“Tem muito tempo que eu não canto essa música. Alguns anos. Olha, faz tanto que eu… tenho certeza agora que a terapia está dando certo. Quer ver?”
E após essa fala – sobre uma deliciosa introdução mezzo jazzy marcada por uma linha de baixo matadora – Roberto Carlos, 65 anos, solta a voz – quase rindo:
“Eu sou um negro gato de arrepiar, essa minha vida é mesmo de amargar, só mesmo de um telhado aos outros desacato, eu sou um negro gato”.
Lá pelo meio da canção, o Rei diz ao público: “Agora é com vocês, sem medo”. E o público faz coro: “Eu sou um neeeeeegro gato”.
Bem, vamos ambientar essa história toda. Roberto Carlos assumiu publicamente em 2004 que tinha TOC, transtorno obsessivo compulsivo, e essa doença era responsável por algumas das famosas manias do Rei, como não falar algumas palavras de teor negativo (inferno, preto, negro e várias outras), não usar marrom e nem preto, e não gravar discos, lançar projetos especiais ou coisa que o valha no mês de agosto.
Todas as manias do cantor estão listadas no livro “Roberto Carlos em Detalhes”, de Paulo César Araújo, autor também do excelente “Eu Não Cachorro Não”. Em entrevista coletiva à imprensa, em dezembro, Roberto atacou o livro dizendo que seu conteúdo o desagradava muito, explicando que o livro era sensacionalista e estava recheado de “coisas que não são verdadeiras”.
A priori, acredito que qualquer biografia não autorizada deva ter por mérito desagradar o biografado. Não li, ainda, “Roberto Carlos em Detalhes”, mas acredito que seu conteúdo não deva ser esse fim de mundo que o Roberto falou. Bob Dylan questionou a biografia assinada por Howard Sounes. Neil Young concedeu entrevistas para um livro, e depois proibiu o biógrafo de revelar o conteúdo delas. Não é novidade um astro se revoltar quando o baú de sua vida é aberto ao público.
E aqui voltamos novamente ao especial de fim de ano apresentado por Roberto Carlos no último sábado (16/12). A cena descrita no começo deste texto já foi repetida algumas vezes nos shows recentes do cantor. Palavra por palavra. Mas foi a primeira vez que Roberto a apresentou na televisão, para todos os brasileiros verem. É uma passagem da história da música popular brasileira muito importante para passar despercebida, por isso essa coluna se fez necessária.
O cenário musical nacional é povoado por pessoas acima do bem e do mal. Artistas brasileiros do mainstream não cometem erros, não se equivocam. São seres intocáveis em um Olimpo que, vez ou outra, descem a Terra para alegrar a vida dos pobres mortais. Eles se julgam cultos demais, inteligentes demais, espertos demais, e usam todos estes adjetivos para manter uma distância segura do público, algo que não rasure o status de gênios da raça.
Uma grande bobagem, corroborada por uma imprensa que cede qualquer espaço por uma nota exclusiva, e por um público que parece querer ser eternamente enganado (para citar uma frase recorrente do sensacional “O Grande Truque”, filme recente de Christopher Nolan). Roberto Carlos, o maior astro de nossa combalida indústria musical, vai pela via contrária. Ele chora em frente as câmeras quando dedica uma música para sua ex-mulher, vitima de câncer. Ao final de “Insensatez”, cantada em espanhol, olha para a primeira fila como que se desculpando pela ousadia de interpretar um clássico do maestro Tom Jobim, no melhor estilo “eu fiz o que eu pude, viu”. E faz galhofa de sua própria condição de doente, como bem mostra a introdução de “Negro Gato”.
Na via contrária do showbizz nacional, Roberto Carlos mostra seus defeitos ao vivo – e a cores em tons azuis – e conquista por sua simplicidade que, claro, também pode ser marketing. Ele pode estar encenando tudo isso, mestre que é nesta arte menor chamada música pop. Roberto nasceu com a televisão brasileira, nos anos 60, e domina como ninguém não só seu público, como também o próprio veículo que o apresentou ao mundo. E mesmo que ele esteja jogando com sua sorte, não deixa de ser uma falsa humildade bem-vinda, que não precisa contaminar outros astros nacionais, mas talvez coloque um pouco de senso de realidade na cabeça de outros artistas.
Pessoalmente, acredito que ele seja sincero. Que ele sinta falta da mulher que perdeu, que a terapia está realmente surtindo efeitos, que ele goste mesmo de MC Leozinho, e que curta reunir seus amigos de fé, irmãos camarada, todo ano, e cantar o mesmo show quase igual ao do ano anterior. Pode ser inocência de minha parte, mas eu acredito nele. E torço para que, no ano que vem, ele faça esse mesmo show. E cante a música proibida: “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”.
Ps1: No geral, o especial do Rei neste ano foi o melhor dos últimos anos. Marisa Monte marcou presença e ambos cantaram juntos “Amor I Love You” (que funcionou muito bem ao vivo) e “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo”. O compadre Jorge Ben foi outro convidado, e Roberto deu muitos foras nas letras de “Que Maravilha” e “Taj Mahal”. Quase mico, na verdade, foi o dueto com MC Leozinho, no mega-hit “Se Ela Dança, Eu Danço”. Visivelmente emocionado, Leozinho chorou nas duas vezes que a música foi tocada para a gravação. Após ser avisado que a primeira não valeu, Roberto disse: “Tá bom, mas guarda essa aí porque a emoção foi verdadeira”. E a versão ficou legal…
Ps2: Uma das minhas metas para 2007: assistir a um show do Rei, ao vivo.
Ps3: Após as listas TOP 50 da Uncut e da NME (ambas publicadas nesta coluna nas semanas anteriores), agora é a vez da Rolling Stone norte-americana divulgar os seus 50 mais de 2006. E deu… Bob Dylan.
1. Modern Times – Bob Dylan
2. Stadium Arcadium – Red Hot Chili Peppers
3. Rather Ripped – Sonic Youth
4. Return to Cookie Mountain – TV On the Radio
5. Fishscale – Ghostface Killah
6. The Greatest – Cat Power
7. Hell Hath No Fury – Clipse
8. Boys and Girls in America – The Hold Steady
9. Blood Mountain – Mastodon
10. Orphans: Brawlers, Bawlers and Bastards – Tom Waits
11. Continuum – John Mayer
12. One Day It Will Please Us to Remember Even This – The New York Dolls
13. Pearl Jam – Pearl Jam
14. American V: A Hundred Highways – Johnny Cash
15. Wolfmother – Wolfmother
16. Food & Liquor – Lupe Fiasco
17. Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not – Arctic Monkeys
18. Game Theory – The Roots
19. Taking the Long Way – Dixie Chicks
20. The Black Parade – My Chemical Romance
21. Begin to Hope – Regina Spektor
22. Night Ripper – Girl Talk
23. The Crane Wife – The Decemberists
24. The Information – Beck
25. Blue Collar – Rhymefest
26. FutureSex/LoveSounds – Justin Timberlake
27. Pieces of the People We Love -The Rapture
28. Broken Boy Soldiers – The Raconteurs
29. We Shall Overcome: The Seeger Sessions – Bruce Springsteen
30. Robbers & Cowards – Cold War Kids
31. Like Father, Like Son – Birdman And Lil’ Wayne
32. Supernature – Goldfrapp
33. The Devil You Know – Todd Snider
34. The Eraser – Thom Yorke
35. Once Again – Joh Legend
36. I Am Not Afraid of You and I Will Beat Your Ass – Yo La Tengo
37. Alive and Kickin’ – Fats Domino
38. 10,000 Days – Tool
39. The Tragic Treasury – The Gothic Archies
40. Make History – Thunderbirds Are Now
41. Friendly Fire – Sean Lennon
42. Under the Skin – Listen Buckingham
43. Tropicalia: A Brazilian Revolution in Sound – Vários
44. Show Your Bones – Yeah Yeah Yeahs
45. Fox Confessor Brings the Flood – Neko Case
46. You Don’t Know Me: The Songs of Cindy Walker – Willie Nelson
47. Brightblack Morning Light – Brightblack Morning Light
48. Public Warning – Lady Sovereign
49. Pick a Bigger Weapon – The Coup
50. It’s Never Been Like That – Phoenix
Ps4: Já fechou a sua listinha de álbuns nacionais de 2006? Sem ouvir “Seres Verdes ao Redor”, novo do Supercordas que acabou de chegar às lojas? Bem, se eu fosse você, dava uma olhada no site oficial da banda. Eles colocaram o álbum inteiro em streamming para audição. E é um dos grandes discos da música nacional em 2006… Confere aqui/.
Ps5: Dois títulos do selo Senhor F também merecem destaque: “O Grande Passeio do StereScope”, dos paraenses da Stereoscope, e “Superguidis”, dos Superguidis. Conheça mais da gravadora e baixe músicas aqui. Abaixo, uma de cada banda, naquele esquema “botão direito do mouse, salvar como”.
. Ela Acorda Cedo – Stereoscope
. Malevosidade – Superguidis
Ps6: Enquanto Daniela Mercury e U2 lideram a votação aberta do iG Música (vote aqui), esta coluna já recebeu 31 votos de jornalistas, músicos e blogueiros para o Top Seven S&Y. A situação está sossegada com líderes abrindo votos e votos de vantagem nas categorias melhor Música Internacional, Disco Internacional, Show Internacional, Site e Blog. Três discos seguem quase empatados na categoria Disco Nacional. Filme e show nacional também está bem embolado. O resultado final será publicado nesta coluna, no jornal Gazeta de Limeira, e no site Scream & Yell em janeiro.
Ps7: Música da semana: Jingle Bells, com Sinatra. :o)
Parabéns ! A reportagem está
excelente.
Eu queria aquela caixa com cds dos anos 60 de natal…
Parabéns, texto excelente.Gostei muito também do texto da SNOOZE/PELVS. Acompanho seus textos desde o início da década 90, sou velho(sic) leito da SY.Enfim, parabéns pelos serviços.
Como aceitar Roberto Carlos como REI??? Que titulo dar a Chico Buarque, DEUS???
Na ditadura Roberto se divertia com a copia barata do Rock americano..e a decadas vem fazendo musicas para, mulher de oculos, gordinha, Jesus, baleia, cachorro, caminhoneiro, sertanejos,,,etc..que loucura, igaulmente dizer da Xuxa, alguem se lembra do filme AMOR ESTRANHO AMOR ??
Pq o nome do seu blog é escrito errado?
Como você sabe que está velho: Roberto Carlos passa a parecer relevante.
Esse video do Roberto com o MC Leozinho é muito bacana mesmo. Representativo demais. A princípio, dá a impressão pelo menos, que o público acha que o Rei está brincando com a fama de letras esculachadas do funk, depois ve-se que ele gostou mesmo da letra…No fim, estão todas as patys de classe media alta rebolando até o chão 😀 E no final todo mundo emocionado com o garoto pobre que realizou o sonho de estar com RC no palco.