Três livros: “Neca – Romance em Bajubá”, “Pequenas Coisas Como Estas”, “Morte em Pleno Verão”

textos de Gabriel Pinheiro

“Neca – Romance em bajubá”, de Amara Moira (Companhia das Letras)
“Passada! O ocó, cê acredita que ele pediu pra eu nenar na neca dele?”. Essa frase cifrada abre o primeiro romance de Amara Moira, “Neca – Romance em bajubá”. Cifrada em partes. Talvez você já tenha ouvido algum destes termos — ocó, nenar, neca ou, ainda, picumã, odara — que não fazem parte da norma culta portuguesa. É o bajubá – ou pajubá, linguagem criada pela comunidade LGBTQIAPN+ entre os anos 1960 e 1970, em plena ditadura militar, como forma de proteção e resistência. Se comunicar de maneira cifrada era uma forma de sobreviver nas ruas tomadas pelo medo e pela violência aos corpos e existências dissidentes. Entrelaçando passado e presente, a narradora travesti de “Neca” compartilha com sua interlocutora anos mais nova — a própria Amara — sua experiência de vida, da juventude no colegial, onde a aula de literatura era uma espécie de porto seguro, até o mergulho na prostituição, no Brasil e na Europa. A partir das memórias das aulas e do professor de literatura, ela vai compartilhando inúmeros bafos, babados de autores e obras do nosso cânone literário, redescobrindo sentidos e mensagens cifradas tanto em seus textos quanto em suas biografias. “Esse romantismo, ai. Já sabe quem é, né? Rá, como cê não adivinhou ainda! Tá, uma pista, sobrenome da mona é Andrade. Opa, em pessoa. Passada que você, logo você não sabia a prostiputigaliranha que essa senhora era… a musa dava bandeira pencas!”. “Neca” é inteiramente escrito na língua das bichas, numa espécie de fluxo de consciência inquietante de uma personagem que tem muito a dizer, não só para a sua interlocutora, mas para o leitor. “Bicha, às vezes cê faz umas caras. E ‘bicha’, não é que eu tô te xoxando, não, viu? É pajubá, a língua das bicha, aqui é tudo travesti. Só ficar aqui por um tempo tempo e cê já vai catando”. Numa escrita que é puro movimento – é dança, é som, é música – Amara Moira mergulha no pajubá para a criação literária, reinventando – tanto a língua, quanto a literatura. Entre o explícito e o oculto, este breve romance não joga suas cartas de antemão. O bajubá aqui é também um jogo de sentidos e de sensações. Quanto mais avançamos na leitura, mais vamos catando seus significados ocultos.


“Pequenas coisas como estas”, de Claire Keegan (Editora Relicário)
“Pequenas coisas como estas”, de Claire Keegan, se interessa por aquilo que parece menor. A repetição do cotidiano de um homem comum numa pequena cidade na Irlanda. A paisagem natalina tomada pelo branco ofuscante da neve e pelas mesmas pessoas encontradas diariamente. No trabalho e em casa, as relações seguem aqueles protocolos pouco a pouco sedimentados pela rotina. Sabe quando nada parece mudar… até que algo mude? “E aonde você quer chegar pensando? – disse ela. – Ficar pensando só deixa a gente para baixo (…) – Se quiser subir na vida, há coisas que deve ignorar para poder seguir em frente”. No encontro inesperado e perturbador do protagonista com uma jovem interna de um convento no topo da colina da cidade – um convento que sempre esteve ali, sempre fora parte da paisagem, mas talvez, até aqui, nunca tinha sido enxergado pelo homem – coloca o personagem numa posição de desconforto e, quem sabe, ação em resposta à inação que parecia imposta pela rotina de uma vida comum. “Quando ele conseguiu tirá-la de lá e viu o que estava diante dele (…) a parte ordinária que havia nele desejou nunca ter chegado perto daquele lugar”. Apesar de sucinto, o texto de Claire Keegan lida com o dito e com o não-dito de maneira primorosa. É também pelas entrelinhas que construímos uma história que lida com o banal e o prosaico em paralelo ao mistério e ao suspense, revelando pouco – não mais do que o necessário – e deixando para o leitor um papel ativo na construção de sentido. Um pequeno livro gigante e extraordinário. “Por que as coisas que estavam mais próximas eram com tanta frequência as mais difíceis de ver?”


“Morte em pleno verão”, de Yukio Mishima (Companhia das Letras)
O conto que dá nome ao livro de Yukio Mishima, “Morte em pleno verão”, abre o volume de maneira impactante. Uma mãe perde dois de seus filhos, junto da tia destes, irmã de seu marido, para o mar. A morte passa, então, a ser uma presença naquele núcleo familiar reduzido a três pessoas: mãe, pai e um filho único. De uma sensibilidade singular, o breve texto é uma reflexão sobre o luto e a perda e a maneira como essa experiência é tanto particular, quanto compartilhada, num complexo processo permeado por diferentes fases, do choque inicial à reconstrução de si. Na sequência de contos de “Morte em pleno verão”, Yukio Mishima direciona seu olhar tanto para o Japão tradicional quanto para o Japão moderno, numa dedicada construção tanto da sociedade japonesa quanto de seus indivíduos. Da cultura das gueixas às representações dos teatros nô e kabuki, dos cidadãos comuns aos membros do império. Neste volume de textos, observamos um especial interesse do escritor pelo teatro, pela arte da representação. Não seria a representação uma arte praticada para além dos palcos teatrais? Não representamos papéis no nosso próprio cotidiano? Em um dos textos, escrito como uma peça teatral nô em um ato, Mishima olha para o amor e a morte e suas intrínsecas relações. Em outro, o escritor japonês mergulha na tradição do teatro kabuki para uma reflexão entre o feminino, o masculino e a transsexualidade. “Morte em pleno verão” ainda conta com um dos melhores contos que já tive a oportunidade de ler, “Patriotismo”. A construção do texto aqui é brilhante, num crescente que, pouco a pouco, nos mergulha num desfecho que, mesmo inevitável, nos deixa em suspensão, refletindo sobre as relações entre a morte, o êxtase e a ideologia. O protagonista de “Patriotismo” é um soldado japonês que encontra a morte pelo seppuku, uma forma de suicídio ritual datada do japão feudal, praticada, especialmente, por samurais. Yukio Mishima cometeria o seppuku uma década após a escrita do texto, que ganha uma camada autobiográfica premonitoriamente assombrosa. “Ah, então é isso que se sente quando se executa o seppuku, pensou. Era uma sensação de caos, como se o céu tivesse desabado sobre a sua cabeça e o mundo se soltasse de seu eixo.” Figura controversa, Yukio Mishima é um observador da natureza humana como poucos — talvez por olhar de maneira tão profunda para os seus próprios demônios. “Morte em pleno verão” é um volume de contos que beira a excelência.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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