Holmes, que havia morrido nas Cataratas de Reichenbach com seu inimigo Moriarty até Arthur Conan Doyle se convencer (ou ser convencido) a recontar a história, poupando a vida do detetive. Presente em diversas áreas da ficção, o ‘retcon’ é um recurso muitas vezes necessário para manter um personagem ou reviver uma saga.
Responsável pelo Tame Impala, Kevin Parker é um sujeito tranquilo e silencioso, isolado como Perth, cidade onde cresceu, na Austrália. Ele gravou seu disco de estreia, “Innerspeaker”, praticamente sozinho, e então passou a ser louvado. Há menos de um mês, lançou “Lonerism”, afastando qualquer síndrome de continuação ao apresentar um trabalho consistente e objetivo. Se o primeiro álbum já abordava introspecção, o segundo a levanta como questão crucial, agora substituindo guitarras por teclados.
Sem aprofundar características já bastante conhecidas (anos 60, anos 70, “parece o John Lennon!”, psicodelia), o ponto aqui não é partir para uma avaliação crítica do “Lonerism” (apesar de inevitavelmente ser também isso), ou a comparação estritamente musical entre os dois discos. O que chama atenção é como o lançamento do segundo contribui com a degustação do primeiro, de forma retroativa. O próprio Parker viu em “Lonerism” um antecessor para “Innerspeaker”, e isso corrobora a ideia.
Praticamente todas as músicas deste segundo álbum carregam instrospecção como foco, independente de seu contexto – amor, decepção, autoconfiança etc. A largada (“Be Above It”) é um eu-lírico que luta para se superar, como se tentasse manter o controle em um combate contra desilusão. Depois vêm o escapismo lamentoso da realidade (“Endors Toi”); mais escapismo, agora com relutância e um final de conformidade apática (“Apocalypse Dreams”); trauma, insegurança e enorme vulnerabilidade (“Mind Mischief”); mais vulnerabilidade, acompanhada por distração e busca por aceitação (“Music To Walk Home By”).
Seguem-se solidão e conformismo (“Why Won’t They Talk To Me?”); desequilíbrio emocional entre um par (“Feels Like We Only Go Backwards”); necessidade e relutância em contar algo (“Keep on Lying”); o grande ego do outro (“Elephant”); um murmúrio rápido consigo mesmo (“She Just Won’t Believe Me”); amargura e sensação de impotência (“Nothing That Has Happened So Far Has Been Anything We Could Control”) e, finalmente, possível culpa e ruptura (“Sun’s Coming Up”), utilizando o corriqueiro Sol como símbolo do que está por vir. Finaliza-se o disco com a metafrase “I guess it’s over”.
“Lonerism”, pois, representa uma compilação de pensamentos negativos enfurnados em uma cabeça desconfortável. Sintetiza o atópico, deslocado, que não pertence a lugar algum e ainda não descobriu a melhor maneira de lidar com isso – sendo esta sua principal discrepância temática em relação ao “Innerspeaker”. É o descontentamento da introdução forçada a um círculo social com quem não se carrega a menor identificação; a angústia de entrar em um ambiente novo, detestar todas as pessoas e não ter como ir embora; a aflição de receber julgamentos após ser mal-compreendido e não ter ânimo de se explicar, simplesmente pela descrença de que valerá a pena.
Até a capa, porta de entrada do álbum, traz sensação de isolamento: do outro lado do portão há pessoas agrupadas, socializando tranquilas sob o Sol no Jardim de Luxemburgo, em Paris – onde parte do disco foi gravada. Nossa visão, porém, é externa, distante e torta, praticamente aprisionada na observação. Por outro lado, a imagem da capa de “Innerspeaker” aponta infinitude e livramento, quase que indicando vontade de se atirar e saber que não se tocará o chão.
Entra a continuidade retroativa: após “Lonerism”, músicas como “Alter Ego”, “Solitude is Bliss” e “I Don’t Really Mind” ganham ainda mais força. Se a perspectiva do segundo álbum é de alguém perdido e indeciso, em “Innerspeaker” percebe-se maturidade, a escolha convicta pela solidão e a confiança de não haver nada errado nisso. Quem buscava aprovação em “Why Won’t They Talk To Me?” já aprendeu a se aceitar, deixando claro em “Desire Be Desire Go” que “não tem verve para pertencer a este lado morto – por que tentei eu não sei”. Se em “Music To Walk Home By” há a tentativa de parecer outro alguém, em “Alter Ego” já se brada que “o único a te julgar é você mesmo”, e “esperar todos concordarem pode levar tempo demais”.
Iniciado o desprendimento em “Sun’s Coming Up” (ou, de forma embrionária, após o refrão de “Why Won’t They Talk To Me?”), a conclusão de “Innerspeaker” fecha o ciclo de amadurecimento. “I Don’t Really Mind” entrega uma sensação absolutamente incompatível com “Lonerism”: indiferença. Toda a falta de segurança, controle e certezas se dissipa na tranquilidade de quem já não mais se importa. Quem sabe o próximo disco parte deste ponto, ou então aborda novamente alguma lacuna não preenchida do passado.
“Innerspeaker” já era um belo disco, e Kevin Parker merece créditos por atribuir um conceito sutil a seu trabalho, redimensionando-o de forma natural. Não é preciso contar toda a história de Ziggy Stardust para se formar um conceito: os dois primeiros trabalhos do Tame Impala se completam de forma extraordinária, embora fora de ordem. Temos aqui uma dessas brincadeiras cronológicas legais que a arte proporciona – ou, também, pode ser tudo viagem.
Mas não é.
– Mateus Ribeirete escreveu sobre o livro “Ascensão e Queda do Britpop” para o Scream & Yell e integra a equipe do recomendadíssimo Defenestrando -> http://www.defenestrando.com
Boa romanista!
textão. abordou tudo com propriedade mesmo. eu falei do tema da solidão na letra do tame impala num dos textos do meu blog, também. se quiser, dá uma olhada. parabéns ao autor.
Gostei do texto.
Obrigado, Marcel. Gostei bastante de seu texto também; esse tema de solidão rende horas de assunto (pra quem se dispuser a romper com a solidão e dialogar, haha). Pedro, não esperava te encontrar por aqui! Entre em contato, cara. E obrigado pelo comentário, Thiago.
Pqp, eu achei muito interessante o jeito como vc expressou e interpretou as músicas de ambos os albuns, realmente um belo texto