Morphine – “The Night”
Por Eduardo Palandi
Texto publicado originalmente em 2009
Dia 3 de julho completam-se dez anos da morte do líder do Morphine, o baixista e vocalista Mark Sandman. Não conhecia a banda à época, apesar de lembrar vividamente de seu obituário na “Showbizz”, e até hoje conheço sua trajetória pela metade. É estranho falar de algo que só se conhece pela metade. Bem estranho. Ainda faltam coisas na minha relação com o Morphine: tirando por algumas músicas mais famosas, nada conheço dos discos da banda. Mas com o último deles, “The Night”, a coisa muda: sei cada acorde dele, vejo cada imagem que as letras das músicas me projetam, tenho até teorias sobre algumas de suas músicas, como você vai ver abaixo.
Sandman não viu o lançamento do disco: o trabalho foi finalizado poucas semanas antes de seu falecimento, e lançado em 2000. Comprei a minha cópia na também finada Nuvem Nove, loja de CDs no Itaim Bibi (São Paulo) que teve grande importância na minha vida e também na do proprietário desta página. E, apesar dos dois óbitos, “The Night” é um dos discos da minha vida. Ele começa com a faixa-título, uma declaração de amor daquelas que morreram com o século XX. Ela é a possibilidade, é tudo que ele não consegue ver, e só lhe resta esperar que ela o esteja aguardando. O sax está diferente dos discos anteriores, mais tranquilo. Em “So Many Ways”, logo depois, uma história cruza a minha cabeça: essa música me dá a impressão de que o narrador não é Mark Sandman, mas… Ferris Büeller. É, aquele mesmo do “Curtindo a Vida Adoidado”, mas uns vinte anos depois, já quarentão e separado da namoradinha do colégio, Sloane (com quem se casou, nessa história imaginária) e tentando voltar a aprontar como naquela tarde em Chicago.
A cada vez que o cantor do Morphine convida para a dança (“shake it!”, pede), imagino Ferris querendo fazer alguma gatinha dançar, o mesmo acontecendo a cada “hey, what about this?”. Não sei de onde tirei isso, mas tenho essa imagem bem vívida na minha cabeça. Em “Souvenir” ela desaparece, com Mark Sandman falando à garota que se lembra de tê-la encontrado, que os dois estavam mal, que ela lhe deu um ânimo… mas que não lembra o nome dela. E o esquecimento, diz ele, é como ter deixado um souvenir cair no chão. Há um belo solo de sax no terceiro minuto, bem livre e lírico, que abre caminho para a suingada “Top floor, bottom buzzer”, cheia de gritinhos e de backing vocals femininos. Ferris Büeller parece voltar nessa música, em que o protagonista é convidado para uma festinha cheia de gatas. Não sei você, mas eu consigo imaginar o Matthew Broderick narrando a cena da letra:
Priscilla’s in the kitchen, she’s mixing drinks
She’s mixing one for me, I think
And one for Mary Ellen and one for Jane
Priscilla, she knows how to use a shaker
She doesn’t get up as early as a baker, uh huh
There’s a muchacha teaching me to mambo
There’s my buddy Pete eying a bowl of combos
Ramona and a man do a tango dip
Cheek to cheek, hip to hip, come on
No final da festa ainda rola um Al Green, diz o narrador, e a canção acaba, sem que saibamos se Ferris terminou a noite acompanhado, mas Sandman parece ter se entendido com uma garota, que tem até nome: Martha Lee. Em “Like a Mirror”, a voz dele a dela vão duelando até que, apaixonado, ele pede: “deixe seu mundo e junte-se a mim logo (…) eu conheço um navio que parte logo, nessa tarde, na verdade: não esqueça seu paraquedas, eu estarei lá para te pegar”. Tudo isso com uma batida sincopada e um sax estilo Al Green, como na saída da festa.
“A Good Woman Is Hard To Find” parodia no título um conto de Flannery O’Connor, mas os serial killers do texto da americana dão lugar a “uma mulher dos diabos, de uma cidade dos diabos” que brinca com Sandman como se ele fosse um tamborim e o levou até a igreja, onde rezou até doer. Ele fica pensando o dia todo: será que dá para se achar uma boa mulher? (nota do autor: Mark, eu continuo tentando).
Na minha cabeça, essa é a ressaca que Ferris está sentindo depois da festinha narrada em “Top Floor, Bottom Buzzer”. Será que ele vai ligar para Sloane? Mas Ferris desaparece depois de “A Good Woman Is Hard To Find”, deixando minha cabeça livre para ouvir “Rope on Fire”, cujos violoncelos e bandolins pronunciados adicionam uma sensualidade única. Em “I’m Yours, You’re Mine”, o cantor do Morphine fala sobre fazer de tudo para limpar o caminho e ficar junto com seu amor: vai remar o barco através do lago, partir galhos com as mãos, tirar as minas terrestres da trilha. Romântico? Pode ser, mas parece que a forma como os dois se conheceram não foi tanto assim, como ele admite a seguir, em “The Way We Met”.
“Não há história bonitinha que contamos juntos, rindo e completando as frases um do outro”, foi tudo por acidente, como com todo mundo. Mas Sandman constata que, a despeito disso, deu certo: os dois acordaram na cama, fizeram dos gritos um despertador, fecharam as portas e janelas encostando as cadeiras e ficaram juntos, tentando se aquecer. Ou seja: foi romântico sim… mas não do jeito convencional.
A décima música, “Slow Numbers”, é um convite aos amassos: na letra, ele vai brincando com o fato de que nenhum número lhe significa grande coisa, ao mesmo tempo em que o baixo, o sax e a bateria vão desacelerando e criando o clima. “On the elevator, no thirteen floor, goin’up, goin’up, goin’up”, ele chama, enquanto sacaneia os números de zero a nove por estarem sozinhos. E em “Take Me With You”, a derradeira declaração de Mark Sandman, convidando seu amor a sair de uma cidade que não lhe dava nada – e a levá-lo junto: “você quer queimar pontes? / eu te ajudo a abrir fogo / você quer desaparecer? / tenho o manual bem aqui”. E termina o disco pedindo para ela levá-lo consigo, pois não consegue viver sem ela.
Só fui ouvir “The Night” um ano depois que o comprei, quando o levei para escutar no carro. Desde então, ele não saiu mais de lá: é meu fiel companheiro das madrugadas, é o amigo bêbado que me escuta e que, ao invés de querer que eu vá logo dormir, me serve onze doses de poesia, sob a forma de suas onze canções. E é daqueles discos de fazer chorar, por dois motivos: primeiro, por sua beleza ímpar; segundo, pela lembrança de que Mark Sandman não teve tempo de desfrutá-lo. Nessas horas, soa ainda mais incrível recordar que o líder do Morphine nos deixou no palco. No país mais romântico do mundo, a Itália. Fulminado por um ataque cardíaco. Talvez ouvir “The Night” faça mais sentido com um estetoscópio do que com fones de ouvido…
Eduardo Palandi é colaborador do S&Y desde a Idade Média e assina o blog Life In Slow Motion
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Morphine Bootleg Detroit
Por Fábio Sooner
Antes de mais nada, informação: “Bootleg Detroit” é o álbum mais recente do Morphine na discografia completa editada pela Trama há pouco. Entre relançamentos e até então inéditos no país, são sete discos para saciar o vício de consumidores habituados e neófitos na substância. Este é o primeiro e único – até então – álbum ao vivo oficial do trio, gravado da maneira mais coerente possível com a carreira pregressa do Morphine: direto da platéia por um fã de gravador na mão. E por mais incrível que pareça, com boa qualidade técnica de som.
Mais informação: para quem não conhece, o Morphine acabou em 1999 com a morte prematura de seu líder Mark Sandman, vítima aos 37 anos de um ataque cardíaco em pleno palco. Sandman era baixista, vocalista e principal compositor no trio, que se complementava com o saxofonista Dana Colley e o baterista Billy Conway. Tratava-se de uma banda de rock que não tinha guitarrista. Ou seria uma banda de jazz?
Passando aos comentários: pouco importava. A graça do Morphine estava justamente em evitar obviedades. Nem mesmo dava para chamá-los de fusion; as canções de Sandman eram enxutas demais para tanto. Os temas não primavam pela novidade: relacionamentos, crises pessoais, uma boa festa. Ao mesmo tempo, as letras dificilmente pediam para ela – aquela – voltar, nem clamavam pelo suicídio ou por mulheres peitudas jogando cerveja em seus corpos. Por conta desses fatores, a banda estava sempre um passo além dos puristas – fossem os do rock ou os do jazz.
Nesse show gravado em 94, quando o Morphine já tinha dois discos e desfrutava um certo status cult, há um momento crucial, logo após a segunda música executada (a saber, “Mary Won’t You Call My Name”). Sandman dirige-se ao microfone para anunciar o repertório seguinte de maneira bem peculiar: “Acabamos de dizer ‘alô’ a Mary, e nas próximas canções vamos visitar Candy, vamos visitar Sheila, vamos visitar Claire… e então depois acho melhor pararmos no Motel da Vergonha, e caminhar direto à piscina escondida…” Não há nenhuma faixa chamada “Motel of Shame”, mas as intenções de Sandman com seu trabalho ficam claras a partir daí – e o rumo do show também. O Morphine existiu para isso mesmo: música sofisticada ao alcance de todos, uma panacéia para os pecados comuns que cometemos, um reflexo dos desejos que, por mais simples que sejam, não precisam ser banalizados. Um som, digamos, desavergonhado.
E desavergonhadas são as versões ao vivo, onde o clima noir que permeia as canções da banda faz mais sentido ainda. A fidelidade às versões de estúdio não diminui a sensação de proximidade, de sentir a banda tocando no canto da sua sala em uma festinha privê. Não à toa, cada fala de Sandman com mais de cinco segundos foi transformada em faixa separada, reforçando a intimidade da banda com seu público. Basta ouvir outro trecho crucial, quando Sandman elogia a sofisticação do público que o aplaude efusivamente após “My Brain”.
“Justo My Brain” – um solo constante de sax com letra declamada que teria tudo para ser apenas mais uma punhetagem jazzística misturada com spoken word, se não tivesse os seguintes versos: “meu cérebro estava fora de tom/ eu não sei como afinar um cérebro, vocês sabem?/ então eu o levei a uma loja de cérebros/ e eles disseram/ ‘bem, vamos ter que reconstruir a cabeça inteira’/ e eu disse/ ‘bem, façam o que deve ser feito’/ e quando peguei meu cérebro de volta/ ele não funcionava direito/ eu não tive uma única idéia boa desde que o consertaram”. E o show prossegue com “A Head With Wings (“Uma Cabeça com Asas”). Precisa dizer mais alguma coisa?
Texto escrito por Fábio Sooner e publicado no ano I do Scream & Yell
‘Caraleo’! Genial =)
Morphine é daquelas bandas que eu sempre tive curiosidade de conhecer mas sempre deixo pra depois. Vou conhecer de uma vez por todas…belo texto!
nossa 😐 nem parece que foi há tanto tempo. o album cure for pain é o melhor. grande banda!
nunca esqueço do dia em que estava na redação e vi pela agência a notícia sobre a morte do Sandmann. E não me conformo disso ter acontecido às vésperas do show deles no Brasil, no free jazz, se não me engano, para o qual eu já estava me preparando. uma perda irreparável!
Só me lembro de um CD gratuito que a Showbizz disponibilizou nos anos 90, que tinha “Buena” entre as músicas…
Fui ouvir melhor Morphine no ano passado. Ouvir “The Night” é um prazer…
Grande Palandi.
Não é a primeira vez que leio textos ótimos teus e concordo, baita disco, to ouvindo agora e desde a primeira música estou completamente transtornado. Maravilha.