por Marcelo Costa
Em um mundo perfeito, cineastas como o austríaco Michael Haneke e o dinamarquês Lars Von Trier não existiriam. Ou, olhando por outro lado: o cinema de Haneke e Von Trier só existe porque vivemos em um mundo corroído por imperfeições. Haneke mostra essas rachaduras de forma direta, sem muita alegoria. O cinema de Von Trier, por sua vez, é épico (mesmo quando despe a cena, como no brilhante “Dogville”, o resultado é algo próximo de uma fábula medieval).
“Melancolia” (“Melancholia”, 2011), filme mais recente de Lars Von Trier, sacudiu o Festival de Cannes (em maio) pelos motivos errados. O cineasta dinamarquês – sempre polêmico – tentou engatar uma piada na coletiva de imprensa do festival, tropeçou em sua própria falta de tato, e acabou sendo expulso de Cannes. “Melancolia” perdeu a Palma de Ouro para “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick, mas Von Trier ainda pode saborear a vitória de Kirsten Dunst, que saiu do festival como Melhor Atriz.
Comparado ao tenso “Anticristo” (2009), “Melancolia” é quase um filme de sessão da tarde (para depressivos e niilistas) – embora tivesse que cortar uma bela (e dispensável) cena de nudez de Kirsten Dunst para ser exibido após o horário de almoço aos brasileiros. Porém, ainda que estejamos diante de seu filme mais palatável, Lars Von Trier não nos nega sua visão pessimista do mundo. E assim como em uma comédia hollywoodiana, aqui você também descobre o final do filme nos primeiros minutos de projeção – e não será feliz.
Duas irmãs surgem em cena. Justine (Kirsten Dunst) acaba de se casar com Michael (Alexander Skarsgard) e Claire (Charlotte Gainsbourg), auxiliada por seu marido John (Kiefer Sutherland) realiza uma enorme festa na mansão do casal à beira de um lago – e de um campo de golfe (motivo de orgulho para o hilário John). Apesar do aparente momento propício a felicidade, Justine não consegue preencher sua alma com algo que faça as bochechas levantarem causando um sorriso verdadeiro.
A festa é um perfeito exemplo de pessoas erradas nos lugares errados. Há um desconforto em cena cada vez que alguém toca uma taça de cristal com uma colher pedindo a palavra. O desastre é inevitável, mas Von Trier não acelera a trama: ele parece querer saborear cada momento de desconforto humano. Justine sofre, e seu sofrimento e tristeza se estendem a partir do momento em que ela percebe o planeta Melancholia se aproximando perigosamente da Terra.
É a partir daqui que “Melancholia” abandona o drama para pisar o território da ficção cientifica, defendem alguns, mas Lars Von Trier apenas se utiliza do recurso cientifico para amplificar a questão máxima de seu cinema: a humanidade deu errado, deve acabar e não irá fazer nenhuma falta ao universo. Justine, movida pela tristeza, aceita que o planeta Melancholia irá atropelar o planeta Terra e transformar tudo em resíduo cósmico. Claire não. Ela acredita – e espera – que a humanidade deva ser salva. As duas irmãs são belos esteriótipos modernos.
Lars Von Trier recheia sua história com diversos simbolismos e peca apenas em querer dar ao personagem de Kirsten Dunst um tom sobrenatural, como se sua tristeza fosse motivada por uma ligação mediúnica de Justine com o mundo. Não que isso não exista, mas uma cena em particular (a dos feijões) serve mais para confundir o espectador do que para justificar as atitudes da noiva, já claramente motivadas (literalmente no filme) pela melancolia, um estado psíquico de depressão sem causa aparente.
Em seus estudos sobre o superego, Freud escreveu que a melancolia lembrava o processo de luto, sem que houvesse necessariamente uma perda. A perda, segundo o psicanalista, era narcisista: pessoas com sintomas de melancolia falam de si mesmas como “inúteis”, “incapazes de amar”, “de fazer algo bem, ou de bom para os outros”. Desta forma, o mal está em si. No caso de Justine, Von Trier o amplifica: o mal está no ser humano, uma raça que não deu certo e merece ser extinta. Niilismo clássico.
“Melancolia” é um daqueles filmes essenciais ao mundo moderno – seria ainda melhor se deixasse o mediunismo para películas como “Nosso Lar” e “Chico Xavier”. Lars Von Trier usa a podridão da natureza humana como veículo de entretenimento, e deve ter pesadelos todas as noites. Alguns o chamam de louco, mas no mundo das pessoas ditas “normais”, movido pela utopia da felicidade e pela capacidade / necessidade de sonhar, há uma sensação de que se mente a todo o momento para o espelho. Quem é o louco?
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– “A Fita Branca”: Michael Haneke quer ver você sorrir, por Marcelo Costa (aqui)
– “Dogville”, de Lars Von Trier, estimula a reflexão, por Hector Babenco (aqui)
– “Manderlay”: Você gosta de ser manipulado?, por Danilo Corci (aqui)
– “Dançando no Escuro”: Apaguem as luzes e vamos chorar, por Carmela Toninelo (aqui)
Pela primeira vez gosto de um texto seu.Você se sai melhor com cinema do que com música, e isso é um elogio.
Comentário IP 189.27.120.84: email não reconhecido
Contém Spoiler.
A parte dos feijões confundem? essa parte é justamente a que dá luz a tudo, que prova que Justine sabia o que aconteceria e que nada poderia mudar o que se aproximava…
Não acho que teve apelo sobrenatural. Só alguém que tenha passado por uma depressão pode entender o ar de “compreensão da humanidade” que é carregado. Muitas pessoas extremamente inteligentes são depressivas e isso não tem nada a ver com mediunidade.
Para mim, o ponto forte foi mostrar o equilíbrio e desequilíbrio de ambas nas fases diferentes do filme. Claire mantendo o casamento sob controle, a “normal” da família, enquanto Justine desabava e “fazia cena”. E depois surtando descontroladamente com o que lia na internet sobre o planeta, levando o filho para nenhum lugar, voltando etc, enquanto Justine se mantinha ok por aceitação.
Thais, há sim apelo sobrenatural. A parte dos feijões mostra que Justine é uma pessoa com um dom (e isso é estendido em seu banho ao luar).
E, Targino, é exatamente esse dom que me incomoda. O filme é literalmente sobre melancolia, então não precisava dar um tom sobrenatural para a história. Ela não está calma porque sabe que nada vai mudar, mas porque niilisticamente sabe que o fim é a melhor saída. Ou seja, o sobrenatural (simbolizado através de um gesto de mediunismo e estendido no banho ao luar – uma forma de cortejar o fim) é dispensável. O que importa ali é a sensação de que o fim é a saída e como dois esteriótipos lidam com isso: alguém que quer viver e alguém que não quer.
O filme é tudo menos sobre melancolia. E acho que sua dificuldade com as duas cenas importantes mostra bem isso.
Talvez. Para mim, se as duas cenas fossem retiradas, o filme ficaria muito mais tátil.
E ainda acredito que seja sobre melancolia (ou ainda a forma melancólica com que Lars Von Trier enxerga o mundo atual).
Lembro de ele dizer na coletiva de Cannes que queria fazer de “Melancolia” uma comédia, mas que até suas tentativas de comédias são melancólicas (“Não me imaginem filmando uma tragédia”, brincou depois).
Mac, entendi a cena da nudez como um “banho de melancolia”, um momento entre ela e o planeta.
Mas não a achei melancólica na cena, e sim extasiada, feliz com a chegada do momento, sabe.
o filme é uma verdadeira aula sobre o que é a melancolia.
não ha desejo.. não ha vida.
interessante ver a irmã e o cunhado tendo que lidar com essa “sensação”, forçados pelo eminente desastre.
A película é toda melancólica. E também acho que as cenas que tratam do dom mediúnico da personagem nada acrescentam ao filme.Só confundem. Algo que gostei muito foi o modo como Trier filmou. Desfoques, chicotadas.Closes.Ficou bem intimista, “dogmático”. Só não entendo mesmo como esse filme perdeu para o pretensioso A Árvore da Vida…
Engraçado, assisti ao filme duas vezes no cinema e nem me lembrava da parte dos feijões. Concordo com você, é dispensável, mas de alguma forma não me marcou. Também acho que a cena dela nua não contribui em nada para o filme (tirando a beleza da fofa, que é sempre bom para os olhos).
Melancholia é meu filme preferido dele. Não vi todos. Acho que ele acertou a mão em fazer um filme com belíssimas imagens, ótimas atuações e metáfora mais simples. Adoro todos os símbolos de Anticristo, mas chega uma hora que desisto de tentar entender e só sinto. Faço isso com o David Lynch também.