Por Marcelo Costa
A certa altura de uma troca de cartas entre dois possíveis amantes, ela (aqui apresentada como Alya) pede: “Se quiser escrever, escreva, mas não sobre amor”. Ele, Victor, um escritor, aceita o desafio. E o resultado desta troca efusiva de cartas (reais e imaginárias) trouxe ao mundo o livro “Letters Not About Love”, que reúne a correspondência trocada (e inventada) entre o escritor russo Victor Shklovsky e a romancista franco-russa Elsa Triolet no início do século passado.
Shklovsky foi um dos principais teóricos do Formalismo Russo desenvolvendo o conceito de desfamiliarização em sua literatura. A técnica consiste em retirar um elemento de determinado contexto e fazer com que ele seja sentido a partir de sua falta. No caso da peça, o elemento a ser retirado é o amor, devido à citada proibição feita por Alya/Elsa. Apesar de aceitar a correspondência, a romancista proíbe que este lhe fale de amor. A partir daí, o amor estará presente em tudo, através de metáforas e alusões.
Victor aproveita que está proibido de falar de amor com Alya que amplifica o uso da metáfora abarcando em suas palavras sofridas não só a vileza da mulher que nega o seu amor verdadeiro e intenso, mas também a impossibilidade de voltar para sua pátria, a Rússia, a juventude e autoconfiança perdida, e a distância entre aquilo que ele (e nós) sonhava(mos) ser e, por fim, acabou (acabamos) nos tornando. Tudo está fora do lugar.
Nesta adaptação para o teatro de “Não Sobre Amor”, a Sutil Companhia buscou a simplicidade das peças de câmara, mais intimistas e aconchegantes. Quem deve ter tido trabalho para adaptar as idéias da peça em um caixote imaginário foi a cenógrafa Daniela Thomas, parceira da Companhia desde “Nostalgia” (2001). O resultado, porém, é nada menos que sublime. Assim que a peça começa, com as famosas projeções da Companhia, o cenário se torna um integrante importantíssimo da peça. E surpreende.
Assim como nas cartas de Shklovsky, tudo no palco está fora do lugar. A cama está armada na parede frontal. Disposta na parede direita, uma escravinha com máquina de escrever e cadeira. A janela está no teto. A porta está no alto da parede do lado direito. A lâmpada, no chão. É um impressionante caos visual que, amplificado pelas projeções (de texto e de imagens), fazem deste pequeno quarto amarelo um belíssimo ambiente para uma dolorida história de (des)amor, de solidão e de exílio.
Logo na primeira frase impressa na parede, uma constatação cruel: “Todas as palavras boas estão pálidas de exaustão. Flores, lua, olhos, lábios. Eu gostaria de escrever como se a literatura nunca tivesse existido. Eu não consigo; a ironia devora as palavras”. Se tivesse vivido em tempos de internet, Victor Shklovsky estaria ainda mais frustrado. Agora não só as boas palavras estão pálidas de exaustão, mas sim o dicionário todo e mais algumas novas. Banalização de adjetivos.
Ali pelo meio, Leonardo Medeiros (ótimo como Victor) se pega rindo quando confessa para Alya (Simone Spoladore também muito bem): “Estou escrevendo cartas para você e, ao mesmo tempo, estou escrevendo um livro. E o que está no livro e o que está na vida causou uma confusão incurável”. Desta confusão nasce uma belíssima peça de teatro que ainda abre espaço para citações de Maiakovski, Alexander Soljenitsin, Velimir Khliebnikov, Laurence Sterne, Paulo Leminski, entre muitos outros.
Em um dos momentos mais cruéis (e líricos) da peça, Alya (projetada na parede do quarto) responde a uma carta de seu apaixonado: “Pare de escrever o quanto, o quanto, o quanto, o quanto, o quanto você me ama, pois no terceiro quanto já estou pensando em outra coisa”. A noite cai. Para ele, “um estrangeiro é aquele cujo amor está em outro lugar”. Ela insiste que não quer ler sobre amor. Ele conta histórias de seu editor. É uma peça de amor – apesar do título – mas não só sobre amor. Basta olhar com cuidado.
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
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