por Itamar Montalvão
Durante quase meio século, John Edgar Hoover foi a face pública da máquina repressora norte-americana. Um dos homens mais poderosos e controversos do século XX, desde sua nomeação como assistente do procurador-geral dos EUA, logo após o término da Primeira Guerra Mundial, até sua morte em 1972, já no governo de Richard Nixon, Hoover viu oito presidentes tomarem posse da janela de seu gabinete, desafiou todos eles e construiu uma das organizações policiais mais eficientes e temidas do mundo, o Federal Bureau of Investigation. Como seu primeiro diretor, dotou o FBI de recursos tecnológicos inovadores para a época e concebeu a filosofia de investigação daquilo que hoje conhecemos como “polícia científica”. Tudo a serviço do combate à ameaça comunista, sua maior obsessão, e de seu ânimo inabalável para frear o avanço do movimento pelos direitos civis de negros e homossexuais.
J. Edgar Hoover também não se furtou a usar o aparato gigantesco que montou para o bureau para combater gângsteres como Al Capone, John Dillinger e Machine Gun Kelly. Entre a caçada a um criminoso e outro, passou a colecionar temidos arquivos pessoais secretos contendo detalhes íntimos da vida das mais proeminentes figuras da política, das artes e até das Forças Armadas. Juntou tal quantidade de informações, que esses dossiês se converteram em seu salvo-conduto para permanecer diretor do FBI pelo tempo que ele quisesse, não seus superiores. Ficou 48 anos no cargo, virou o patrono da instituição e ajudou a definir a posição de supremacia dos Estados Unidos durante os anos em que o mundo girou sob a tensão constante da Guerra Fria.
Mas, assim como seus investigados, Hoover também tinha uma vida secreta. Se sua persona pública e a enorme quantidade de poder que detinha já o tornariam uma figura muitíssimo interessante, a própria homossexualidade reprimida, a paranoia, a carência afetiva e a relação com a mãe – única pessoa na face da Terra a quem temia – seriam capazes de transformá-lo no personagem ideal para um grande filme nas mãos de um grande diretor. Dito isso, é impossível conter a alta expectativa diante de “J. Edgar” (EUA, 2011), a cinebiografia dirigida por Clint Eastwood que estreou no país na última sexta-feira (27/01). Com essas credenciais, ao entrar no cinema o mínimo que o espectador deseja é ser arrebatado por uma direção magistral de Eastwood e pela atuação mediúnica de Leonardo DiCaprio no papel-título. Mas não é o que acontece.
Clint Eastwood tinha nas mãos a rica possibilidade artística de apresentar ao público as diversas facetas da personalidade sui generis de um homem dividido como John Edgar Hoover. Mas optou por um filme apenas correto, quase asséptico, que a todo o momento dá a impressão de ter sido concebido para ganhar um caminhão de prêmios (e, veja só, foi solenemente ignorado pelo Oscar).
Lançando mão de uma narrativa confusa, o diretor alterna diversas fases da vida de J. Edgar (DiCaprio), sua secretária, Helen Gandy (Naomi Watts), e seu vice-diretor e amante, Clyde Tolson (Armie Hammer). Ao optar por essa forma de contar a história, Eastwood força seus atores a passar boa parte do filme debaixo de uma pesada maquiagem, o que acaba por limitar suas expressões. O caso mais grotesco, sem dúvida, é o de Armie Hammer, um bom ator transformado em um boneco de museu de cera.
A fotografia de Tom Stern (“Beleza Americana”, “Menina de Ouro”, “Gran Torino”) resulta em um filme escuro, cansativo para os olhos após quase duas horas e meia de projeção. O roteiro não linear de Dustin Lance Black (“Milk”) passa em revista 50 anos da história norte-americana através das memórias ditadas por J. Edgar Hoover para seus agentes assistentes, que mudam sem que o espectador perceba em que ponto da narrativa foram trocados. O roteiro também peca por deixar de explorar a possível esquizofrenia de Hoover, que via figuras através de portas de vidro que só ele parecia ver e gabava-se constantemente de façanhas que, na verdade, tinham sido protagonizadas por seus comandados.
Tampouco o cross-dressing e o romance entre Edgar e Tolson são explorados de forma franca. A relação afetiva entre os dois é apenas sugerida o filme inteiro, até que em uma determinada cena a paixão entre eles eclode de forma mais abrupta. Há críticos que afirmam que esta forma de abordagem implícita de sua homossexualidade foi um acordo firmado entre os produtores do filme e o Instituto J. Edgar Hoover para que a produção fosse feita. Uma concessão que empobrece o filme, uma pena.
No fim, “J. Edgar” não passa de uma grande promessa. É um filme apenas correto pelo que se vê na tela e uma decepção por todas as possibilidades que deixa de explorar. A única coisa que o salva de um desastre total é a atuação honesta e impressionante de Leonardo DiCaprio, em um dos melhores papéis de sua carreira. Ele nos faz esquecer de tudo o que fez recentemente ao dar vida a um ser humano complexo como Edgar. Mas nem isso será capaz de conter o ímpeto vingativo do verdadeiro Hoover onde quer que ele esteja agora. Cuidado, Clint.
– Itamar Montalvão (siga @imont) é estudante de jornalismo, assina o blog Pop Bacana
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Bela resenha.
Saí da sala de cinema com a impressão que poderia ter visto um filme muito melhor com o mesmo retratado – e uma leve sensação de dèja-vu quando lembrei de “O Aviador”. Duas vezes Di Caprio, em personagens com muito poder e muitas excentricidades, em filmes longos um pouco demais. Uma pequena decepção com o velho Clint.
Obrigado, Bruno. Sim, é pertinente a sua associação. Não dava para esperar nada menos do que um filme brilhante do Clint Eastwood com um personagem desses na mão. Mas acho que realmente as concessões falaram mais alto.
Eu não entendi bem o que você quis dizer com “filme correto, quase asséptico”. Eu achei quase o contrário. Achei que o Clint fez um bom trabalho — corajoso, até — em juntar várias versões do que se dizia ser J. Edgar e transformá-las várias facetas dentro de uma única versão. Ele não foi demonizado, nem canonizado, nem satirizado… ele foi retratado como uma pessoa em tons de cinza, não preto e branco. Como eu e você. Agora eu não consdero a falta de escolha de um lado como uma manobra politicamente correta. Mas bom, essa é só uma opinião. Gostei do filme.
Concordo contigo no que diz respeito à fotografia.
Olá, Fernanda. Acho que Clint Eastwood retratou um J. Edgar que todos já conheciam. Neste sentido, não trouxe novidades sobre a personalidade dele, o que abriria um grande campo de possibilidades artísticas para que Leonardo DiCaprio deitasse e rolasse no papel (o que ele acabou fazendo dentro do que tinha, pois é um grande ator). Por isso um filme apenas “correto e asséptico”. Eastwood teria sido mais corajoso se explorasse mais o lado cinza que você menciona. Não acho que tenha feito, apenas sugerido.