Três filmes da 48ª Mostra SP: “Ernest Cole: Lost and Found”, “Feng liu yi dai”, “Volveréis”

textos de Leandro Luz

“Ernest Cole: Achados e Perdidos / Ernest Cole: Lost and Found”, de Raoul Peck (2024)
O novo filme de Raoul Peck, vencedor do prêmio de melhor documentário em Cannes, homenageia o grande fotógrafo sul-africano que registrou com a sua câmera e muita coragem os eventos mais nefastos do Apartheid e, posteriormente, o cotidiano das ruas durante a vida em exílio nos Estados Unidos. Acertadamente, Peck faz do cinema um meio ideal para a exposição das fotografias de Cole, muitas delas dadas como perdidas, encontradas de forma misteriosa em um cofre de um banco em Estocolmo, na Suécia. Narrado com destreza pelo ator LaKeith Stanfield, que interpreta o roteiro escrito por Peck, elaborado a partir dos próprios textos deixados por Ernest Cole, o documentário passeia por obras de arte fascinantes e por reflexões muito valiosas, expostas com calma e delicadeza, muitas das vezes montadas ao ritmo do jazz e que ganham muita força na tela grande. É uma pena, no entanto, que o filme seja refém de uma narrativa tão quadrada. Peck não abre mão da centralidade do formato da entrevista em seu filme, um pecado diante da força que as fotografias possuem. Familiares, amigos e profissionais que de alguma maneira participaram e reverberaram o legado de Cole surgem para conceder depoimentos muitas das vezes desinteressantes, filmados sobretudo em estúdio ou em ambientes genéricos. A abordagem é típica dos documentários feitos para TV e em nada combina com a grandiosidade das obras de Cole, que ao preencherem o quadro ganham vida e expressam muito mais do que as cabeças falantes. Outra escolha que atrapalha o filme é o destaque concedido a todo o imbróglio com a descoberta das fotos e com os direitos sobre o legado do trabalho do artista. As cenas da família tratando do assunto não são elaboradas o suficiente, portanto não faz muito sentido a importância atribuída a elas para além de uma função de contextualização. Há, inclusive, um registro (difícil entender direito se reencenado ou acompanhado em tempo real) dos membros da família de Cole, dentro do cofre, manipulando pela primeira vez os negativos, os textos e objetos variados deixados por Cole na Suécia. Entre problemas e acertos, “Ernest Cole: Achados e Perdidos” tem o trunfo de ser um dos principais responsáveis por apresentar esse artista gigante a toda uma nova geração.


“Levados Pelas Marés / Caught by the Tides / “, de Jia Zhang-ke (2024)
O cinema de Jia Zhang-ke em “Levados Pelas Marés” (2024) regurgita a tragédia que é o capitalismo e observa indignado as mudanças pelas quais o mundo passou (e segue passando) em virtude da maneira como os seres humanos ignoram as suas consequências. O caminho adotado pelo cineasta para dar conta desse desafio passa pela metalinguagem e pelo revisionismo como estratégias principais. Durante todo o filme somos conduzidos por várias “Chinas” – das grandes cidades ao interior -, que se transformam no tempo e no espaço diante dos nossos olhos, entre uma longa sequência e outra, geralmente via cortes secos que chegam sem muito aviso. O trabalho de montagem é arriscado e evita os percursos mais óbvios. Parte dos procedimentos de Zhang-ke e de seus montadores tem a ver com a experimentação com o antigo e com o novo, com materiais de filmes existentes, imagens engavetadas há décadas que somente agora veem a luz do dia e novas encenações de uma ficção possível que desenha uma trama fugidia, mas muito poderosa: Qiaoqiao (Tao Zhao) é uma mulher que resolve ir atrás de seu companheiro, Guo Bin (Zhubin Li), após ser abandonada por ele, que foge para desbravar a vida urbana das grandes cidades. A obra faz esse movimento ficcional, mas também ostenta a meticulosidade de um delicado e hermético registro documental. Toda a premissa parece genial, mas a experiência de assisti-lo não é sempre tão impactante como parece. Zhangke concebe um testamento sobre as grandes mudanças em seu país (e no mundo, de certo modo), e a ousadia dessa empreitada épica às vezes pesa. Não que a intrépida aventura pelo próprio cinema de seu diretor faça o espectador perder o interesse no longa-metragem – pelo contrário, sem esse ingrediente ele perderia grande parte de sua singularidade – porém, o fiapo de trama é tão interessante que chega a ser frustrante acompanhá–lo com tantas lacunas. É bastante curioso que dois cineastas de formações e estilos tão diferentes tenham criado, no mesmo ano, obras com tramas tão semelhantes (“Grand Tour”, do português Miguel Gomes, tem uma premissa parecidíssima), apesar dos distintos processos e resultados. Se no filme de Gomes as imagens, que alternam entre o colorido e o preto e branco, vibram orgulhosas de sua plasticidade, para Zhang-ke o interesse maior está nas constantes variações de texturas, cores e formatos, dado que imagens de alta e baixíssima resolução convivem muito bem, assim como a película e o digital se entrelaçam em prol dessa grande viagem no tempo que é “Levados Pelas Marés”.


“Ao Contrário / The Other Way Around / Volveréis”, de Jonás Trueba (2024)
Jonás Trueba é um diretor espanhol nascido em uma família de cineastas. Seu tio, David Trueba, do gracioso “Viver É Fácil Com os Olhos Fechados” (2013) e seus pais, Fernando Trueba e Cristina Huete (brasileira radicada na Espanha) – ele diretor, ela produtora – trabalham juntos há décadas e, recentemente, lançaram o comentadíssimo “Atiraram no Pianista” (2023). Em “Ao Contrário” (2024), Jonás Trueba narra com muita perspicácia a história de um casal que decide dar uma festa para celebrar o seu divórcio após um casamento tranquilo e duradouro de 15 anos. Ideia absurda à primeira vista, mas que o filme logo trata de naturalizar, só para depois transformá-la novamente em algo disparatado. A maneira com a qual o cineasta lida com a sua premissa é a principal pista para entendermos os mecanismos e os objetivos do filme. Começando como uma comédia romântica às avessas, a obra trilha um caminho que valoriza o registro do cotidiano de Ale (Itsaso Arana) e Alex (Vito Sanz), nos revelando aos poucos a sua rotina e nos apresentando as particularidades de suas personalidades. Intermitente, a narrativa reencena, praticamente a cada 15, 20 minutos, a ação do casal contando sobre a esdrúxula ideia da festa do divórcio para algum amigo ou familiar, e a cada recontar o diretor e os atores principais (também creditados como roteiristas) dão uma volta em si mesmos, jogando e se divertindo com as pequenas mudanças no texto, na entonação da voz e nas micro expressões que a câmera registra com perspicácia. Bem tocante e divertido o caminho pelo qual a obra segue, abrindo uma porção de janelas para o inesperado. Quando achamos que entendemos por onde Trueba quer navegar, somos pegos de surpresa por uma guinada (não exatamente brusca, mas inaudita), que impulsiona a narrativa para uma brincadeira metalinguística que alimenta a própria trama. Ale é uma cineasta que está trabalhando em seu novo longa-metragem, no qual Alex é protagonista. O filme está na etapa da montagem e ela luta para encontrar o ritmo e a atmosfera ideal para contar a sua história. Em certo sentido, a personagem interpretada por Itsaso Arana se associa a Jonás Trueba para comentar a trama de “Ao Contrário”, que passa a “sofrer” mais interferências na medida em que avança no tempo. Ao final, o que vemos é uma simbiose entre o filme e o filme dentro do filme. O artifício pode soar tolo, mas é sobrescrito pelas grandes presenças de Itsaso Arana e de Vito San e pelo rigor de Trueba na condução de sua narrativa, sobretudo quando aposta na repetição deliberada e no apuro da comédia leve.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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