por Marcelo Costa
“Tropa de Elite” é o rascunho quase perfeito da letra de Renato Russo para “Veraneio Vascaína”, canção gravada (e proibida) no primeiro álbum do Capital Inicial (1986), mas há uma glamorização na forma com que este rascunho é desenhado que muita gente deixa o cinema fã dos soldados do Bope. A culpa não é só do filme muito menos de seu diretor. A culpa também é do público (na verdade a culpa é do Estado, mas esse é o ponto final da discussão, local para o qual todas as análises deveriam convergir).
Trecho da resenha escrita sobre “Tropa de Elite”, por Marcelo Costa, 07/10/2007
Há uma distância significativa entre arte e crítica, um espaço que vem se ampliando cada vez mais, passando de uma micro-rachadura nos anos 50 para um enorme cânion na atualidade. A culpa do aumento do buraco foi, em primeira estância, a industrialização da cultura, que nas décadas de 60 (música) e 70 (cinema) deixaram de serem objetos de nicho para se transformarem em fenômenos de massa. Filmes e discos passaram a vender milhões, e a crítica foi atropelada pelo mercado.
Um dos sintomas deste atropelamento foi a perda de força da crítica cultural, que continuou (e continua) existindo, mas praticamente se desmaterializou frente às cifras astronômicas da indústria de massa. Boa parte de artistas, músicos e cineastas, na posição central de criadores (tal qual um Deus no Olimpo), passou a ignorar opiniões, e o processo crítico enfraqueceu – e, de certa forma, a arte (e principalmente “gênios” que adoram esmurrar pontas de faca) perderam um norte.
O cineasta José Padilha foi do inferno ao céu com “Tropa de Elite”, um filme de grande sucesso de público, que arrebatou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, mas que ganhou a pecha de reacionário e fascista em dezenas de críticas. Padilha defendeu o filho pródigo em debates, entrevistas e em qualquer outra brecha que aparecesse pelo caminho, e esse calvário crítico teve total influência sobre “Tropa de Elite 2”, que como definiu muito bem o jornalista Daniel Piza, no Estadão, não é uma continuação do primeiro, e sim uma desconstrução.
O cenário é o mesmo (Rio de Janeiro, dias de hoje), mas o foco mudou. Isso não fica perceptível na primeira meia hora da película, tempo em que o Tenente Coronel Nascimento (Wagner Moura novamente sensacional) aponta sua metralhadora verbal para sociólogos e bandidos, e despeja munição com sorriso no rosto (dele e da plateia). “Tem muito intelectualzinho de esquerda que ganha a vida defendendo vagabundo. E o pior é que esses caras fazem a cabeça de muita gente”, esbraveja Nascimento com uma certeza que será colocada à prova nos minutos seguintes.
A coisa toda degringola assim que Matias (André Ramiro), comandando um esquadrão no meio de uma rebelião dos cabeças do tráfico na penitenciaria Bangu 1, coloca em prática aquilo que aprendeu no Bope (e que todo o público viu no primeiro filme). Bandido bom é bandido morto, diz a máxima popular, e a ação de Matias causa uma reviravolta na vida de Nascimento, que é aplaudido pelo povo ao mesmo tempo que se vê obrigado a deixar o comando do Bope, mas “cai pra cima” e se transforma em Sub-Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Seu plano pessoal: “foder a máquina dentro da máquina”.
Depois de meia hora de exibição, “Tropa de Elite 2” mostra que José Padilha ouviu com atenção tudo aquilo que lhe foi cobrado pela crítica no primeiro filme. Trabalhando em um órgão público, Nascimento percebe/descobre que o problema do tráfico (e, em extensão, da polícia, da educação, da saúde e, de modo geral, do Brasil) é bem mais complexo do que se parece e que seu inimigo é outro (não a toa, o subtítulo do filme) começando assim uma escalada rumo à destruição (dele próprio e do meio que o cerca).
Velhos conhecidos retornam. Além de Nascimento e Matias, Capitão Fábio (Milhem Cortaz), Russo (Sandro Rocha, um dos três grandes personagens do filme) e Rosane (Maria Ribeiro) também marcam presença dividindo espaço com novos personagens, como o ativista Diogo Fraga (Irandhir Santos, a segunda estrela de “Tropa de Elite 2”), a jornalista Clara (Tainá Müller), o caricato governador do Rio e o tragicômico Deputado Fortunato (André Mattos em atuação excelente). Até Seu Jorge brilha.
Saem de cena os traficantes, entram as milícias. Policiais corruptos ocupam o lugar de bandidos (escrito assim sugere redundância) enquanto o Estado, ausente e impotente (e pouco se fodendo), observa a readequação do caos. O tom, todavia, é didático (às vezes em excesso). Favorecido pela narração em off do Capitão Nascimento, que não só expurga demônios pessoais (a separação da mulher, o relacionamento difícil com o filho) e profissionais como também explica tintin por tintin tudo o que se desenrola na tela, “Tropa de Elite 2” ganha em foco, mas perde em impacto (o que não atrapalha o resultado final, acredite).
A força do primeiro filme residia exatamente em não deixar o público pensar na sala de cinema. Seu ritmo vertiginoso não abria espaço para reflexões nem críticas. Prostrado na cadeira, o público podia apenas observar (e aplaudir?) a acelerada carnificina à espera do próximo fotograma. “Tropa de Elite 2”, por sua vez, é tão violento quanto seu antecessor, mas abre espaço para que o espectador observe, reflita e entenda a mudança de comportamento e de conceitos do amigo Nascimento. O resultado, ainda que menos impactante em ação (não em texto), é cinema político de primeira grandeza, algo raro nestes tempos neste País.
Mais: José Padilha conseguiu brilhantemente fugir da elitização do discurso, que talvez transformasse “Tropa de Elite 2” em filme cult e não em sucesso de massa, retirando a obra do colo dos intelectuais e passando-a às mãos de um público que não tem a mínima idéia do real problema do Brasil. Nascimento pode soar didático para muita gente, mas não para a massa que elege palhaços (com e sem sentido figurado) muito menos para a classe média que “vê” revistas, mas não enxerga a realidade do País. Para estes, “Tropa de Elite 2” não é um soco no estômago, mas sim uma pedalada na nuca. Quem sabe funciona no tranco.
Afinal, você sabe, “o sistema é foda, parceiro”.
Leia também:
– “Tropa de Elite 1”, quase um grande filme, por Marcelo Costa (aqui)
– “Tropa de Elite 2”, toda maturidade deve ser aplaudida, por Daniel Piza (aqui)
Seleção de frases do blog Não Salvo. Veja outras quinze pérolas do filme aqui
Crítica também sensacional!
Só eu acho essa porra toda uma merda? =)
sensacionais filme e resenha!
tem uma outra resenha que li que encerra assim: “Está tudo errado em nossa política e o problema é que sabíamos disso antes de entrarmos no cinema.”
(dá pra ler tudo aqui: http://tinyurl.com/2wlnrp3 )
acho que esse que é o grande mérito do filme, fazer o brasileiro médio sacar que o problema é muito, MUITO maior do que parece…
abraços!
e parabéns pelo texto de novo!
“…muito menos para a classe média que “vê” revistas, mas não enxerga a realidade do País.” Ótima essa parte, em especial.
Não acho que o primeiro filme tenha sido fascista nem nada, como muitos dizem. O problema é que várias pessoas usaram ele como pretexto pra liberar seu lado reacionário. Lembro que eu estava ainda no colégio, e alguns colegas diziam: “Isso mesmo, tem que matar esse bando de bandido!”. Se tinham vergonha desse sadismo, deixaram de tê-lo. Ficou legal ser duro e cruel depois do Tropa 1.
caro rmurilo. voc”e acha mesmo ou esta apenas sendo do contra…tem amigo meu que nunca assistiu cidade de deus por causa do frisson midiatico. ser[a esse o caso aqui…