texto de Renan Guerra
Durante anos e anos o espanhol Pedro Almodóvar ensaiou uma aproximação com o cinema hollywoodiano. Foram inúmeros convites recusados e outros tantos projetos que pareciam ir pra frente, mas dos quais Almodóvar pulou fora. Em meio às limitações da pandemia, o diretor filmou seu primeiro trabalho falado em inglês, “A Voz Humana” (2021), adaptação de um texto de Jean Genet protagonizado por Tilda Swinton. Na sequência fez seu segundo curta em língua inglesa, “Estranha Forma de Vida” (2023), e agora chega, enfim, ao primeiro longa em inglês: “O Quarto ao Lado” (2024) é uma adaptação do livro “O Que Você Está Enfrentando”, de Sigrid Nunez, e conta a história de duas amigas, a jornalista de guerra Martha (Tilda Swinton) e a escritora Ingrid (Julianne Moore), que se reencontram em um momento delicado: Martha está enfrentando um câncer e decide que é hora de encerrar sua vida e, para isso, pede o auxílio de Ingrid para que ela esteja no quarto ao lado quando ela decidir partir.
Antes de falarmos sobre outros aspectos do filme, precisamos nos livrar do elefante branco na sala: o idioma. A forma como os personagens falam o espanhol e o ritmo de seus diálogos sempre foi uma parte essencial do cinema de Pedro Almodóvar, algo que o próprio diretor confirma. Na série de entrevistas com Frederic Strauss, publicadas no livro “Conversas com Almodóvar” (2008), o cineasta já falava sobre a sua dificuldade em ver seus filmes dublados e o quanto isso diminuía a intensidade de suas obras. Em “O Quarto ao Lado”, o inglês traz outro tom e outro ritmo ao filme, bem mais sóbrio e que pode soar, de início, um tanto quanto estranho aos ouvidos acostumados com o fluxo almodovariano. Ainda assim, esse outro tom trazido pela língua também vai ao encontro do próprio tom do filme, que assume certa austeridade – algo que pode advir da própria natureza da história original de Nunez.
Dito isso, já fica claro que esse filme tem suas diferenças e apresenta também um diretor que está tateando o novo em sua primeira incursão por outro idioma e outros cenários. Nova York é um ponto importante do filme, mesmo assim Almodóvar ainda enche os cenários internos de suas cores e de seu universo temático. Suas meticulosas apresentações de cenários, seus closes em detalhes referenciais e suas cores bem-marcadas seguem um padrão bem usual nessa fase de maturidade do diretor – em diálogo com aquilo que já foi apresentado em “Julieta” (2016), “Mães Paralelas” (2021) e “Dor e Glória” (2019), este último que ainda segue como o mais rico e interessante dessa fase atual. Todo esse invólucro serve para que Julianne Moore e Tilda Swinton façam seu jogo de cena em um filme que é basicamente um amplo diálogo entre as duas personagens.
Martha (Swinton) e Ingrid (Moore) ficaram muitos anos afastadas e acabam se reencontrando nessa situação bastante inusual. É nesse cenário que elas reforçam seus laços de amizade, repensam as possibilidades de afeto e de cuidado com o envelhecimento e reavaliam suas próprias relações com a vida e com a morte – sendo este último o eixo central do filme. É fácil cair na falácia de que Almodóvar tem refletido mais sobre a morte e a finitude em função de seu próprio envelhecimento (ele está com 75 anos), porém a morte é um dos temas clássicos de seu cinema e que aparece a partir de diferentes perspectivas em títulos como “Matador” (1986), “Volver” (2006), “Abraços Partidos” (2009) e “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999). Obviamente, essa finitude ganha outros olhares neste momento da terceira idade do cineasta, acompanhada da solidão. Seus personagens parecem cada vez mais sozinhos: solteiros, separados, sem filhos ou distantes dos entes, com questões ainda em aberto.
A personagem de Tilda Swinton traz em sua bagagem uma história complexa e cheia de dificuldades com sua filha – um tema clássico do cinema do diretor espanhol, vide “De Salto Alto” (1991), “Volver” (2006) e “Julieta” (2016). Esse passado da personagem Martha é bastante explorado e entendemos de forma mais ampla a sua história e o que a leva a chegar até aquele momento – para construir essas memórias, Almodóvar opta por alguns flashbacks que nem sempre funcionam de forma totalmente eficaz, isso talvez seja um dos pontos mais fracos do filme. Em contraponto, pouco conhecemos do passado de Ingrid, a personagem de Julianne Moore. Sabemos que ela tem medo da morte, que ela é uma escritora e que ela e Martha viveram boas histórias na Nova York dos anos 1980/1990. Com isso, Julianne Moore tem conquistar o espectador em poucos detalhes; e é nessa escassez que a atriz se sobressai, mostrando dúvidas, medos e complexidades que nem sempre são ditas, mas que pairam no ar, que ficam no seu olhar e que fluem para que o público possa também criar suas próprias reflexões a partir dali.
A personagem Martha, por sua vez, já nos leva por caminhos mais concretos e nos propõe duas discussões interessantíssimas. A primeira, e mais direta dentro da trama, é a da eutanásia e da nossa liberdade de entender qual é o fim de nossa vida. A possibilidade de uma morte assistida não é permitida nem nos Estados Unidos e nem no Brasil, porém se tornou uma possibilidade na Espanha nos últimos anos, seguindo uma tendência de outros países da Europa, como a Suíça. Foi neste último país que o filósofo e poeta Antonio Cicero faleceu em um processo de morte assistida, em função do avanço do mal de Alzheimer. Cicero morreu no dia anterior à estreia do filme de Almodóvar no Brasil e, para qualquer pessoa que leu a carta de despedida de Cicero, fica impossível não correlacionar as histórias.
A segunda discussão apresentada por Martha gira em torno do próprio enfrentamento ao câncer – e outras doenças nesse mesmo espectro – e como esse diagnóstico coloca o paciente em um campo de batalha em que ele precisa lutar e manter uma postura que é exaustiva física e emocionalmente. Essas questões dialogam diretamente com dois ensaios de Susan Sontag, “Doença como metáfora / Aids e suas metáforas”, textos em que ela debate sobre a linguística bélica relacionada ao enfrentamento de certas doenças e como isso deve ser modificado para o bem-estar de pacientes e familiares. Trívia aqui: Sontag escreveu o primeiro ensaio inspirado por sua própria relação com um câncer nos anos 1970. Se recuperando de uma cirurgia, Sontag contratou Sigrid Nunez para auxiliá-la em algumas questões profissionais, e Nunez acabou se envolvendo romanticamente com o filho de Sontag mudando-se para o apartamento deles em Nova York, e passando uma temporada ao lado da filósofa, então provavelmente tudo isso está bastante interligado.
“O Quarto ao Lado” não é, necessariamente, um filme pra entrar no top melhores filmes de Pedro Almodóvar, mas ainda assim é uma obra repleta de camadas. É mais sóbrio e mais contido, com um núcleo pequeno de personagens, que rende outras possibilidades interpretativas. Podemos pensar no uso da trilha sonora, que é bem mais mínimo do que na maioria dos filmes do diretor; ou mesmo no personagem interessantíssimo de John Turturro, que em suas poucas aparições já causa um impacto. Ainda podemos ir também pelo caminho de pensar nas referências cinematográficas que o diretor apresenta aqui e que interliga o filme com outros diretores e pensadores. E tudo isso reforça que o diretor segue sendo um dos mais importantes cineastas de nosso tempo, um artista que segue refletindo as nossas mudanças e as nossas dúvidas de futuro. Por isso mesmo sua premiação com o Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano foi justíssima, pois celebra uma carreira riquíssima e um filme extremamente vivo e múltiplo.
Dito tudo isso, “O Quarto ao Lado” pode desapontar aqueles que ainda seguem buscando os antigos Almodóvars, mas ele segue um caminho que é muito fiel a si mesmo e isso não seria diferente seja em qual idioma fosse. Ainda assim, não deixa de ser bonito vê-lo navegar todas essas questões e universos ao lado de duas das maiores atrizes da contemporaneidade, reverberando de forma potente o hoje.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.