Música: The Suburbs, Arcade Fire

por Marcelo Costa

Um jovem alemão para em frente ao Edifício Copan e, impressionado, diz: “A quantidade de pessoas que mora nesse prédio é maior do que a população da minha cidade natal”. Uma cena da vida em São Paulo, mas também de Londres, Nova York, Roma e dezenas de outras capitais ao redor do mundo, grandes cidades que abrigam (como um grande coração de mãe) milhões de pessoas, e também as tornam reféns. Um sentimento de dualidade paira sobre as metrópoles. Muitas vezes, de forma ilusória, elas integram o ser humano no tempo/espaço da história ao mesmo tempo em que criam uma sensação de guerra particular, em que o inimigo – de forma maximizada – pode ser, no final das contas, você mesmo (a), como se ruas, avenidas e grandes construções fossem nada mais do que um espelho para narcisos indecisos.

Subúrbio, em termos geográficos, designa toda a área urbana que está ao redor do centro da cidade (sejam elas metrópoles ou não), como se fossem as beiradas (mornas) de um prato quente de sopa. Foi de um subúrbio que William Butler, cérebro do Arcade Fire, aprendeu a observar o mundo, mais precisamente Houston, sexta maior área metropolitana dos EUA – com uma população de quase 6 milhões de pessoas. O subúrbio de Houston não é diferente de outros (o que explica a opção da banda em cravar o título do álbum no plural: “Os Subúrbios”), e Win Butler apressa-se em explicar (em entrevista ao NME): “o álbum não é uma carta de amor, nem uma acusação, aos subúrbios. É uma carta dos subúrbios”.

Você já viu esse filme mais de uma vez na história da música pop: banda indie celebrada estreia com álbum fenomenal, lança segundo disco soberbo e então amacia a sonoridade para abraçar as massas. É quase isso que o grupo canadense apronta com “The Suburbs”, algo que talvez o Coldplay pudesse ter feito se Chris Martin fosse apaixonado por Bowie e não por Bono, mas paixões não se escolhem. “The Suburbs” é filho de Houston e de Montreal, mas poderia ser de Londres, Chicago ou São Paulo. O Arcade Fire conseguiu diluir sua estranheza e ainda sim soar instigante. Há tanto (falsa) simplicidade (“Modern Man”, “Wasted Hours” e a suave faixa título) quanto rebeldia controlada (“Ready to Start”, “Month of May”, “We Used to Wait”) entre as 16 faixas do álbum, que usa a vida nos subúrbios para disfarçar uma crítica a classe média.

A faixa título abre o disco de forma candenciada e limpa como poucas vezes o Arcade Fire soou. Violão, piano e bateria conduzem a voz de Win, que narra lembranças de sua infância: “Eu aprendi a dirigir nos subúrbios, e você falou que não iríamos sobreviver”. Conforme a melodia cresce (com acréscimo de cordas), Win fala em guerra particular, diz que se vê criança gritando e correndo pelos quintais e toma uma decisão: “Eu quero uma filha enquanto ainda sou jovem”. Ele sobreviveu. Passado e futuro de mãos dadas em uma grande canção. A bateria galopante de “Keep The Car Running” pode ser ouvida em “Ready To Start”, faixa que expõe as cicatrizes causadas pela indústria na banda: “Os empresários bebem o meu sangue / Como as crianças na escola de arte disseram que eles fariam / Então acho que vou começar de novo / Você diz, ‘ainda podemos ser amigos?’”. Tédio e medo marcam uma canção cuja temática dualiza uma questão clássica: arte x sucesso.

“Modern Man” é um retorno à simplicidade da faixa título. O vocal bonito de Win se destaca e dá vida à canção enquanto o vocalista tenta convencer o ouvinte que é um homem moderno – “como um disco que está pulando”, analogia dirigida para o público adulto. Ele enfrenta filas, não para de consultar o relógio e sabe (messianicamente) que é o escolhido, mas continua esperando – todos continuam. A fila não anda. A modernidade volta a ser questionada em “Rococo”, uma epopeia irônica que serve para apresentar o som do grupo para ouvintes despreparados: “A música horrível que eles estão cantando é rococó”, explica Win Butler, que ainda insiste: “Eles parecem selvagens, mas são tão mansos”. É a primeira grande canção a la Arcade Fire do álbum, e a primeira em que os vocais fantasmagóricos e envolventes de Régine Chassagne marcam presença.

“Rococó” abre o caminho para “Empty Room”. O som do violino dispara, a bateria galopante retorna trazendo guitarradas enquanto o casal Chassagne e Butler canta/grita: “Posso ser eu mesmo quando estou sozinho”, atestando a dificuldade do viver numa sociedade. Na sequência, com influências explícitas de Bruce Springsteen, “City With No Children” abraça a infância, a alienação e a classe média: “Nunca confie em um milionário que cita o Sermão da Montanha”, provoca o letrista, para logo em seguida observar: “Eu costumava pensar que eu não era como eles / Mas começo a ter minhas dúvidas”.

O núcleo central do álbum é formado por duas peças sutis, a primeira (“Half Light I”) quase uma canção de ninar (ou um número de hipnose) que cresce de forma suave enquanto desnuda a timidez (“Estranho como a meia luz pode criar um lugar novo / Você não pode me reconhecer e eu não posso reconhecer você”, diz a letra) e a solidão (“Você diz que ouve vozes humanas, mas é só eco”). Repleta de climas e camadas, “Half Light II (No Celebration)” reforça a crítica contra a adequação do ser humano ao mundo (algo que “Modern Man” e “Rococó” também questionam): “Todas as cidades mudaram muito desde que eu era uma criança / Rezo a Deus para não estar vivo para ver a morte de tudo que é selvagem”.

“Suburban War” empresta toda a estrofe que abre a faixa título (e o álbum) para pegar pesado contra a alienação e a perda da inocência. “Não há nada a fazer, mas eu não ligo quando estou com você”, canta o personagem, que segue cegamente os passos de seu par: “Você deixou seu cabelo crescer, então eu deixei o meu”. Eles se desencontram (“Você cortou seu cabelo, e eu nunca mais vi você de novo”), o tempo passou e os amigos de infância já não o conhecem mais. Com ecos de Velvet Underground, “Month of May” volta a questionar a alienação dos jovens (“As crianças ainda estão com os braços cruzados”) e encontra a sutileza quase sacra de “Wasted Hours”, canção cujo personagem – de modo delicado – acredita que “algumas cidades fazem você perder a cabeça” enquanto sonha com a liberdade olhando pela janela de um ônibus.

Deslocada da temática central do álbum (“uma carta dos subúrbios”), “Deep Blue” abre o trecho final de “The Suburbs” e soa como uma canção menor ao tomar a polêmica derrota de 1997 do campeão mundial de xadrez Garry Kasparov (considerado por muitos o maior enxadrista de todos os tempos) para Deep Blue, o supercomputador desenvolvido pela IBM (a vitória da tecnologia sobre o sentimento), como um prenúncio de que entramos na “era das sombras”. Com piano à frente e bateria de marcação truncada, “We Used To Wait” permanece na questão “homem x máquina” explorada pela faixa anterior. Na letra, o personagem lamenta que não se escreva mais cartas (outro sinal de que a tecnologia venceu o humanismo através de e-mails e mensagens digitalizadas pelo celular ao contrário de cartas escritas a mão) e lança ao menos uma questão interessante: “Parece estranho como costumávamos esperar por cartas / Mas o que soa mais estranho é como algo tão pequeno possa manter você vivo”.

A dispensável “Sprawl I (Flatland)” é marcada pela morte das emoções (a própria falta de melodia a torna cansativa num exemplo emblemático do (ab)uso do tema como objeto de retórica em primeiro plano) e só funciona como contraponto (ou escada, como diriam os comediantes) para “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)”, cuja voz encantadora de Régine dá sobrevida à canção mais significativa do álbum, por duas frases emblemáticas: “Às vezes me pergunto se o mundo é tão pequeno que não conseguimos fugir do progresso” e “Eu preciso da escuridão, alguém por favor, apague as luzes”. Como uma coda, “The Suburbs (continued)” fecha as cortinas.

Em “Funeral”, Win Butler usava a morte de pessoas próximas para falar sobre esperança, maturidade, renovação, amor e perda. Em “Neon Bible”, ele buscou inspiração em falsos pastores que prometiam a vida eterna em troca de dinheiro para profetizar que o mundo estava perto do fim. “The Suburbs” ataca a classe média enquanto questiona a vida nas grandes cidades e o quanto elas domesticam o ser-humano que vive essa diária batalha suburbana. Win flagra a perda da inocência (relembrando quintais e noites em que pegava escondido o carro da mãe), questiona a alienação dos jovens e defende a solidão em um disco que tem momentos grandiosos, mas é musicalmente mais palatável e tematicamente quase hippie.

Por mais que o letrista tente não dar juízo de valor ao conteúdo temático do álbum, sua observação dos subúrbios soa uma crítica severa ao mundo moderno (e à juventude) que resvala perigosamente na nostalgia de uma adolescência repleta de possibilidades, cujo resultado (um artista sério em um meio não tão sério assim, o do rock ‘n’ roll) sugere um acerto de contas com o passado. Porém, com apenas 30 anos, Win Butler parece um vovô despejando ranzinzices óbvias sobre shopping centers (notadamente a nova igreja de uma religião não tão nova assim, o capitalismo) enquanto lamenta não reconhecer (e ser reconhecido por) seus amigos de infância. Lamenta que o conformismo vença a selvageria ao mesmo tempo em que amolece o Arcade Fire musicalmente.

A guerra suburbana que travou em Houston marcou severamente o músico. Como um narciso indeciso diante dos espelhos de uma metrópole devastadora (bom dizer que há um pouco de ironia nesta frase), Win focou-se nos traumas causados pelas algemas com que a sociedade (e a família, por que não) o prendeu na infância para criticar um modo vazio de viver – “padrão classe média” – que pode ser simbolizado pela busca do entendimento do ser e da alma em livros de auto-ajuda. Várias questões se sobrepõem. Isso tudo mudaria longe das grandes cidades? Isso tudo impossibilita a vida inteligente nos subúrbios? O culpado é o ambiente, a família, a própria pessoa ou a falsa premissa de segurança da classe média? E, ainda, como mudar tudo isso? Win não responde nenhuma questão, mas deixa várias pistas nesta carta dos subúrbios, um belíssimo disco para ser filosofado em mesas de boteco mundo afora.

Leia mais:
– “Neon Bible”, o fim do mundo como nós o conhecemos, por Marcelo Costa (aqui)
– “Funeral” fala sobre a vida de todos nós, todos nós, por Marcelo Costa (aqui)

27 thoughts on “Música: The Suburbs, Arcade Fire

  1. E eu, que já tinha enjoado de tanto que ouvi, fui lá ouvir mais um pouquinho…
    The Suburbs é um disco a que sempre se pode recorrer, em diferentes momentos e humores.
    Geniais descrições, Marcelo, mandou bem.

  2. Belo texto Marcelo.
    Muito boa a sua resenha para o Album.

    Eu acho, The Suburbs lindo e grandioso. Ao vivo as canções são de arrepiar.
    E depois de eu ter feito varias escolhas diferentes de melhor canção do album, porque é muito dificil escolhar a melhor canção num disco cheio de grandes canções.,
    E ter visto ao vivo, Cheguei a conclusão que Sprawl II (Mountains Beyond Mountains) é a melhor musica do album.
    Mas posso mudar de opniao daqui ha 2 horas. hahaha 🙂

    The Surbubs, é o disco do ano, da decada, etc 🙂

  3. Resenha esplêndida. Calhou do disco estar por perto agora, ficou muito mais bacana ler o texto ao som de Suburbs.
    Não sei ainda se é o disco do ano, mas que o Arcade é uma das bandas do ano, isso é…

  4. Demorou, mas valeu. Juntas, as suas três resenhas sobre os três belos discos do Arcade Fire, estão entre os seus melhores textos. Boa música insipira bons textos. Parabéns.

  5. Belo texto para um belo disco. No mundo da internet sinto falta de resenhas assim, mais elaboradas e menos superficiais. Enfocando tanto a estrutura (descrição das músicas), quanto o conceito em torno do álbum. Penso que gosto ainda mais do The Suburbs e do Arcade Fire agora.

    Abraços

  6. Disquinho chaaato… Assim como todos os outros discos do Arcade Fire.
    Uma banda que eu não vejo a menor graça.
    Eu devo ter um tremendo mal gosto, porque todo mundo venera essa banda…

  7. Acho incômoda essa hypezação desse disco. Vamos com calma… Bom, tô ouvindo várias vezes e só consigo gostar das duas primeiras músicas. Muito boas mesmo, mas o disco como um todo cansa. Parece que o medo de ser pop (ou a vontade de ser magalomaníaco) meio que estragou o que poderia ser bem melhor. O que eu quero dizer é, bem… se algumas músicas fossem mais enxutas e menos forçadas no “epic mode” elas iriam ser bem mais digeríveis, iriam dar vontade de ouvir no loop loucamente.
    Como disco não acho o melhor, pra mim vai ser o “Brothers” do Black Keys. Tô com eles e não abro.

  8. Na minha opinião, não surgiu nenhuma banda, na última década, que seja tão boa e realmente relevante para a música pop quanto o Arcade Fire.
    Não se trata de “grandiosidade”, mas do fino trato com as composições.

  9. Tô acompanhando os comentários aqui com entusiasmo, apesar da coisa estar meio brocha. Merecia mais.

    Não por este disco, nem pela banda. Mas pelo fenômeno cult que ela representa.
    Seria bem legal ler mais opiniões sobre esta banda ou este cd, que seja…

    Quanto a mim, cara…

    O Marcelo Costa que me desculpe, mas acho que este disco não merece discussão alguma em “bares inteligentes”. “Funeral”, apesar de infinitamente mais chato, até merecia.
    Mais pelo sopro, pela faísca que representava. Representava, mas nem isso era: na terceira audição a gente já percebia que eram mesmo só sopros e faíscas. Não entrega nada!

    “Neon Bible”? Ora, por favor, este é um disco chatíssimo. Pé de pato, mangalô, três vezes!
    Considero impossível que alguém, sinceramente, no fundo de sua pior sinapse, considere aquilo legal, bom, ótimo, genial, do caralho, o que seja! Não dá! É impossível!

    E quanto a este “Suburbs”, acho realmente que seja o melhor deles, se é que cabe tal termo.
    Pelo menos há melodias que chegam a algum lugar. Pena que seja sempre algo muito aquém do que se espera.

    Acho que este é ponto: eles criam a atmosfera, a levada, você vai gostando, achando que a coisa vai explodir, que vai vir a grande virada, que finalmente você vai sorrir de verdade e dar o braço a torcer… E nada! Ou a coisa vai pelo óbvio e ok, ou a coisa piora e te brocha, ou vai por um caminho outro que demonstra claramente que a banda até tentou, mas não conseguiu chegar lá. Essas hipóteses ocorrem quase 100% da vezes, é impressionante…

    Foda é que há boa música ali. Nada memorável, mas há. “Month of May” é a melhor música do disco, talvez a mais bem acabada deles. É ótima. Dos melhores rocks do ano. Mas óbvia demais. Será que dura? Será que vai marcar época? Claro que não!
    “Fuck You”, do Cee Lo Green, é que vai… Eis a diferença…

    O Arcade Fire é uma banda de boas idéias, mas de péssimas realizações.
    Não péssimas em comparação com outras coisas, certamente. Mas péssimas perante a pretensão da banda. E com vocais bem fracos, que só pioram a situação…

    Você ouve os discos dos caras e depois ouve Different Class e percebe claramente aonde ele não conseguiram chegar. Quem sabe um dia… Tomara!

    Mas isso tudo é só uma opinião…

  10. Boa resenha, apesar de achar que em muitos momentos o autor se empolga e vai muito longe nas interpretações. Há tambem certa imprecisão nas traduções, afinal, “If the businessmen drink my blood” se traduz mais corretamente como “Se os empresários beberem meu sangue” do que como “Os empresários bebem o meu sangue”. E não acredito que haja correspondência entre “sprawl” e “progresso”. “Sprawl”, na música, refere-se mais ao crescimento das cidades, que expandem seus limites até o ponto em que não é mais possível saber ao certo onde elas terminam.

  11. É o melhor disco do ano, mas não melhor que o Ok Computer, como definiu a NME, o Lúcio Ribeiro já tinha dito isso. No entanto é ótimo ouvir “Sprawn II” dirigindo pelos subúrbios brasileiros.

  12. Arcade Fire “fenômeno cult”?,”coisa explodir”? palatável ao gosto das massas?Novo Ok Computer?

    Eu moro no subúrbio do brasil no interior do cu de Goiás e não conheço ninguèm aqui que vá ouvir esse disco, muito menos filosofa-lo em mesas de buteco.A coisa tá muito mais feia do que se imagina.Me sinto deslocado e devastado.Eu vivo num subúrbio de um subúrbio e o que conta pra mim, é que o disco diz e expressa muita coisa que eu sinto e nesse sentido senhores o buraco é mais embaixo.

    “Crianças acordem!! E segurem seus erros.Antes que eles tranformem o verão em pó”

  13. Embora inferior aos outros dois discos anteriores, este é um álbum perfeito, com canções magníficas, e com certeza merece todos os prêmios que tem ganhado!

  14. O que dizer de um album de uma banda indie que ganha o grammy de album do ano deixando um monte de gente de cara amarrada… mas premio nao eh sinonimo de qualidade… enfim.. o album na minha opiniao e um dos melhores da decada juntamente com o reflektor… e aquele clip da musica suburbs e de arrepiar

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