por Ismael Machado
Como os próprios ‘beats’ de meados dos anos 40 e anos 50, o filme “Na Estrada” (“On The Road”, 2012), de Walter Salles, desperta reações adversas. Há quem o considere o melhor filme do cineasta. E há os que, decepcionados, confessam ter esperado mais da obra baseada no clássico livro de Jack Kerouac (no Brasil, “Pé na Estrada”), uma das bíblias da beat generation.
Nem uma coisa nem outra. Se não é o melhor da filmografia de Salles, “Na Estrada” também não deve ser visto como um tiro no pé ou exercício de pretensão do diretor. Não é fácil transpor o universo de Jack Kerouac para as telas. E das tentativas já feitas, talvez a do brasileiro tenha se saído melhor do que as anteriores, o que, definitivamente, não é pouca coisa.
O mais interessante nisso tudo é que mais uma vez Walter Salles mergulha em dois temas que lhe são caros. Os ‘road movies’, ou filmes de estrada, e a história de redenção e autodescoberta. Isso é visto em “Terra Estrangeira”, “Central do Brasil”, “Diários de Motocicleta” e agora em “Na Estrada”, para ficar em quatro exemplos singulares.
Em determinada cena de “Terra Estrangeira”, dirigido em 1995 por Walter Salles e Daniela Thomas, a personagem Alex, interpretada por Fernanda Torres, olha para o mar e diz ao companheiro em fuga Paco, vivido pelo então estreante Fernando Alves Pinto: “Lá adiante fica o Brasil. Coitado dos portugueses, mal sabiam o que iriam encontrar quando partiram daqui”. A frase pode não ser exatamente essa, mas o sentido, sim. Esse é um momento do filme crucial para se entender o sentimento vivido por uma geração inteira no Brasil do início dos anos 90, com o desencanto provocado por sucessivos malogros políticos e econômicos.
Filmado em um preto e branco saturado e granulado, “Terra Estrangeira” é a primeira tentativa de Walter Salles de definir a busca por uma identidade nacional latino-americana. É uma metáfora da condição de exilados vivida por brasileiros em seu próprio país ou que buscaram alternativas num autoexílio, iniciando uma espécie de diáspora mundo afora.
Se em “Terra Estrangeira”, Salles voltou o olhar para os países de “onde viemos” (Portugal e Espanha) em busca de uma resposta à questão de nossa identidade e não encontrou nenhuma conclusão para essas indagações, num segundo momento seu olhar se volta para o próprio país. O filme em questão é “Central do Brasil” (1998). A ideia aparentemente é inversa a de “Terra Estrangeira”. Enquanto o primeiro olhava para a tradição perdida, para o país colonizador, o segundo trava um diálogo de esperança por um país possível, onde se pode sonhar com uma identidade pessoal.
No filme, Dora (Fernanda Montenegro) escreve cartas para analfabetos na “Central do Brasil”, a estação ferroviária do Rio de Janeiro aonde milhares de pessoas anônimas chegam e partem, com suas próprias histórias e seus próprios dramas pessoais. Um dia, a mãe de Josué (Vinícius de Oliveira) paga os serviços de Dora, tentando se comunicar com o pai do garoto, que nunca conheceu o filho. Como sempre, Dora, que é ex-professora, não envia a carta e fica com o dinheiro. Quando a mãe de Josué morre atropelada, ela decide vender o menino a traficantes de crianças, pensando que Josué vai acabar bem em alguma família europeia rica. Muda de ideia e junto com o garoto parte para o sertão nordestino em busca do pai do menino.
Ao fazerem sua pequena odisseia, Dora e Josué acabam por revelar o Brasil ao próprio Brasil. É essa viagem particular que Salles inicia. A identidade nacional é buscada na oralidade, nas pequenas histórias de um Brasil rural, pobre, árido, mas com possibilidades infinitas por conta de uma espécie de bravura cotidiana de seu próprio povo.
Mas, único país a adotar a língua portuguesa, o Brasil também busca a própria identidade latinoamericana. Afinal, o que é a América Latina? Quais suas identidades? Ou existe uma única identidade? Essas perguntas Salles tenta responder no filme “Diários de Motocicleta” (2004). O filme narra a trajetória do jovem estudante de Medicina Ernesto Guevara e seu amigo Alberto Granado pelos países da América do Sul. Guevara entraria para a história como o revolucionário Che Guevara. Em Diários de Motocicleta, Salles utiliza o argumento de que as viagens feitas de moto por Guevara e Granado moldaram o sentimento revolucionário de Che.
Mas em vez de optar apenas por esse tratamento superficial, Salles tenta aprofundar a discussão sobre a identidade cultural latino-americana. O filme lança um olhar generoso sobre os países vizinhos ao Brasil e mostra que, de certa forma, as raízes da colonização acabam por serem semelhantes. É como se Salles buscasse a possibilidade de uma América una no sentido de fraterna, com características próprias, mas irmanada por uma origem comum, com anseios e sonhos e possibilidades entranhadas em uma sensação de pertencimento a uma origem similar.
Em “Na Estrada”, Salles busca um país que não existe mais. Os Estados Unidos de Kerouac já desapareceram. Não à toa, muitas cenas foram feitas em países como Argentina e México. Mas o que importa no filme é a busca pelo próprio ‘eu’. É a inclinação pelo olhar ao outro, que Salles sempre buscou. Bem ou mal, é o humano que o diretor tenta capturar nas lentes e levar às telas. A captura aqui, não se refere a aprisionamento, mas a uma compreensão do que nos une, do que nos faz sermos solidários, fraternos e aventureiros. Alguns chamam a isso de amor. Pode ser uma boa definição no final das contas.
– Ismael Machado é repórter especial do Diário do Pará e autor do livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”. Saiba mais aqui.
Leia também:
– “Na Estrada”: Walter Salles é fiel ao livro, mas pisca para a Geração Crepúsculo (aqui)
Bom texto! Depois de Bush e crise de 2008, os Estados Unidos não existem… mais, também escrevi sobre o filme e mais em http://wp.me/p1YOKS-5T
bacana teu texto, fernando. só acho que a kristen segurou a peteca no filme. me surpreendeu.
Valeu, Ismael, inclui seu comentário lá no meu blog. Abs.