Larry “Doc” Sportello não é o detetive que alguém contrataria quando estivesse em apuros. Ele não é cerebral como Sherlock Holmes nem durão como Sam Spade. Com huaraches (sandálias típicas mexicanas), gravitas psicodélicas e cabelo black power, Doc faz o estilo marijuana-boiled. Seu lema poderia ser tirado daquela canção do Bufallo Springsfield: “There’s something happening here, what it is ain’t exactly clear”.
Proprietário da LSD Investigações (“Localizamos, Seguimos, Detectamos”), Doc Sportello é o personagem principal de “Vício Inerente”, de Thomas Pynchon, lançado no ano passado pela Companhia das Letras, com tradução de Caetano W. Galindo. O título se refere a um termo do direito marítimo: o ovo tem por natureza se quebrar, logo o seguro não cobre esse tipo de carga. Pode ser uma analogia com o pecado original – jamais estamos seguros quando Pynchon dá as cartas.
Para quem não sabe, Thomas Pynchon é ouro na categoria Escritor Recluso, superando até mesmo J. D. Salinger. Os boatos sobre Pynchon se propagam como ‘hoax’: ele seria o autor de “Smells Like Teen Spirit”, saberia o nome do assassino de JFK, além de ser o Unabomber. Por outro lado, apesar de parecer piada, ele redigiu manuais técnicos para a Boing, viveu no México e foi aluno de Vladimir Nabokov. Supostamente, a voz no trailer do livro é a voz de Thomas Pynchon:
O enredo de “Vício Inerente” é complexo. Doc é contratado pela ex-namorada Shasta Fey para investigar um magnata do ramo imobiliário que desapareceu. Este é o ponto de partida para uma história que envolve dentistas, empresários, hackers, músicos e garçonetes. Estamos no clima de paranoia generalizada, fruto das alucinações assassinas de Charles Manson e sua seita. A ação transcorre entre março e maio de 1970 (com direito a um dia que dura mais de 24 horas).
O fato das drogas rolarem soltas só contribui para a sensação de paranoia. Os hippies se sentem perseguidos pelos policiais, os policiais temem novos atentados, e Doc se envolve em conspirações cada vez maiores e complicadas para quem está com a mente envolta em fumaça.
Em alguns momentos o leitor pode se sentir deslocado em meio aos diálogos chapados – impossível não pensar nas conversas transcritas em “Visões de Cody”, de Jack Kerouac, o autor que fez Pynchon começar a escrever. Este parece um dos casos que justifica o questionamento do crítico James Woods: emular uma voz corrompida não seria corromper a linguagem? Só parece.
Embora o leitor possa se sentir sedado num hospício, a fluidez narrativa, a adoção elegante e precisa do discurso indireto livre, o domínio absoluto do ritmo e da variação de registros faz com que o “Vício Inerente” não deixe de agradar tanto aqueles que buscam um thriller quanto ao leitor que quer mais que simples entretenimento.
Pynchon equilibra com maestria seu humor insano com um reservatório impressionante de informações aparentemente inúteis. Por exemplo: as paredes das prisões eram pintadas de rosa, pois essa cor acalmaria os detentos. Ou: o charuto De Nobili era o favorito da máfia. Mais um: Dalton Trumbo escreveu o roteiro do último filme de John Garfield, mas não foi creditado por estar na lista negra dos suspeitos de atividades comunistas.
A figura clássica do ajudante do detetive, o personagem secundário que acompanha o chefe em suas aventuras, é subvertida. Aqui temos Pé-Grande Bjornsen, o policial-caçador-de-hippies, em teoria um antagonista de Sportello, mas que na verdade pode ser tomado, por vias tortas, como seu parceiro.
A grande questão do romance policial é lidar com as aparências. O detetive deve descobrir o que se esconde por baixo delas para resolver o caso. Sportello age diferente, preferindo mergulhar no caos.
E aqui topamos com a famosa entropia pynchoniana, a idéia central de que todas as moléculas do sistema precisam se desintegrar para atingir a mesma temperatura. (De acordo com um personagem: “Como um LP numa bandeja de toca-discos, basta um sulco de diferença e o universo pode estar em uma música completamente diferente”.)
Este parece ser o método do tresloucado Doc Sportello: resolver a imensa confusão em que se meteu como quem fuma um baseado, pescando aqui e ali informações que podem ou não ser relevantes, apertando e puxando para não deixar o cigarro apagar. Não seria ousadia nenhuma imaginá-lo num jogo de boliche com o Dude Lebowski.
Nos poucos momentos em que está sóbrio, Sportello se revela preocupado sobre o futuro: “os Psicodélicos Anos Sessenta, aqueles pequenos parênteses de luz, podiam acabar se fechando, e tudo se perder, reconduzido às trevas…”.
Pynchon deixa claro que as sombras do pesadelo americano já eram maiores do que o brilho dourado do sonho hippie. Que Steve Jobs, filho aparentemente espiritual dessa época, tenha sido santificado não deixa de ser irônico. Muitos o idolatram, mas parece discutível que ele seja o chefe dos sonhos (só o fato de jovens desejarem ter um trabalho já é bastante revelador de como as coisas mudaram).
E a revolta dos jovens londrinos alienados do mercado de consumo é apenas outro efeito do ‘dream is over’. Hoje todos querem possuir para depois compartilhar – virtualmente, claro. Os consumidoidos se tornam suicidadãos da utopiada, de acordo com os versos de José Paulo Paes.
Nada mais distante do modo de vida desencanado e “hippiefânico” de Doc Sportello e seus amigos. Eles não poderiam imaginar que a desregulada especulação imobiliária na transição do milênio levaria os Estados Unidos a uma crise bem maior do que as ondas na praia de Maverick. Mas a ganância, a corrupção e a falta de escrúpulos já estavam ali, e desde então não deixaram de pavimentar a estrada da desesperada cena final de “Vício Inerente”.
Leia um trecho do livro em PDF no site da Companhia das Letras (aqui)
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– Gabriel Innocentini (@eduardomarciano) é jornalista e assina o blog Eurogol
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