Cinema: “Megalópolis” confabula possibilidades de futuro ao mesmo tempo em que questiona e debocha do presente

texto de Renan Guerra

Francis Ford Coppola sempre foi um diretor de exageros, sua grandiosidade nos presenteou com algumas das obras mais emblemáticas da história do cinema e também nos renderam bastidores tão instigantes quanto – o documentário “Francis Ford Coppola – O Apocalipse de Um Cineasta” (1991), de Fax Bahr, Eleanor Coppola e George Hickenlooper, por exemplo, é tão rico e impressionante quanto “Apocalypse Now” (1979), uma das várias obras-primas do diretor. “Megalópolis” (2024), seu novo esforço cinematográfico, talvez seja seu gran finale, sua maior ousadia, tanto em investimento quanto em liberdade. O filme era um projeto sonhado pelo diretor desde o início dos anos 1980 e se tornou uma espécie de obsessão que ele manteve durante todos esses anos, tentando conseguir financiamento para colocar em prática tudo o que ele idealizou. Para relembrar aqui: Coppola tem um histórico de não ser muito preocupado com as finanças e várias vezes quase foi à falência apenas para colocar seus projetos em prática. E com o novo filme não foi diferente: durante muitos anos se ouviu histórias, boatos e teorias sobre o filme, era daquelas coisas que todo fã de cinema ouviu falar e que parecia quase uma lenda que jamais sairia do papel. “Megalópolis” saiu e ganhou um lançamento pomposo no Brasil, com a presença do próprio diretor em agenda cheia e concorrida por São Paulo – ele foi do encerramento da 48ª Mostra de São Paulo aos flagras do cineasta entrando em churrascarias pela cidade.

Mas a questão que se repete é: o filme vale todo seu hype e sua expectativa? E aí já deixamos claro que não temos essa resposta, pois isso dependerá essencialmente da relação de cada espectador com as possibilidades dessa obra. “Megalópolis” conta a história do arquiteto César (Adam Driver), um artista genial e megalômano, que busca levar a cidade de Nova Roma para um futuro utópico e idealista. Neste caminho, ele encontra diferentes personagens, como o prefeito Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito), um defensor ferrenho do status quo, e a família do banqueiro Hamilto Crassus III (Jon Voight), com seu sobrinho Clodio Pulcher (Shia LaBeouf), que trava uma espécie de guerra pessoal contra César. Paralelamente a essa confusão política, ainda acompanhamos o envolvimento romântico de Julia Cicero (Nathalie Emmanuel) com César, inserindo aí o contexto de que ela é a filha do prefeito e que César ainda é assombrado pelos fantasmas de um antigo amor. Enfim, um ponto de partida complexo, cheio de plots que vão e voltam dentro do filme.

Desenhada essa trama, já adiantamos que você não deve se prender tanto ao desenrolar e ao alinhavar desses fatos, pois a fluidez de roteiro não é o forte de “Megalópolis”. Como um filme de exageros, essa quantidade de tramas que se abrem e que se entrelaçam acabam criando uma colcha de retalhos nem sempre bem amarrada, em que histórias ganham melhor desenvolvimento e outras ganham fechamentos rasos e pouco críveis. A proposta do roteiro parece pedir para que o espectador não se apegue às possibilidades de verossimilhança no filme, pois Coppola deseja nos levar por esse universo de utopia e exagero. É bastante clichê e repetitivo ficar falando em megalomania de um filme chamado “Megalópolis”, mas não temos muito como fugir disso, esse é realmente um filme exacerbado, de um diretor que concatena ideias e possibilidades puxando o espectador para uma viagem por seu universo particular. E esse universo criado por Coppola é quase idílico, sua utopia soa quase pueril frente à nossa realidade atual de destruição ambiental e desigualdade social. Cabe ao espectador se deixar levar por esse universo ou não. Na sessão que acompanhamos – fechada para convidados que ansiavam por ver o diretor – o que se viu foi uma ampla movimentação de pessoas abandonando a sala a cada novo absurdo do filme.

Para quem se propõe a essa viagem ao lado do diretor, “Megalópolis” se torna um filme extremamente divertido, que possibilita um outro olhar sobre a criação cinematográfica e que nos propõe uma ampla suspensão da realidade – em tempos de filmes que buscam a constante verossimilhança, é alentador ver uma obra que se joga de cabeça no absurdo possibilitado pela ficção. Para construir esse universo, a produção usa e abusa de efeitos especiais que criam uma Nova Roma completamente estilizada e plastificada, que, basicamente, é uma Nova York distópica que emula perspectivas e ideais da antiga Roma, indo desde a celebração de mulheres virginais à violência como arte em seu próprio Coliseu. Aliás, um dos momentos mais divertidos do filme é quando, em um evento neste novo Coliseu, uma estrela pop da cidade passa por uma virada em sua narrativa e ganha um rebranding mercadológico, com claras referências à Taylor Swift – sério, essa passagem é comédia pura! A partir do escárnio, da ironia e da opulência, Coppola observa de diferentes modos a nossa relação com a mídia, com as celebridades instantâneas e com o uso exacerbado das telas – e o constante impacto da publicidade nisso tudo.

Para dar vida a esse universo, o diretor reuniu uma lista imensa de atores grandiosos que nem cabe listarmos, mas que vale a sua atenção, pois reúne alguns dos nomes mais importantes do cinema norte-americano da segunda metade do século XX, alguns dos mais instigantes nomes da atualidade e, claro, como não podia faltar, alguns nominhos vindos direto do clã Coppola – qualquer iniciado no universo cinematográfico do diretor sabe que ele sempre coloca seus parentes para algum trabalhinho freela em seus filmes. Com uma direção de atores que caminha para a teatralidade, é natural que alguns nomes se destaquem e outros se percam nesse tom esquisito do longa. Aubrey Plaza, por exemplo, deita e rola com sua personagem Wow Platinum, uma “jornalista” com ares de influencer que se mostra basicamente uma alpinista social. É da atriz alguns dos momentos mais interessantes e instigantes do filme, pois ela consegue navegar entre a piada kitsch e a potencialidade épica, indo de algo que remete à Michelle Pfeiffer em “Scarface” (Brian de Palma, 1983) até alguma personagem em surto de John Waters. Em seu entorno, brilham também o controverso Shia LaBeouf, que entrega aqui uma atuação bastante alucinada e que dialoga com sua figura pública difusa; e o veterano Jon Voight, que enche de nuances o absurdo personagem de seu banqueiro bilionário e à beira da morte. Adam Driver e Nathalie Emmanuel, nossos protagonistas, até conseguem vender seu casal romântico à la Romeu e Julieta, com suas famílias em guerra, porém não chegam a encantar, ainda mais considerando que os dois trazem na bagagem outras atuações bem mais interessantes e inspiradas.

Nessa festa exorbitante, o que se constrói é uma fábula de um diretor que é apaixonado pela arte, pelas pessoas e que, de forma sincera, ainda consegue sonhar com um futuro diferente. Em uma antiga entrevista de Pedro Almodóvar, registrada no livro “Conversas com Almodóvar”, de Frédéric Strauss, o diretor falava que não ousaria entrar em falência e nem levar alguém à falência por um filme, mas que ainda assim admirava projetos completamente megalomaníacos e extremamente pessoais de diretores que levavam sua arte ao máximo e, para isso, ele cita diretamente “O Fundo do Coração” (1981), mais um desses filmes ousados e divisivos de Coppola – que faliu seu estúdio. Almodóvar classifica o filme como “um exercício de estilo que me fascina”. E essa definição do diretor espanhol cabe novamente aqui em “Megalópolis”: este é um filme de estilo único, um exercício que propõe ousadia na tela. Em tempos de uma Hollywood dominada por franquias e blockbusters que se repetem em nostalgia, é interessante observar como aquela mesma geração lá dos anos 1970 ainda segue a chacoalhar esse universo, produzindo filmes que causam incômodos, que geram debates e que movimentam essas engrenagens – para o bem ou para mal – em direção à algo pelo menos diferente.

No final das contas, “Megalópolis” pode ser um filme divertidíssimo para quem se abre a isso – e esse foi o nosso caso por aqui –, assim como pode ser enfadonho e confuso para quem não se joga no absurdo. Nossa dica é que você vá de braços abertos e se deixe levar pela possibilidade de se divertir em completa desconexão do real, em uma aventura que confabula possibilidades de futuro ao mesmo tempo em que questiona e debocha do presente.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava

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