texto por Gabriel Pinheiro
Amora é uma fruta pequenina, que pode ser doce ou de uma acidez que trava o maxilar ao tocar a língua. Quem já comeu direto do pé, provavelmente guarda na memória a experiência, não só pelo sabor, mas pela cor do sumo que escorre pelos dedos. Os borrões arroxeados nas mãos e, quem sabe, na roupa. É uma fruta que deixa marcas. Amora também é uma palavra inventada. É o feminino para o amor. E o amor – um amor múltiplo, tendo como elo o fato de ser vivido por e entre mulheres – transborda pelas páginas de “Amora”, volume de contos de Natália Borges Polesso originalmente lançado em 2015, que ganha nova e caprichada edição pela Dublinense, com um belo projeto gráfico de Luisa Zardo, três contos inéditos, e depoimentos das escritoras Cidinha da Silva e Conceição Evaristo, além de posfácios de Milena Britto e Luiz Mauricio Azevedo.
“Amora, vamos ao cinema hoje a noite?”. É assim que as amigas Natália se chamam, ela nos diz no prefácio (que ainda traz o contexto da produção e trajetória da obra) dessa nova edição do livro. “Depois eu descobri que isso era comum. Amigas e namoradas se chamam de amora”. A partir dessa palavra inventada, Polesso constrói aqui um itinerário íntimo pelo amor entre mulheres, nas suas mais diversas formas e possibilidades. “Amora é pura ficção. Puríssima! Um trabalho cuidadoso de elaboração escrita (…). Amora também sou eu. Amora é a minha vida, é a vida das minhas irmãs das amigas, sapatas e bissexuais, das minhas amigas entediadas, das impossibilitadas de assumir, das enrustidas, das minhas amoras livres, das velhas amadas, das crianças viadas”.
Natália divide as narrativas em dois conjuntos, “Grandes e sumarentas” e “Pequenas e ácidas”. Na primeira e caudalosa parte do livro, estão os textos mais narrativos, com um dedicado desenvolvimento de personagens. Já no segundo conjunto, Polesso nos entrega textos breves, marcados pelo experimentalismo e por uma escrita poética. As primeiras vezes, seja um primeiro amor, a primeira experiência sexual ou a primeira desilusão amorosa; as delicadas relações familiares, o dito e, sobretudo, o não-dito; as amarras de uma heteronormatividade que ainda se impõe como regra e as tentativas de rompimento com esse padrão; os espelhamentos possíveis entre diferentes gerações de mulheres; o amor puro e simples acontecendo, livre e espontaneamente. São muitas as formas do amor e do desejo lésbico que Natália Borges Polesso apresenta neste conjunto de contos.
Na narrativa que dá título ao volume, uma enxadrista mirim tem seu primeiro amor platônico e a primeira desilusão amorosa com um garoto logo nas primeira páginas. Ela mal imagina que um segundo amor se avizinhava, mas por uma outra garota. “Amora sabia o que era aquilo, mas não entendeu como podia ser”. Noutro texto, aos dezessete, a protagonista ainda é virgem. Ela se cansou de mentir para as colegas sobre sua primeira vez. “Já não lembrava qual era a verdade da mentira que tinha contado e agora adicionava fatos aleatórios”. Quando, enfim, o dia tão aguardado chega, ela percebe que todo o antes, o breve romance com aquele garoto que conhecera num bar onde matava aula, fora melhor do que o ato em si. Mas essa não será a sua única primeira vez. “Nenhuma das duas teve tempo de tirar o sutiã. Foi tudo desajeitado, como são geralmente as primeiras vezes. Cheias de dentes que batem e movimentos de desencaixe”. O peso do tempo se apresenta em um sensível conto sobre um casal de idosas e os rituais diários que as acompanham ao longo dos anos: o cheiro do café sendo passado e a melodia das gavetas abertas numa manhã de domingo. “Nos olhamos para tentar entender como foi que chegamos ali. Nunca entendemos. Sempre entendemos. Somos muito quietas, sempre fomos do silêncio.”
O que mais surpreende em “Amora” é o quanto o cotidiano é protagonista das narrativas. Natália se interessa pela vida acontecendo pura e simplesmente. Os pequenos gestos, os sorrisos e as lágrimas – de alegria, de choro, de gozo – compartilhadas entre quatro paredes. Cada conto é como uma pequena janela para o íntimo, para o pessoal. Ter esse vislumbre de relacionamentos homoafetivos como algo cotidiano segue tendo uma força poética e política tremenda quase oito anos após o lançamento da primeira edição. Ainda que as narrativas orbitem dentro de um grupo específico, Polesso nos mostra como ele é múltiplo. Cada personagem aqui é um mundo próprio. Neste caleidoscópio de experiências, cabe a infância, a adolescência e a descoberta do desejo, cabe a vida adulta e a velhice, com suas marcas e o peso do tempo.
“Amora” traz um olhar diverso para as inúmeras possibilidades da existência e do amor entre mulheres. Apesar do amargor do mundo, há dulçor (e um pouco de acidez, para equilibrar) nas amoras de Natália Borges Polesso. Assim como as pequenas frutas, suas breves narrativas nos deixam marcas. Não arroxeadas nas mãos, nos lábios e na roupa, mas, ainda assim, marcas. Segue atual e urgente em sua sensibilidade singular.
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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.