texto por Nelson Oliveira
fotos de Rafael Passos
Por certo traço colonial, a antiquada ideia de que “Sergipe é o quintal da Bahia” ainda reside na memória de alguns baianos que seguem presos ao passado, mais especificamente à época em que o território sergipano não era independente – ganhou sua autonomia no início do século XIX. Bem, essa convicção pouco republicana foi refutada pela enésima vez no último final de semana, durante a oitava edição do Radioca, em Salvador. Nos dias 2 e 3 de novembro, Anne Carol e Cidade Dormitório, ambos com raízes na região metropolitana de Aracaju, foram os destaques do festival, que ainda contou com apresentações empolgantes de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo (SP) e do trio formado por Giovani Cidreira, Jadsa e Josyara (BA).
Neste ano, o Radioca, que é reconhecido por transitar por Salvador, voltou a uma zona mais central da cidade. Após duas edições realizadas na Fábrica Cultural, na Ribeira, o festival tomou o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), um dos mais tradicionais espaços culturais soteropolitanos – conhecido pelo pôr-do-sol às margens da Baía de Todos os Santos e pela imponência do complexo do Solar do Unhão, restaurado na década de 1960 pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, que se destaca na paradisíaca e peculiar orla da Gamboa de Baixo.
Pelo bonito palco montado ao lado do solar, passaram quatro atrações em cada dia. “Dependente de música”, o festival é reconhecido por uma curadoria que foge do óbvio. Dessa vez, o jornalista e DJ Luciano Matos, os músicos Ronei Jorge e Robertinho Barreto (BaianaSystem) e a produtora Carol Morena, que também assina a coordenação geral do evento, fizeram esse movimento ao olharem para bem perto – mais exatamente, para o vizinho. Afinal, Sergipe, apesar de muitas vezes deixado de lado pelos fãs de música da capital baiana, tem um histórico de produção de trabalhos interessantes, que vai de Snooze, Naurêa e The Baggios (que tocou na quarta edição do Radioca) a Alex Sant’Anna, Marcelle e Tori – só para citar alguns.
Além de ter apontado os holofotes para Sergipe ao convidar Anne Carol e Cidade Dormitório, a curadoria também foi a São Paulo buscar Bebé e Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo para apresentarem seus trabalhos, que vem sendo elogiados pela crítica há alguns anos, em shows completos pela primeira vez em Salvador. Fecharam o line-up o experiente BNegão (RJ), que está prestes a lançar um novo álbum, novidades da música baiana, como Fogo Pagô e Vírus, e uma jam especial dos amigos Giovani Cidreira, Jadsa e Josyara, já consolidados entre os grandes nomes de sua geração na Bahia.
Antes de o sol cair no feriado de Finados, o festival teve seu início com a Fogo Pagô, de Feira de Santana, maior cidade do interior da Bahia. Fazendo apenas seu segundo show em Salvador, o grupo feirense apresentou faixas de seu primeiro álbum, “O Abre Caminhos” (2021), em que evoca bastante frugalidade ao transitar por baiões, sambas de roda e cantigas populares. Apesar de ter se mostrado hesitante no início da performance, com intervalos longos entre as canções, a banda foi crescendo com o passar do tempo e passou a se conectar com o público – como na animada “Boca de Peixe”, que encerrou sua participação.
A segunda atração do Radioca seria um dos destaques do fim de semana: o bom indie com doses de psicodelia da Cidade Dormitório, banda com raízes em São Cristóvão, município da região metropolitana de Aracaju que serve de moradia e dormitório para trabalhadores da capital sergipana, além de sediar o FASC – Festival de Artes de São Cristóvão, um dos mais pujantes do Nordeste. Aliás, tanto a banda quanto o festival mereciam ser observados com mais carinho pelo público de outros estados.
Basta parar para escutar o trabalho do grupo, que inclui o EP “Esperando o Pior” (2017) e os álbuns “Fraternidade-Terror” (2019) e “RUÍNA ou O começo me distrai” (2022) para começar a se questionar por que ela tem menos cartaz com a crítica do que alguns nomes sulistas e sudestinos que transitam por subgêneros como indie rock, shoegaze e rock psicodélico. No show, a sensação se intensifica.
Com descontração, ironia e faixas de títulos extensos – a exemplo de “Agora Meu Coração É Um Lixeiro Azul Vazio Escroto” e “Relacionamentos são Extremamente Complicados e Meu Cachorro Sabe Disso” –, a Cidade Dormitório animou a “caravana de Aracaju” presente no MAM, conquistou quem não a conhecia e honrou a tradição roqueira sergipana, que já produziu nomes como Snooze, Plástico Lunar, The Baggios e Julico, frontman da última das citadas. Para além das canções mencionadas, se destacaram ainda “Aribé I” e “Salvador”, gravada em parceria com o grupo soteropolitano Tangolo Mangos, que subiu ao palco para tocá-la juntamente aos amigos, mostrando as qualidades com as quais tem conseguido renovar a cena indie na capital baiana.
Viria em seguida, na apresentação de Bebé (SP), um outro exemplo da cada vez mais habitual dissonância entre a avaliação da crítica, o trabalho de produção em estúdio e a performance ao vivo. Indicada a diversos prêmios por seus dois álbuns (o que leva o seu próprio nome, de 2021, e “SALVE-SE!, de 2024), ela levou uma pesada trupe de apoio para o Radioca: foi acompanhada pela DJ Lys Ventura e pelas backing vocals Hanifah e Alt Niss. Entretanto, apesar do potencial de sua obra, do inegável amálgama de talento sobre o palco e da sinergia entre as quatro, a apresentação foi morna e, considerando o corriqueiro e disperso clima de festival, não conseguiu prender a atenção do público. Talvez falte um hit à paulistana, que montou um repertório baseado no disco recém-lançado e com algumas pitadas do primeiro. Afinal, Bebé encontrou seus melhores momentos quando transitou por canções mais intensas e de refrão marcante, como “Eu Quero Viver”.
Para encerrar o primeiro dia de festival, um show inédito. Em momentos iniciais de suas trajetórias, Giovani Cidreira, Josyara e Jadsa tocaram no Radioca – os dois primeiros na segunda edição, em 2016, e a terceira em 2017 –, mas, apesar das muitas interseções e parcerias em seus trabalhos, nunca haviam se apresentado juntos. Nem na Bahia nem em São Paulo, onde residem atualmente.
O trio de amigos amarrou o show em torno de dois eixos conceituais: ao mesmo tempo em que compunha uma celebração pela parceria no palco num momento de ascensão em suas carreiras (uma “carta ao passado”, como afirmou Cidreira), a apresentação também festejou o retorno à Bahia nesta fase. Afinal, sentir saudades de sua terra é algo que costuma acometer os baianos emigrados. Como se diz por aí, São Paulo é o mundo, o Rio de Janeiro é o Brasil e a Bahia é a Bahia. Ou, tomando emprestados os versos do Olodum sobre o magnetismo que a terra exerce sobre aqueles que a vivenciam, “quem fica não pensa em voltar”.
Assim, transitar entre canções que versam sobre as angústias dos imigrantes, como “Back In Bahia”, que abriu a performance ou “Você Que Perguntou”, de Josyara, foi uma escolha coesa. O mesmo valeu para as releituras de clássicos da música popular baiana, a exemplo de “Perdido de Amor”, “Árvore”, “Me Abraça e Me Beija”, “Margarida Perfumada” e um encerramento que passou por “Nossa Gente” e “Selva Branca”.
Entre esse passeio conduzido por arranjos de metais caros ao samba reggae, o trio também percorreu por trabalhos autorais, arrancando aplausos do público com “Sem Edição” (Jadsa), “Trem de Outra Cidade”, “Última Vida Submarina” e “Mano Sereia” (Cidreira). Já Josyara quebrou o protocolo e, fugindo ao repertório pré-estabelecido, emocionou com uma versão de “Na Hora do Almoço”, de Belchior, que ofereceu mais densidade às reflexões existenciais colocadas pelo show – ainda que no já mencionado clima de celebração.
No dia seguinte, as reflexões que Giovani Cidreira, Jadsa e Josyara deixaram sobre modos de existir no mundo continuaram durante o show do Vírus. Não só porque o baiano coloca isso em seu trabalho, influenciado pela cosmologia iorubá e baseado em uma performance que inclui diversos elementos cênicos da dança e de ritos religiosos de matriz africana. Mas também porque o arriscado pacote que escolheu para se expressar carrega consigo um dilema. O mesmo, aliás, que acompanha Edgar (SP).
A comparação com o rapper de Guarulhos não é casual. O trabalho de Vírus alude bastante a Exu e, não à toa, traz consigo o mote “Exu nas escolas”, proveniente da homônima canção que Edgar escreveu para Elza Soares. Assim como o paulista, o baiano frequentemente opta por causar estranheza aliando a sua performance a um rap mais lírico e de flow falado, como uma leitura de poesia sobre bases musicais – algo comum em saraus e eventos literários.
Ao tentar se equilibrar na corda bamba do experimentalismo, Vírus termina não encontrando tanto respaldo entre fãs do hip hop – que sequer compareceram em peso a sua apresentação – e enfrentando dificuldades para cativar o público alheio ao gênero. Seus melhores momentos se deram quando partiu para abordagens mais dançantes, como no rap-pagodão “Foice, Facão e Peixeira”, que gravou com EVYLiN e Urias, ou na clubber “Sankofa”, quando os beats de Jerônimo Sodré, importante DJ da cena eletrônica soteropolitana, ecoaram no pátio do Solar do Unhão.
Ao pôr do sol do domingo começaria o melhor show do Radioca, por todos os elementos que o envolveram, sobretudo pela conquista da plateia pelo talento e de seu arrebatamento pela potência. Anne Carol levou consigo um razoável público de aracajuanos e rapidamente transformou o festival em sua casa, com a leveza de um passeio pela orla da praia de Atalaia.
Com voz rouca e potente, Anne Carol apresenta no álbum “Semblantes” (2023) um conjunto de canções que poderiam ser sucessos radiofônicos da década de 1990 e do início dos anos 2000 ou que dão aquela vontade incontrolável de acender um isqueiro e levantá-lo aos céus – no melhor sentido que essa descrição possa oferecer. Ao vivo, elas funcionam ainda mais, devido à agitada e carismática presença de palco da cantora, que carrega consigo influências de ritmos jamaicanos, do rock dos anos 1970 e de nomes como Cássia Eller e Cazuza.
Anne Carol começou a ganhar o jogo com a potentíssima “Epidérmica”, aliando o pop rock ao reggae – e, assim, encontrando muitas interseções com a soteropolitana Adão Negro, uma das principais referências do reggae no Nordeste. Depois, avançou no tabuleiro com o belo solo de guitarra que inicia “Cantar no Farol” e deu mais passos com o refrão franco da canção, entoado pelo público. Quando passou para uma releitura pesada de “Deixa a Gira Girar”, hipnótica e cheia de reverb, construiu a goleada.
No restante da apresentação, já com o público conquistado, Anne Carol levou a conterrânea e parceira Lari Lima ao palco, em “Tudo Que Virá”, voltou a arrebatar com as românticas “No Rolê” e “Cheiro Bom” e encerrou em alta com a força de “Semblantes”, faixa-título de seu álbum. O show ganhou tanta tração que, como artista e plateia se curtiam intensamente, não sobrou tempo para “Quilombo do Reggae”, um dos carros-chefe do trabalho. Sem dúvidas, a sergipana é uma artista para ficar de olho nos próximos anos.
Com a energia em alta, chegava a vez de mais um bom nome da nova safra da música nacional. Atração inédita em Salvador, a banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo iniciava no Radioca a sua primeira turnê pelo Nordeste e subia ao palco com a pressão de manter o elevado nível da apresentação de Anne Carol. Afinal, o grupo paulistano chegava à Bahia respaldado por dois álbuns elogiados – o de estreia, homônimo, produzido por Ana Frango Elétrico e datado de 2021, e o segundo, “Música do Esquecimento” (2023), com produção do pianista Vitor Araújo.
Não dá para dizer que a banda paulistana conseguiu envolver o público da mesma forma que Anne Carol, mas certamente havia um parcela considerável dos presentes que estavam ali para vê-la. E, tão logo o quarteto iniciou os trabalhos com “Baby Míssil” rodinhas se formaram na frente do palco. O show foi pegando tração a partir da metade, quando a plateia se empolgou e bateu cabeça com “Idas e Vindas do Amor”, encerrada com uma pequena brincadeira com a levada de “Palco”, de Gilberto Gil.
Mas os principais destaques da apresentação de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo se deram no seu último quarto, a partir do convite para Felipe Vaqueiro, da Tangolo Mangos, chegar com uma guitarra baiana e solar bastante em “Quem Vai Apagar a Luz?”, que acabou ganhando contornos tropicalistas, ao melhor estilo “Atrás do Trio Elétrico”. Em seguida, o quarteto fechou o show com uma lasciva sequência, formada por “Delícia/Luxúria” e “Segredo”, confirmando que o seu status de queridinho do indie rock não é à toa.
Por fim, a oitava atração para fechar o oitavo Radioca: BNegão. Praticamente um artista da casa, já que se apresenta frequentemente em Salvador há alguns anos – a propósito, tocará novamente na cidade com o Planet Hemp no Afropunk, no da 9 de novembro –, além de colaborar com o BaianaSystem desde o início do projeto, em 2009. Aliás, mesmo antes da consolidação dessa parceria, o carioca já tinha um som muito bem aceito pelo público soteropolitano, que respira dub, dancehall e afrobeats. Tudo para ser um showzaço, certo? Errado.
No Radioca, BNegão fez o show de estreia de “Metamorfoses Riddims e Afins”, seu primeiro disco solo, que foi anunciado em 2021 e adiado desde então. Algumas faixas que irão compor o trabalho – releituras de “Canto da Sereia”, da Orquestra Contemporânea de Olinda, e “Sorriso Aberto”, de Jovelina Pérola Negra – já haviam sido lançados pelo carioca, sem empolgar. Em Salvador, o rapper passou a (má) impressão de que vem por aí um álbum bastante inferior a suas outras produções, como o excelente “Sintoniza Lá” (2012), gravado com os Seletores de Frequência.
Aliás, Pedro Selector, trompetista do grupo, acompanha BNegão na nova empreitada e foi um dos destaques do show, oferecendo arranjos belos e inusitados – como em “Tudo No Esquema”, uma das novidades que parecem interessantes no trabalho que será lançado. Porém, em meio a algumas outras notas positivas, como o remix “Essa É Pra Tocar no (Heavy) Baile”, a apresentação foi polvilhada de releituras pouco marcantes, o que a deixou arrastada e desconexa do início ao fim. Certamente, fato incomum na carreira do rapper, marcada por astuta visceralidade.
O habitual Bernardo Negron só apareceu nos derradeiros momentos do Radioca, quando convocou uma roda em “A Verdadeira Dança do Patinho”. Ou melhor, na versão da canção criada especialmente para os desfiles carnavalescos do BaianaSystem no Navio Pirata – à qual o carioca emendou os versos de “Reza Forte”, hit gravado com a banda soteropolitana, e de “Deixa a Gira Girar”.
Dessa maneira, BNegão construiu um final digno para um show que entregou muito menos do que se esperava e que, por conta da falta de punch, se esvaziou antes mesmo das últimas músicas. Ao menos a sequência serviu para tirar da boca do público o retrogosto de anticlímax, depois de um fim de semana de tantas apresentações coesas, pujantes e surpreendentes, como costuma ocorrer no Radioca. Ponto para a curadoria.
– Nelson Oliveira é jornalista e fotógrafo residente em Salvador. É diretor da Calciopédia, foi correspondente de esportes do Terra na Bahia e colaborou com UOL, VICE e Trivela.