por Marcelo Costa
Difícil escolher o que é mais brilhante em “Viridiana”: se a história que o cerca ou se o próprio filme em si. Primeiro o entorno: no meio da guerra civil espanhola (1938), Buñuel exilou-se na França e, na seqüência, partiu para os Estados Unidos, onde foi trabalhar (em 1941) como conselheiro e chefe de montagem para o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York.
Dois anos depois de instalado no MoMA, o cineasta espanhol foi obrigado a pedir demissão devido a declarações de Salvador Dali (parceiro de primeira hora de Buñuel em “L’Âge d’Or” e “Um Cão Andaluz”) em um livro que lançava luz sobre a simpatia de Buñuel com o comunismo. Em uma carta, Dali declarou fidelidade ao ditador Franco, elogiou a Igreja Católica e recusou empréstimo de 50 dólares para Buñuel (que nunca o perdoou).
Após uma breve passagem por Hollywood, em 1946, Buñuel se instalou no México, dando início a sua brilhante fase mexicana com “Os Esquecidos” (1950), “O Alucinado” (1952), “A Ilusão Viaja de Trem” (1953) e “Ensaio de Um Crime” (1955), entre outros. Em 1960, a convite do próprio ditador Francisco Franco, ele retorna para a Espanha para filmar “Viridiana”, subsidiado pelo governo espanhol, e se vingar.
Franco não poderia imaginar, nem em seus pesadelos mais assustadores, o que viria pela frente. De fotografia detalhista e edição cuidadosa, “Viridiana” é um ataque impiedoso ao catolicismo que não só destrói a moral cristã como satiriza um dos momentos históricos da Igreja Católica, a Santa Ceia (tal qual pintada por Leonardo da Vinci), aqui transformada em Santa Ceia dos Mendigos. Não só, mas melhor entrar na história (do filme).
Viridiana (Silvia Pinal) é uma freira que deixa o convento para visitar um tio, já bastante velho. Ela não gosta dele, mas a madre superiora insiste, e a menina leva toda sua pureza ao encontro do parente, que a recebe de modo fraternal, mas a pede em casamento. Ela nega, ele a dopa e a leva pra cama, beija seus seios, mas desiste do estupro. No dia seguinte, assim que ela parte, ele se mata.
Não acabou.
Viridiana vai largar o convento e tentar fazer o bem abrigando mendigos, que vão querer retribuir o carinho de forma intensa. Há um novo ingrediente na trama: um filho bastardo do tio assume a casa, e se interessa pela moça. Ela foge até quando consegue, mas o filme termina de forma soberba. A cena final, censurada pelo conselho espanhol, mostrava a ex-freira entrando no quarto do primo e fechando a porta. A saída de Buñue no novo final: um singelo jogo de cartas entre Viridiana, o primo e a empregada que sugere um ménage à trois.
Assim como diversas obras do cineasta espanhol, a temática em “Viridiana” choca muito mais do que as cenas em si. É tudo muito velado, sugerido, e mesmo quando parte para a ação (numa tentativa de estupro, por exemplo), a violência não é intensa, mas sim desajeitada. Até grotesca. O que salta aos olhos não é o sexo forçado, mas a inversão de papéis entre a moça caridosa que ajuda pessoas e o mendigo que era ajudado, e agora quer possuí-la.
Buñuel aponta um canivete (retirado de um crucifixo) para o peito do cristão que acredita na bondade humana. Para o cineasta (assim como para Boris, personagem de “Whatever Works”, de Woody Allen), é errada a idéia de que as pessoas são fundamentalmente decentes. Uma diferença separa os dois: Boris acredita que as pessoas falham miseravelmente, mas é preciso aproveitar qualquer centelha de felicidade que jogarem à sua frente. Buñuel não. Ou… talvez: Viridiana começa o filme como uma freira e termina em um ménage à trois. Hoje não choca, mas em 1960…
O cineasta espanhol iria aprofundar sua descrença nas relações humanas no belíssimo e tremendamente sufocante “O Anjo Exterminador”, filme imediatamente posterior a “Viridiana”. Após um jantar formal, um grupo de pessoas não consegue deixar a sala de uma grande mansão, e passa a viver todos os dias neste ambiente. Com o tempo, as relações entre as pessoas pioram, e os instintos primitivos de cada personagem só tem um destino: o caos. Poucos cineastas foram tão profundos nesse território – e acertaram tanto.
A Igreja Católica, por sua vez, caiu de pau em “Viridiana” – que leva o nome de uma santa do século XIII – e o filme foi condenado pelo Papa João XXIII por blasfêmia e indecência. Mais: o ditador Francisco Franco baniu o filme na Espanha, acusando-o de ser anticlerical. Também tentou, em vão, fazer com que tivesse sua exibição cancelada no Festival de Cannes, mas o filme não só foi exibido no festival como Buñuel levou a Palma de Ouro e o filme saiu consagrado – o governo de Franco destruiu todos os papéis que identificavam o filme como sendo espanhol e Cannes precisou reconhece-lo como uma produção mexicana. Só foi exibido na Espanha em 1977, dois anos após a morte de Franco e quinze anos após seu lançamento original. Uma obra prima.
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– “Tudo Pode Dar Certo”: Woody Allen faz pensar mesmo numa piada, por Marcelo Costa (aqui)
Yeah, dá-lhe Buñuel. E que se dane a merda toda católica….
Sempre foi o meu Buñuel favorito. Não é tão famoso quanto seus outros clássicos, mas é perfeito do início ao fim.
mac, grande indicação. bunuel é um dos caras de estética mais particular do cinema. texto excelente. parabens!
Quem pintou a santa ceia não foi michelangelo como citou o autor. Apesar de ter sido pintada por vários artistas, em diferentes épocas, a representação mais famosa da Santa Ceia foi pintado por Leonarda da Vinci
Obrigado pela correção, Michelle