por Marcelo Costa
Autor de pequenas obras-primas do cinema pós anos 2000 como “Menina de Ouro” e “Sobre Meninos e Lobos”, Clint Eastwood nunca irá perder sua imagem de cowboy de western spaguetti. Porém, por trás daquela pose de alguém que pode despejar o tambor de um revólver sobre o inimigo, e ainda beber um brandy antes de deixar o saloon, há a alma de um homem bastante sentimental. Isso começou a surgir quando Eastwood filmou “Bird”, cinebiografia de Charlie Parker, em 1988. Um cowboy contando a história de uma lenda do jazz? Algo estava errado. E ficou ainda mais “errado” quando Eastwood voltou ao Oeste e trouxe de lá “Os Imperdoáveis”, uma película de cowboy em plenos anos 90, que faturou Oscar de Melhor Filme e mostrou que mesmo no peito de quem segura uma espingarda de dois canos bate um coração.
Eastwood queria mais. Em “Um Mundo Perfeito” (1994), Clint fez de Kevin Costner um bandido foragido que seqüestra um menino, jogou um punhado de dólares sobre seu corpo (a cena final é arrepiante) e construiu uma amizade tocante aonde não deveria existir nada, como se flores pudessem nascer no asfalto. O resultado é acachapante, e abriu caminho para sua obra mais ousada até então: “As Pontes de Madison”. O que um cowboy sabe sobre o amor? Mais do que eu, você, e qualquer apaixonado pudéssemos imaginar. De natureza simples, “As Pontes de Madison” desenha um romance absolutamente perfeito em sua imperfeição. O roteiro brinca com os minutos, arrastando as cenas, como se quatro dias pudessem ser mais importantes que uma vida inteira. E podem. E são. Pouco menos de 100 horas que valem uma eternidade, ou duas.
Em “As Pontes de Madison”, Clint é Robert Kincaid, um fotógrafo da National Geografic que está no Iowa para fotografar antigas pontes cobertas, famosas na região, para uma reportagem da revista. Meryl Streep é Francesca Johnson, uma dona de casa que trocou a Itália pelo sonho de viver na América. Casou-se com um soldado, e anos depois se vê criando os dois filhos do casal na paisagem bucólica de uma fazenda em que pouca coisa acontece, e vive-se a vida porque se acorda todo o dia, e não porque se têm sonhos. Perdido, o fotógrafo pede informações na fazenda dos Johnsons, mas a família foi para uma feira agropecuária, e apenas Francesca está em casa. O que acontece após este esbarrão do destino é aquilo que a astrologia resume como “efeito urano”: é quando uma pessoa faz uma “burrada” tão grande que detona a sua própria vida e a de outras pessoas. Bem, quase faz, e é neste fragmento do “quase” que reside a beleza deste filme.
Nossos dois personagens desse épico romântico moderno passam quatro dias juntos, se apaixonam, descobrem uma certeza que só se tem uma vez na vida, e são obrigados a escolher entre ficar ou fugir. A encruzilhada abre diversas possibilidades e questionamentos. O amor, tal qual o conhecemos, sobrevive a rotina? É possível ser feliz após ter detonado a vida de uma porção de pessoas para alcançar essa felicidade? O passado pode ser esquecido como se queimássemos uma folha de papel e jogássemos as cinzas pela janela? É possível amar e não estar com a pessoa amada? Essa história de alma gêmea é uma brincadeira divina (o homem lá de cima deve ser um cara extremamente divertido) ou podemos, num momento x de nossas vidas, encontrar uma pessoa que nos faça acreditar que caminhamos uma vida toda para chegar a este encontro?
Enquanto você matuta respostas, Robert e Francesca são condenados a viver o amor em silêncio. E não existe amor mais forte que este, pois “o amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente”, e como carregar por toda uma vida um amor que só durou quatro dias? Amando. É cruel e inconcebível pensar assim, mas apenas quem ama verdadeiramente pode entender que após encontrar a pessoa amada, o mundo ganha um novo significado, e a vida se transforma em uma estrada de mão única cuja última e única parada é chamada apropriadamente de fim. O amor justifica a vida. Melhor sofrer por amor que viver sem amar, diria o poetinha. Por mais vileza que seja amar em silêncio, não há como fugir desse destino. Porque só amando é que vamos correr o risco de sermos amados e, nesse fragmento de sorte, sermos eternamente felizes. No entanto, não se entra em uma história de amor para se ser infeliz, mas a infelicidade está incluída implicitamente na hora que compramos o pacote. Dói, saiba, mas é só assim que você poderá ter a chance de guardar quatro dias inesquecíveis para se lembrar para o resto da vida. Pode parecer pouco, mas não é… acredite.
Clint Eastwood abusa do direito de ser comovente em uma cena clássica: na chuva, Robert pára no meio da rua enquanto o marido de Francesca, que voltou com os filhos, faz compras. A cena se arrasta e Francesca segura a maçaneta da porta do carro com tanta força que deve ter sentido o objeto atravessar seu coração. Ela quer deixar o carro. Ela quer correr na chuva para o seu amado. Ela quer deixar a fazenda para trás, seus filhos, uma vida sem sonhos, mas a razão está ali despejando um mundo de motivos para que ela deixe o amor virar a esquina e partir para sempre, para longe de seus olhos, longe de seu corpo, mas não longe da alma. Ela se desespera, chora, e volta a viver porque viver é preciso, afinal, acordamos todos os dias a espera do fim. E com o fim, a crença no reencontro. Injusto? Não. O amor não tem nada a ver com justiça. O amor é maior que a vida. E talvez você entenda isso melhor quando tiver aquela certeza que nós só teremos uma vez na vida. Quando isso acontecer, tudo fará sentido. E amar em silêncio não será tão inconcebível. Porque enquanto o corpo sente falta do toque, a alma está totalmente completa. E, sabemos, um dia todos vamos ser apenas poeira no chão. Ou nos arredores de um ponte.
“As Pontes de Madison” é uma adaptação do romance “The Bridges of Madison County,” de Robert James Waller, que supostamente é baseado em uma história real. Mais do que surpreender o espectador, que talvez nunca esperasse uma história de amor contada com tanta soberba e maestria por um dos heróis da classe western, “As Pontes de Madison” encanta por retratar o amor na idade adulta, quando pouco de nós espera alguma coisa a mais da vida, quando nossos sonhos de adolescência foram esquecidos, e a lembrança de que um dia sonhamos é algo que nos faz analisar e questionar toda uma existência. Quase ao final do filme, quando Francesca pede aos filhos que aceitem seu último desejo, dizendo que deu sua vida à família, e quer deixar para Robert o que restou dela, é impossível não entregar os pontos, as lágrimas, o coração e a alma para Clint Eastwood. Ele conseguiu algo que poucos conseguem: retratar o amor sem ser piegas ou cínico ou vingativo. E com isso, conseguiu filmar uma pequena obra-prima, mais uma de seu excelente currículo como cineasta, um filme que você precisa ver.
Texto dedicado à Lívia Casarès Bergman. Publicado originalmente no Scream & Yell em 22/01/2006
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o GRANDE filme de amor dos ultimos 20 anos, sem sombra de duvida ( o caps lock foi pq salvo os dois do Linklater antes do amanhecer , e antes do por do sol , nao tem nada que chegue nem perto da beleza que é esse filme)
Punch-Drunk Love é um desses. Milimetricamente incomum. Belo!
Esse Filme é muito bom, e Clint Eastwood, é um baita diretor, mas um outro filme que ainda recomendo e acho fantastico, é AMOR A FLOR DA PELE DE Wong Kar-wai, IGUALMENTE sensacional.
Putz, Mac: ainda não assisti, mas vi uma peça baseada no filme ontem, no Festival Internacional de Teatro de Angra. Achei bem bonita… Entreguei os pontos numa parte em que a mulher, já bem velha, recebe as coisas que o já falecido Robert deixou para ela, inclusive, as máquinas fotográficas. Foda.
Filmaço, toda vez que eu assisto me debulho em lagrimas
top 5…
Caramba! Nunca ví esse filme (e me odeio um pouco por isso agora), mas quase chorei com essa resenha, Marcelo. Alugarei hoje e não me esquecerei da caixinha de lenços e do brigadeiro para afogar as mágoas…