textos de Leandro Luz
“Através do Fluxo / By The Stream / Suyoocheon”, de Hong Sang-soo (2024)
Eis um dos filmes mais brilhantes da fase mais recente do cineasta sul-coreano Hong Sang-soo, quiçá de todas as suas fases. Em atividade desde os anos 1990, Sang-soo hoje é reconhecido e celebrado pela sua economia narrativa, por trabalhar basicamente com uma mesma trupe de colaboradores e pela rapidez com que roda e lança seus filmes (nos últimos 4 anos, a título de exemplo, ele colocou no mundo 8 longas-metragens, uma média de fazer inveja a muito cineasta em atividade, sobretudo pela qualidade altíssima dos trabalhos). Com o passar do tempo, essas características foram se intensificando em virtude da opção do diretor em acumular cada vez mais funções – desde “Introduction” (2021), por exemplo, ele passou a se responsabilizar, além dos habituais cargos de direção e de roteiro, também pela montagem, pela direção de fotografia e pela composição da trilha sonora de seus filmes. Decisão que se deu de forma gradual, intensificada pela necessidade de se filmar em digital e pelo advento da pandemia, que o fez reduzir ainda mais a escala de produção, ao passo que o levou a refinar ainda mais o seu estilo. Em seu novo filme, o segundo lançado em 2024 (o outro se chama “As Aventuras de uma Francesa”, exibido recentemente no Festival do Rio), Jeon-im (Kim Min-hee) é uma professora que convida seu tio, Chu Si-eon (Kwon Hae-hyo), um respeitado diretor teatral para comandar uma residência artística com os seus alunos. O objetivo é montar uma apresentação para o tradicional festival de esquetes promovido pela escola do qual Si-eon já havia participado na sua juventude, evocando lembranças complexas que mexem com o personagem e garante um peso que Sang-soo não faz questão de sublinhar, como de praxe em seus filmes. Tudo se dá com sutileza, até mesmo um escândalo sexual revelado em determinado momento da trama, como se o fluxo do córrego que aparece algumas vezes fosse o grande responsável por ditar o ritmo e a ordem dos acontecimentos. Entre ensaios e conversas prosaicas, testemunhamos Jeon-im fazendo o possível para deixar o tio confortável (e ele fica mesmo à vontade, sobretudo na relação que estabelece com a chefe da sobrinha). O plano final, que termina com um congelamento de imagem entre um passo e outro de Kim Min-hee, que sorri enquanto caminha pelas pedras do córrego, é das coisas mais emocionantes do cinema recente. Em seus últimos filmes, o diretor sul-coreano vinha apostando em narrativas bem mais curtas e diretas. Este, em contrapartida, volta a adotar uma estrutura espiralar típica dos seus filmes até mais ou menos 2017, quando ele começa a trabalhar com uma equipe mais reduzida e a adotar um processo de trabalho mais “solto”. Não que esta obra se destaque do modo de produção mais recente do cineasta, mas é empolgante voltar a reconhecer uma elaboração maior também no roteiro para além das incríveis experimentações que vinha fazendo com a fotografia (“In Water”), com os atores (“In Front of Your Face”) ou com a manipulação do tempo (“Introduction”).
“Sol de Inverno / My Sunshine / Boku no Ohisama”, de Hiroshi Okuyama (2024)
A boy meets a girl. No caso, Takuya conhece Sakura em uma cidade rural no Japão. Os dois pré-adolescentes, mergulhados no inverno severo do local, não seguirão exatamente os passos de uma típica história de amor, mas farão com que os corações dos espectadores se sintam suficientemente acalentados pela espontaneidade de sua relação, ainda que os percalços no caminho sejam duros e provoquem rupturas irreconciliáveis. “Sol de Inverno” (2024), escrito e dirigido por Hiroshi Okuyama, chama imediatamente a atenção pelo trabalho minucioso de fotografia, que ganha um protagonismo belíssimo e bem ajustado à atmosfera da história contada. Okuyama também assina a direção de fotografia e aproveita com graciosidade a luz natural que invade a razão de aspecto reduzida escolhida para dar conta das emoções profundas da protagonista, um garoto fofo que joga hockey no gelo, mas que decide aprender patinação artística para ficar perto de uma garota. As coisas dão certo para ele até certo ponto, como já era de se esperar nesse tipo de trama. Takuya não lida exatamente bem com o esporte que pratica – não que seja um fardo para ele, pois o filme não está interessado em criar contrastes óbvios – e se vê impelido a se aproximar de Sakura por meio da nova atividade. O grande barato é como o garoto de fato parece gostar do esporte para além do investimento romântico, algo que traz um frescor para esse tipo de obra, ajudado pelo personagem do professor, Arakawa, sensível e benevolente em seu gesto de aproximar os dois e de fazer com que Takuya domine as técnicas da patinação. O estilo que Okuyama adota para o seu filme valoriza a quietude e a contemplação, optando pela utilização de planos fixos na maior parte das vezes, e se distancia da pieguice e da arrogância com certa facilidade, preservando, ainda assim, uma beleza que elimina as distâncias entre o natural e o artificial. O filme evita armadilhas bobas que poderiam estragar completamente as suas intenções: se por um lado corria o risco de buscar soluções fáceis de roteiro para provocar conflitos e criar uma montanha-russa de emoções desnecessárias, por outro também poderia deixar de tensionar alguns temas importantes. Felizmente, sai ileso desses problemas, ainda que caia em outros, como a dificuldade para estabelecer um desfecho à altura de seu desenvolvimento e o pouco tempo de tela que concede ao relacionamento de Arakawa com o seu companheiro. Se as subtramas são evitadas a todo custo – um acerto para uma obra como esta – faltou ao diretor encontrar uma maneira direta de dar conta das complexidades das personagens coadjuvantes, bem resolvidas no seu diálogo com o protagonista, mas insuficientemente desenvolvidas em relação às suas próprias vidas.
“O Senhor dos Mortos / Les Linceuls / The Shrouds”, de David Cronenberg (2024)
David Cronenberg em sua jornada verborrágica sobre o luto e o amor. Só se exorciza um fantasma cuja materialidade se percebe, e as imagens que nos são expostas da esposa do protagonista logo nos primeiros quinze minutos de filme (seu esqueleto em decomposição registrado por uma câmera instalada dentro do túmulo, exibida em um insólito ecrã fixado na própria lápide e controlada via aplicativo de celular) são para lá de concretas. Em “O Senhor dos Mortos” (2024), o diretor mais se interessa pelo tato do que pelo metafísico, e não faz concessões para habitar um lugar situado entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Vincent Cassel é Karsh, um viúvo que tenta colocar a sua vida nos eixos após um longo processo de luto que o levou a inventar uma tecnologia capaz de monitorar corpos em decomposição no leito de morte. Nos familiarizamos com todas essas novidades por meio de um diálogo entre o protagonista e uma amiga (amante em potencial, descobrimos ao longo da conversa): “O quão sombrio você está disposta a ir?”, pergunta ele, antes de constrangê-la (e de alimentar a repulsa do espectador) com as imagens do corpo em putrefação da esposa morta. Karsh é um empresário bem sucedido e o seu empreendimento é cobiçado por empresas de vários países, por mais peculiar e chocante que a ideia possa parecer. Enquanto tenta levar uma vida normal, com flertes esporádicos com diversas mulheres e uma relação a princípio saudável com a cunhada (idêntica à falecida esposa – ambas interpretadas pela atriz Diane Kruger, inteligente na maneira como calculadamente as diferencia), ele se vê preso em uma espiral de sonhos muito vívidos que mexem com a sua cabeça – em resumo, Karsh recebe visitas noturnas e calientes da esposa, a cada noite com o corpo cada mais “modificado” (digamos assim, para evitar estragar a surpresa de quem ainda não viu). Outro elemento que move a trama para frente – por mais que Cronenberg insista em trabalhar em círculos – é o fato de algum vândalo anônimo depredar as lápides de Karsh, o que o leva a entrar em uma trama intrincada de investigação envolvendo um personagem um tanto indecifrável, interpretado por Guy Pearce, ex-marido da cunhada e gênio da informática que o ajuda a construir todo o aparato tecnológico, e uma mulher com deficiência visual, vivida por Sandrine Holt, na qual ele deposita suas parcas esperanças afetivas. Misturando temas como inteligência artificial e virtualidade das imagens com a boa e velha obsessão com o corpo e com os prazeres perigosos que nos mantém conectados com a vida, Cronenberg dá uma passo além na sua escavação cinematográfica, pouco preocupado com o que as pessoas vão achar de sua melancolia e disposto a se enrolar na arriscada mortalha que ele mesmo confeccionou. Uma dica final: caso tenha chegado atrasado na sessão e perdido a primeira cena, sugiro que assista novamente, pois este é um dos melhores e mais representativos momentos do cinema de Cronenberg.
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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.