Por Roberta Avila
Ao ouvir pela primeira vez Carla Bruni cantando “Quelq’un m’a dit”, a memória trouxe a baila uma cena do filme “Piaf, Um Hino Ao Amor” em que a maior cantora francesa de todos os tempos, Edith Piaf, tinha acabado de se apresentar em Nova York e dizia aos seus amigos que os americanos não haviam gostado dela porque esperavam uma parisiense sexy e rebolante. Carla Bruni em “Quelq’un m’a dit” sugeria exatamente isso. Apesar de italiana, o francês perfeito e os sussuros e gemidos da moça durante a música faziam crer que ela era o tipo “atriz, modelo, manequim”, e que tinha gravado um CD para explorar esse nicho de mercado que Piaf já anunciava e que permanecia vago, sem sua musa.
Com o casamento de Carla com Nicolas Sarcozy, presidente da França, depois de dois meses de namoro, a presença da moça nas manchetes apresentou-a para um público maior, e foi inevitável baixar os três CDs que ela havia gravada até então. Era preciso ver (e ouvir) do que aquela quarentona enxuta e com lindos olhos de gata era feita. O resultado é que, se por um acaso do destino, ela um dia vier a ocupar o mesmo recinto que a pessoa que assina este texto, terei que lhe pedir duas coisas: desculpas e um autógrafo.
“Quelq’un m’a dit” (Alguém me Disse), o primeiro álbum de Carla, é todo cantado em francês e é excelente. Todas as letras são dela. São lindas poesias que seguem um padrão, demonstrando que existe um estilo ali, uma estrutura que se repete não só na construção, mas também na forma como os assuntos são tratados. Carla desenrola momentos fugazes, sutis e preciosos e os faz durar uma música inteira, três minutinhos deliciosos de folk…
A música título do álbum é assim. É sobre uma pessoa que se aproxima e sussurra “ele ainda te ama” e a fluidez desse momento é expressa no começo da canção com os versos “dizem que o destino tira sarro de nós, que ele não nos dá nada e nos promete tudo”. Carla conquista a atenção do ouvinte de uma maneira simples e inteligente. O mesmo se dá em “Tout le Monde” (Todo Mundo) que é uma música sobre aquilo que todas as pessoas têm em comum, como o fato de estarem sempre à procura de algo na vida que nunca encontram ou de terem sua infância ronronando num bolso esquecido. É muito lindo ter a infância ronronando num bolso esquecido…
E é lindo também ver como Carla se expõe nas músicas. Raphaël, outra maravilha de “Quelq’un m’a dit”, foi escrita para um de seus amantes, pai de seu filho e filho do ex-namorado da cantora. Ou seja, ela trocou o pai pelo filho e ficou tão encantada por ele que lhe escreveu uma música soletrando seu nome e dizendo “eu murmuro à sua orelha e isso lhe faz rir como um sol”. Sim, senhoras e senhoras, os sussuros são ações conscientes assim como a sensualidade que a presença de Carla Bruni exala e que brota de suas músicas. Que o digam os ex-namorados da moça: Mick Jagger, Eric Clapton, Donald Trump, Kevin Costner…
O segundo álbum, “No Promisses”, é uma decepção. As letras são lindas e nem podia ser diferente já que são poemas de W. B. Yeats (autor do poema que dá título ao CD), Emily Dickenson, W.H. Auden, Christina Georgina Rossetti e outros poetas consagrados. Ok, a moça tem bom gosto para poesia, mas em termos musicais a experiência é um fracasso. Todas as músicas parecem a mesma e todas elas ficam dentro da já conhecida fórmula usada em “Quelq’un m’a dit”: baladinha romântica cantada aos sussuros e acompanhada por um violãozinho. O álbum parece a realização do desejo de uma menina mimada que gosta de poesia. Bateu o pé, quis gravar, e gravou.
Diz Ferreira Goulart: “A poesia não cura dor de dente, não resolve problema econômico, não desintegra o átomo, não serve para nada. A única coisa que ela faz é comover”. Só esqueceram de avisar Carla Bruni que poesia às vezes não serve para música e não adianta contratar assistente americana para ajudar na pronúncia das palavras (como ela fez mesmo), vão continuar sendo poemas mesmo que ela bote uma orquestra inteira tocando no fundo (ou Lou Reed declamando “Those Dancing Days Are Gone”, de Yeats, enquanto ela sussura).
Fazia cinco anos que ela tinha gravado o primeiro álbum e a única coisa que “No Promisses” diz de Carla Bruni é que sim, ela está disposta a cantar em inglês. Isso continua sendo verdade no terceiro álbum da moça, “Comme si de rien n’etait” (Como se Nada Fosse), mas ela volta a compor praticamente todas as músicas e a cantar em francês. A grande questão na verdade não é a língua, mas a intenção do último CD de Bruni. Em “Comme si de rien n’etait” ela deixa os grandes poetas de lado e se volta de novo para a música. Isso fica evidente por três razões.
A primeira é que o álbum soa diferente. Em “Ma Jeunesse” (Minha Juventude), a voz da cantora soa mais madura e os arranjos são mais elaborados. “La possibilite d’une île” (A Possibilidade de Uma Ilha) tem uma percussão que soa antiga nos ouvidos. “Ta Tienne” (Sua Tua) começa com um solo de flauta. “Je Suis Une Enfant” (Eu Sou uma Criança) tem a batida e o órgão comum das baladinhas românticas da Jovem Guarda – de alguma forma até lembra Diana (ou não).
O segundo motivo é que Bruni parece ter se dado conta de que refrões existem e faz uso deles, coisa que não aconteceu nos outros álbuns, que tinham letras lineares, como poesias mesmo. “You Belong To Me”, uma baladinha dos anos 50 que virou clássico na voz de Patti Page e que Bob Dylan regravou em 1994 para a trilha do filme “Assassinos Por Natureza”, na versão de Carla Bruni ficou sem o refrão, e faz pensar que de fato era algo sobre o que ela estava refletindo. E o terceiro motivo que mostra a volta da musicalidade é “Il Vecchio e Il Bambino”, a linda música instrumental que fecha o disco. Todas essas razões e a entrada tardia na carreira de cantora levam a crer que Bruni ainda está amadurecendo idéias nesse setor e desperta a curiosidade para o que ela vai produzir daqui para a frente.
Agora, se depois de tudo isso você continua achando que Carla Bruni é só a gostosa que pegou Sarkozy de jeito, pelo menos admire a moça pela sua postura altruísta. A renda arrecadada com a venda de “Comme si de rien n´etait” (238 mil de euros) foi doada para associações beneficentes que cuidam de crianças no Haiti. É legal quando quem tem grana sabe que não precisa de mais grana ainda. Mais legal ainda quando a pessoa dá a grana e não fica enchendo o saco dos outros, viu Bono?
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Roberta Avila assina o blog Pedrinhas Francesas
Leia também:
– “No Promisses”, de Carla Bruni, por Marcelo Costa (aqui)
– “Comme si de rien n’etait”, de Carla Bruni, por Marcelo Costa (aqui)
– O nome dela é… Carla Bruni, por Marcelo Costa (aqui)
– Baixe “Those Dancing Days Are Gone” com Carla Bruni e Lou Reed (aqui)
Modelo mimada, primeira dama de golpe do baú e cantora sub-Jane Birkin de 3.a, nada mais a dizer de alguém muito bonito que devia ficar de boca fechada.
Como é supremo, ouvir tal comenário de criatura que, com absoluta certeza, ouviu e leu mais que algumas músicas de um CD.
belo texto, e olha que meu preferido é o “No promises”, adoro aquele sotaque dela no inglês misturado aos arranjos Jack Johnson sem praia… 🙂
Jack Johnson sem praia… Tá aí uma boa definição! Talvez Jack Johnson do Sena… 😉
O comentario é totalmente sem nexo,Bruni ja nasceu rica,nao quer dar golpe do bau.
As musicas sao otimas,ela é culta,inteligente e claro,muio bonita!